• Nenhum resultado encontrado

Tornar-se professor: ver, ouvir, cuidar sua criança

D en tro d o adulto há uma criança que o im pele sempre para o novo. O con h ecim ento d o adulto tom a-o rígido e fechado co m respeito à inovação. Para perm anecer em ocionalm ente vivo, o adulto deve conservar e cultivar o potencial de vida representado pela ingênua abertura e pela irracionalidade das experiências da criança (Guggenbül-Craig, 2004, p.96).

A partir das idéias de Jung, o m édico e analista Guggenbül-Craig (2004) traça considerações em torno do arquétipo que envolve certas profissões que são essencialmente relacionais com o o médico, o terapeuta, o sacerdócio, o serviço social e o magistério. A natureza de tal arquétipo de relacionamento é a bipolaridade: tanto um quanto o outro p ó lo da relação traz em si o seu oposto, e uma boa relação seria desenvolvida a partir da integração dos dois pólos. É por essa direção que segue o ensaio de Guggenbül-Craig a respeito do arquétipo do adulto instruído-criança ignorante, ou do mestre-aprendi%

O b o m professor sente-se fascinado pelo arquétipo adulto instruído-criança ignorante. U m bom professor deve, por assim dizer, estimular o adulto instruído na criança, assim c o m o deve o m éd ico ativar o princípio interior de cura no paciente. M as isso só p o d e ocorrer se o p rofessor não perder contato co m sua própria infantilidade. E m term os práticos, isso significa, p or exem plo, que, ao ensinar, ele n ão deve perder a espontaneidade. Seu trabalho con siste não apenas em transmitir conhecim ento, m as também em despertar a vontade de aprender nas crianças — o que só será p ossível se a criança espontânea e ávida de con h ecim en to estiver viva dentro dele (Guggenbül-Craig, 2004, p.97).

O u seja, um professor seria tanto melhor professor quanto mais tivesse a consciência do p ólo criança/aluno em si; quanto mais admitir, por exemplo, a ignorância, o fascínio e o desejo de conhecer n o seu percurso. Seria essa admissão que facilitaria constelar no outro p ólo da relação, no aluno, o lado professor, vale dizer, daquele que possui um saber e deseja saber.

Para fazer tais considerações, o autor tom a por referência o arquétipo do

curador ferido, aludido por Jung em seus estudos que, por sua vez, remonta

ao m iltologem a grego do médico ferido, representado por Quíron. Conta-nos o mito que Q uíron (em grego Khêiron), filho de Cronos e Fílira, era um centauro de grande discernimento e amplos conhecimentos. Sabia muito bem curar e compreender os enferm os, uma vez que ele próprio era um m édico ferido. Distinguia-se dos demais centauros pela benevolência com que tratava os humanos.

Ele tinha ama afeição espedal por Peleu e o protegeu em suas aventuras na corte de Acasto, além de defendê-lo da brutalidade dos outros centauros. Peleu correspondeu a sua afeição confiando- lhe a criação de seu filho Aquiles. Além de Aquiles Quíron educou, entre outros, Asclépio e Jáson, e o próprio Apoio ouviu suas lições, que versavam sobre música, ética, medicina, caça e guerra. Quando Heracles massacrou os centauros, Quíron, que lutou ao lado do herói, foi ferido casualmente por uma de suas flechas envenenadas. Quíron recolheu-se a sua gruta, e as dores causadas pelo ferimento incurável eram tão fortes que ele queria morrer, mas não podia por ser imortal. Prometeu, que estava acorrentado a um rochedo no monte Cáucaso, trocou sua condição de mortal pela imortalidade do centauro, que assim se livrou do sofrimento graças à morte (Kury, 1990, pp. 344-345).

Q uíron, acom etido p or um mal incurável, é sofredor e coloca-se à disposição para aliviar o sofrim ento dos outros. Estava ferido e, na m esm a medida, podia ser curador e este seria o fator primordial para que o processo de cura se realizasse. O u seja, seu próprio ferimento lhe dava condições de acolher a dor do outro e de encaminhar a cura. E não esqueçam os que, conta-nos o mito, o centauro Quíron possuía um espírito expandido, benevolente e sábio. Jung chamará atenção para essa particularidade: “o fator d e cura é a personalidade d o m édico” (Jung apud Maroni, 2004, p.109).

D o que estam os tratando é do reconhecim ento da participação ativa do inconsciente na determinação das relações. Tratando-se de professor- aluno13, terem os que o fator preponderante para o sucesso na relação ensino-aprendizagem será a personalidade do professor. A exemplo da educação d o terapeuta, Jung acentua a importância d o autoconhecim ento do professor. N ão se refere, portanto, à aquisição de conhecim entos teóricos e técnicos, mas de um conhecim ento que em erge da busca em conhecer-se. N o cam po em que estam os transitando, será decisivo o conteúdo anímico. U m a alma alimentada, aberta, florescida, ligada aos apelos da criança interna, tanto mais ajudará o professor na sua jornada e, por conseguinte, as crianças.

... a verdadeira educação sempre se vincula à manipulação ativa da alma. O decisivo, então, para Jung, não é o conhecimento científico

tout court do terapeuta, mas sua qualidade humana: o modelo de

uma alma bem ordenada é traduzido pela sua adtude ética. Todo psicoterapeuta não só tem seu método: ele próprio é esse método

(Maroni, 1998, p. 127).

N as palavras d o próprio Jung:

... aquilo que atua não é o que o educador ensina mediante palavras, mas aquilo que ele verdadeiramente é. Todo o educador, no senddo mais amplo do termo, deveria propor-se sempre de novo a pergunta

13 Encontrei publicados alguns trabalhos de pesquisadores brasileiros que discutem ou peio menos apontam a relação professor-aluno como relação arquetípica. Por se tratar de um campo ainda pouco explorado julgo importante indicar as referências. Cf. SAIANI, Cláudio, jung e

a educação: uma análise da relação professor / aluno. São Paulo:Escrituras Editora, 2003. 3ae d .; BYINGTON, Carlos. Pedagoga simbólica. Rio de Janeiro:Rosa dos Tempos, 1996 (capítulo V); FURLANETTO, Ecleide.

Como nasce um professor? São PauloiPaulus, 2003 (capítulo “O encontro com as matrizes pedagógicas”).; WENTH, Renata. Psicologia analítica e educação — visão arquetípica da relação professor-aluno. In: www.symbolon.com.br/ artigos (site consultado em 11/09/2005).

essencial: se ele procura realizar em si m esm o e em sua vida, do m o d o m elhor possível e de acordo com sua consciência, tudo aquilo que ensina. N a psicoterapia tivem os d e reconhecer que em última instância não é a ciência nem a técnica que tem efeito curativo, m as som ente a personalidade; o m esm o acontece na educação: ela pressup õe a educação de si mesmo Qungv 1998, p.145).

N a vivência da dança, na experiência que pode ativar reminiscências, lembranças de uma criança habitada, algumas pontes podem ser lançadas na direção d o contato com tais dim ensões da vida pessoal e profissional dos professores - ver-se, reconhecer-se, conhecer-se. N o caso dos encontros em que a temática das danças levava explicitamente ao território da infância, anunciou-se visivelmente a possibilidade de um exercício de alteridade, cujo primeiro passo funda-se na admissão do outro interior. Aquelas danças colocaram aqueles adultos, via linguagem sem palavra, frente a frente com a sua criança.

A o admitir a existência de uma criança interior, ao recebê-la, dar-lhe espaço e credibilidade, os professores poderiam ensaiar atitudes mais abertas, porque compreensivas, na relação com as diferentes crianças que estão ao seu lado (ou a sua frente?) na escola. Porque, de acordo com o que tem os v isto sobre um dos arquétipos que rege a relação pedagógica, é fundamental o professor estar conectado com o seu pólo criança, pois é deveras trágico o retrato daquele que se afastou demasiadamente da sua “infantilidade”.

E s se tipo de professor que cindiu e afastou o p ólo infantil d o arquétipo, passará então a queixar-se de que os alunos d e antes tinham m uito mais vontade de aprender. Seu contato com as crianças se dá apenas por interm édio do poder e da disciplina. A o m esm o tem po, ele se torna uma p essoa triste e amarga. O entusiasm o n ovo e infantil morreu nele. A s crianças são seus inim igos, representando o p ó lo cindido d o arquétipo n o plano interior, cuja reunificação ele tenta prom over p or interm édio d o poder (Guggenbül-Craig, 2004, pp.97-98).

Reafirmo, pois: na experiência que estou analisando e a partir da qual vou tecendo idéias e dando forma a intuições, a dança permitiu a entrada para con teúd os pessoais e, co m o que puxando fios de um labirinto, foi conduzindo cada educador para sua história, para a percepção de sua criança. H á tem pos está posta para os educadores a necessidade de retomar ou redescobrir a “dimensão brincalhona” (Rabitti, 1999), que nos conduz à criação e à recriação do cotidiano e nos aproxima ainda mais das crianças. E ssa perspectiva já anunciada e almejada pode ser com preendida em term os d e “reunificação do p ólo infantil cindido”. A dança circular m ostrou-se cam po aberto para tal reencontro ou descoberta.

Com o já fiz notar, não foi meu propósito avançar na reflexão dos conteúdos que emergiram na experiência, mas a dança revelou a imensa carga afetiva

que envolve o m otivo da criança. Por ela foram sinalizados conteúdos afetivos para os educadores tomarem contato. Conteúdos fortes e delicados, mobilizadores, que talvez não chegassem à consciência de outra forma, quero dizer, pela própria consciência e seu principal instrumento, a palavra. A ntes da palavra, houve as imagens que irromperam na dança, com a música e os gestos — na roda, circularmente. Essas imagens só se deixam apanhar n o limiar do relaxamento da consciência. Para utilizar uma expressão d eju n g, é com o abaissement du niveau mental, um estado em que se observa “um afrouxamento desinibido de restrições psíquicas; intensidade reduzida da consciência, caracterizada pela ausência de concentração e atenção”, que conteúdos inesperados, essencialmente imagéticos, poderão emergir (Samuels, 1988, p.17).

E é isso que a dança pode promover na forma ritualística que assume. Uma vez revolvidos do chão onde repousavam, tais conteúdos e imagens poderiam depois se constituir em fo co s de análise, de auto-análise, permitindo que cada um entrasse cada vez mais nas suas memórias e, talvez, redimensionasse sua história com o educador14. D essa maneira, poderia dar-se a expansão da consciência ou, para utilizar o sím bolo trazido pela criança, a renovação, o renascimento, a transformação.

Afinal, parafraseando o poeta13, o que pretenderia o professor, de sua jornada, senão transformar-se? A experiência da formação acadêmica deveria provocar essa viagem de transformação, pois, para tornar-se professor, há que abandonar algumas crenças, há que modificar caminhos, fazer travessias...

Para finalizar esse tópico, sirvo-m e de um ensaio-conto de Jorge Larrosa sobre Rousseau, a respeito das confissões e da autoconsciência. Provocativamente, lembrando o tom e ao gosto do discurso pedagógico, o autor cham ou de moral a parte final do texto, da qual reproduzo o trecho a seguir:

Não sejas nunca de tal forma que não possas ser também de outra maneira. Recorda-te de teu futuro e caminha até tua infância. E não perguntes quem és àquele que sabe a resposta, nem mesmo a essa parte de ti mesmo que sabe a resposta, porque a resposta poderia matar a intensidade da pergunta e o que se agita nessa intensidade. Sê tu mesmo a pergunta. (Larrosa, 2003, p.41)

A necessidade de considerar, nos processos de formação, a história dos professores e a idéia de que a formação é “auto- formação”, pressupondo “autoconhecimento”, vem sendo apontada por diversos campos de conhecimento. Identifico, pois, caminhos próximos entre o que estou chamando de “encontro com a criança interior” e as “histórias de vida - autobiografia”. O diferencial do que desenvolvi na pesquisa foi o fato de privilegiar outra linguagem que não a memória verbal. A partir do contato com as imagens que surgiam através das danças, poderia ser uma perspectiva fecunda aprofundar o processo lançando mão da “autobiografia”, proposta discutida por diferentes autores. Cf. JOSSO, Marie- Christine. Experiénàas de vida

e formação. São Paulo: Cortez,

2004; FURLANETTO (2003), já citada.

15 Na carta de 12 de agosto de 1904, a certa altura o poeta pergunta ao jovem poeta: “N ão sabia estar em transição? Desejava algo melhor do que transformar- se?”. RILKE, R. M. Cartas

a umjovem poeta. São Paulo:

Aprendizes somos todos: o que a dança circular