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4 SISTEMA PROCESSUAL PENAL E O CONTORNO CONSTITUCIONAL

4.2 A distinção dos sistemas processuais e os princípios informadores

Para grande parcela da doutrina, a diferenciação entre os sistemas acusatório e inquisitivo decorre das características extraídas do modelo processual adotado por cada um deles. Tradicionalmente, considera-se característica marcante da diferenciação dos sistemas acusatório e inquisitorial a separação da função entre os atores do processo, ou seja, a distinção clara entre quem acusa, defende e julga.

Conforme analisado, no sistema inquisitivo, as funções de julgar e de acusar estão revestidas em uma só pessoa, enquanto no sistema acusatório, há uma autoridade do Estado com a função de julgar, e outra autoridade investida pelo Estado com a função de acusar.

Segundo Fernando da Costa Tourinho Filho, o sistema acusatório possui como traços marcantes:

a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada, em decorrência do contraditório, encontram-se no mesmo pé de igualdade; c) o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo (excepcionalmente se permite uma publicidade restrita ou especial); d) as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas, e, logicamente, não é dado ao Juiz iniciar o processo (ne procedat judex ex officio); e) o processo pode ser oral ou escrito; f) existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois “non debet licere actori, quod reo nom permittitur”; g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou órgão do Estado135.

133 VIERA, Renato Stanziola. Paridade de armas no processo penal. (coord.) Gustavo Badaró e Petronio Calmon. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014, p. 156.

134 VIERA, Renato Stanziola. Paridade de armas no processo penal. (coord.). Gustavo Badaró e Petronio Calmon. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014, p. 162.

135 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v. 1. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 90-91.

José António Barreiros, por sua vez, ressalta dentre as características históricas do sistema acusatório:

a) julgamento por populares; b) igualdade de partes; c) liberdade das partes para apresentar provas, sem interferência do juiz na busca das provas; d) juiz aguardando provocação das partes; e) procedimento oral, público e contraditório; f) persuasão racional do juiz; g) liberdade como regra e prisão processual como exceção; h) existência do limite da coisa julgada136.

O acusado possui um tratamento diferente em ambos os sistemas. No inquisitivo, é tratado como objeto de uma investigação; no acusatório, é visto como um sujeito da relação a ser desenvolvida com garantias e pautada em direitos inerentes ao próprio investigado.

Quanto às principais características do sistema inquisitivo, Fernando da Costa Tourinho Filho, com base em Garcia-Velasco, destaca:

a) concentração das três funções, acusadora, defensora e julgadora nas mãos de uma só pessoa; b) sigilação; c) ausência de contraditório; d) procedimento escrito; e) juízes eram permanentes e irrecusáveis; f) as provas eram apreciadas de acordo com umas curiosas regras, mais aritméticas do que processuais; g) a confissão era elemento suficiente para a condenação; h) admitia-se apelação contra a sentença137.

Para José António Barreiros, o sistema inquisitório, por sua vez, traz como principais pontos de atenção:

a) Julgamento por juiz funcionário; b) juiz acusa, defende e julga com concentração de funções; c) acusação oficial; d) procedimento predominantemente escrito e secreto; e) não-contraditório; f) prova tarifada ou sistema de prova legal; g) prisão processual se constitui regra; h) não há coisa julgada formal138.

Outra parcela da doutrina centra a distinção dos sistemas na gestão e iniciativa da prova, ao identificar um núcleo fundante, argumentando que não existe um princípio fundante misto139. O princípio fundante (informador) é aquele que definirá se o sistema é acusatório ou inquisitivo.

136 BARREIROS, José António. Processo penal. Coimbra: Almedina, 2001, p. 13.

137 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v. 1. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 93.

138 BARREIROS, José António. Processo penal. Coimbra: Almedina, 2001, p. 12.

139 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 46, n. 183, jul.-set. 2009. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.); CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de (org.). O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009 do Senado Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 9.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho140 explica que a gestão da prova é a espinha dorsal do processo penal, de forma que fundamenta o sistema sobre a égide de dois princípios: a) princípio dispositivo (gestão de provas pelas partes, com um juiz como espectador); e b) princípio inquisitivo (gestão de provas em poder do julgador, através de um juiz-ator).

Aury Lopes Junior141 afirma que o fato de o processo separar os seus atores, possuir as características de oralidade, publicidade, coisa julgada e livre convencimento motivado, não o isenta da característica de ser inquisitório. Para essa corrente, a distinção de ambos os sistemas está na inatividade do magistrado em produzir prova, aguardando de forma inerte a iniciativa das partes as quais recai o ônus de produzi-la.

Por outro lado, outra corrente questiona a dicotomia entre o sistema acusatório e inquisitivo, ao defender que esses modelos tradicionais não se coadunam com a estrutura constitucional do processo penal moderno.

Nesse sentido, Rodrigo Chemim revela críticas direcionadas aos critérios adotados para a distinção entre os modelos processuais, pois “dissociados de fontes primárias de pesquisa, os quais demonstram que historicamente os discursos dicotômicos de hoje são insustentáveis, não merecendo, portanto, serem aproveitados”142.

Para o autor143, parte da doutrina nacional e estrangeira utiliza critérios irrefletidos para distinguir entre os modelos de processo penal, baseados na existência ou não das funções distintas de acusar, defender e julgar, ou baseados no critério da gestão de provas, como se fossem os únicos capazes de, por si só, identificar e separar esses “sistemas”.

A doutrina demonstra uma confusão gerada em torno de alguns conceitos ao revelar autores que distinguem entre “acusatório privado” e “acusatório público”, ou ainda, “acusatório formal” e “acusatório material”144.

140 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 46, n. 183, jul.-set. 2009. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.); CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de (org.). O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009 do Senado Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 9.

141 LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal – introdução crítica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 239.

142 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 242.

143 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 244.

144 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla

Surgem também as expressões utilizadas por Ennio Amodio (“garantismo inquisitório”) e Tullio Padovani (“inquisição suave”), ao criticarem o período do processo penal italiano voltado às reformas processuais pós-fascistas para demonstrar que “duas almas distintas” não poderiam atender à exigência para que o Código de Processo Penal fosse aperfeiçoado145.

Alguns doutrinadores contemporâneos apontam outra referência conceitual e estrutural ao se referirem a um “processo acusatório com princípio de investigação”, dentre eles, Claus Roxin, na Alemanha; Figueiredo Dias e Nuno Brandão, em Portugal; e Gomes Orbaneja e Herce Quemada, na Espanha146.

Ernest Beling, no início do século XX, já usava a denominação “princípio acusatório formal” ou “princípio de investigação oficial mediante acusação formal”:

Dentro del ámbito de principio de investigación oficial, se distingue si la intervención estatal debe ser judicial (principio inquisitivo) o si há de establecerse uma autoridade estatal especial como encargada de las acusasiones, siendo ésta la que exija de los tribunales la protección jurídica (principio acusatório formal, o principio de investigación, oficial mediante acusación formal)147.

Paulo César Busato, ao aprofundar o tema, indica a existência de uma predominância entre um sistema ou outro:

É sabido que inexiste na prática legislativa um modelo de sistema jurídico processual penal que possa afirmar-se inteiramente acusatório ou inteiramente inquisitivo. Assim, que se fala, mais corretamente de um sistema predominantemente acusatório ou predominantemente inquisitivo. Nessa dinâmica, é possível dizer que o sistema do processo penal brasileiro progressivamente ganha cores acusatórias, já que veio historicamente marcado por um perfil inquisitivo148.

baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 246.

145 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. v. 1. Florianópolis, SC: Tirant lo Blanch, 2018, p. 190.

146 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 246-247.

147 BELING, Ernest Von. Derecho procesal penal. Santiago-Chile: Olejnik, 2018, p. 54. Tradução livre: "No âmbito do princípio da investigação oficial, se distingue se a intervenção estatal deve ser judicial (princípio inquisitivo) ou se há de estabelecer uma autoridade estatal especial como encarregada das acusações, sendo esta a que exige dos tribunais a proteção jurídica (princípio acusatório formal, ou princípio da investigação, oficial mediante acusação formal)".

148 BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias. Um estudo sobre os sujeitos no processo em um sistema acusatório. Revista Justiça e Sistema Criminal. Modernas Tendências do Sistema Criminal. Curitiba: FAE Centro Universitário, v. 2, n. 1, p. 103-126, jan.-jun. 2010, p. 104-105.

O problema para se referenciar um modelo de processo acusatório também é enfrentado em outros ordenamentos jurídicos alienígenas, como na Itália. A doutrina italiana identificou o dilema da referência legislativa a um “sistema acusatório”, pois trata-se de uma fórmula imprecisa, de definição que não possui um significado único e universalmente aceito. Um exato modelo processual acusatório não traz consigo uma unanimidade entre os juristas, pois sua significação depende de opções ideológicas relacionadas à hierarquia de valores aos quais estão implicados a justiça penal149.

A lei de delegação italiana do Codice di Procedura Penale italiano de 1988 fez referência ao sistema acusatório procurando explicar seu significado através de 105 princípios e critérios de orientação hermenêutica. Porém, muitos deles poderiam se encaixar no modelo inquisitório, pois a legislação italiana permite ao Ministério Público determinar prisões, decretar sigilo bancário e fiscal, decretar sigilo em investigações à margem de decisão judicial, além de permitir ao juiz intervir e determinar provas de ofício150.

A vinculação da exegese de um Código a um sistema que não apresenta critérios para sua identificação cria uma confusão de interpretação, de maneira a gerar discussões judiciais sobre o modelo de processo penal italiano adotado. O novo código italiano, que possuía uma coerência sistemática e deveria contribuir para as normas reguladoras do processo penal, após algumas reformas na tentativa de aperfeiçoar o enquadramento do sistema acusatório, somente fez crescer a instabilidade normativa e a incerteza do futuro cenário processual penal italiano151. A exemplo da Itália, a Corte Europeia de Direitos Humanos, assim como o Tribunal Penal Internacional vem enfrentando dificuldades de conduzir um único pretenso sistema acusatório em seus casos penais, tendo em vista o problema todo “decorrer da falta de definição do “sistema”, da falta de referencial histórico e da compreensão do alcance do chamado “sistema acusatório””152.

149 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 251-252.

150 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 252-255.

151 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 256-258.

152 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla

Nota-se que não existe uniformidade doutrinária para se localizar princípios unificadores dos pretensos sistemas processuais acusatório e inquisitório. A simples separação dos atores do processo e o fato de o magistrado possuir livremente a gestão da prova – de forma a assumir um papel intenso para a busca de elementos formadores da sua convicção – não têm se mostrado suficientes para a definição de um sistema.

Parte da doutrina procura identificar um princípio informador para buscar dentro do cenário constitucional e processual brasileiro o sistema adotado e os princípios que o fundamentam. Porém, a identificação do modelo de processo penal vigente no ordenamento brasileiro, ainda hoje é motivo de debate na doutrina, perfilhando entendimentos diversos sobre o tema, de acordo com as características de cada sistema processual penal ou de seu princípio fundante.