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4 SISTEMA PROCESSUAL PENAL E O CONTORNO CONSTITUCIONAL

4.6 A magistratura espectadora e a consensualidade no processo penal

A justiça penal fundada no consenso está estruturada em técnicas de negociação para a resolução de conflitos criminais, como uma alternativa ao método tradicional de realização da justiça penal, baseada na persecução penal.

A indicação de soluções consensuais foi trazida pela Constituição Federal de 1988, ao permitir a criação dos juizados especiais voltados exclusivamente à resolução de infrações penais de menor potencial ofensivo, com possibilidade de transação penal (art. 98, I, da CF/1988). Portanto, a Lei n. 9.099/1995 (Lei do Juizado Especial Criminal) já previu institutos ressocializantes, a exemplo da transação penal e da suspensão condicional do processo.

Em que pese muitos tratarem a “justiça consensual” e a “justiça negociada” como sinônimos, há quem os diferencie, na medida em que o consenso se refere à possibilidade de a parte/acusado aceitar ou negar as medidas impostas; já a negociação é a faculdade de tratar, examinar e sugerir o conteúdo das propostas, participando efetivamente das tratativas.

A despeito da distinção indicada, o processo penal consensual vem ocupando espaço, tornando possível que se renuncie às respostas tradicionais e adotando soluções alternativas ao processo e à aplicação de sanção penal.

Trata-se de um modo alternativo de resolução de conflitos para que acusação e defesa, protagonistas da discussão penal, conciliem e ajustem medidas a serem tomadas para se alcançar um resultado justo e adequado à solução de uma futura ação penal, ou ainda, de ação penal já em andamento. A possibilidade do processo penal consensual faz emergir um outro ator processual relegado há anos pelo processo penal tradicional: a vítima238.

Assim, o processo penal consensual não está modelado para atribuir valores às formalidades, mas às consequências do processo, ou seja, trata-se de um método inovador e condizente com um processo penal contemporâneo, que busca obter resultados justos entre as partes239, sem se esquecer da vítima. Além disso, lhe são característicos a racionalidade, a celeridade e a eficiência, todos voltados a proporcionar resoluções efetivas e melhor distribuição da justiça e a transformar o consenso em um importante instrumento processual de política criminal.

Dessa forma, os acordos firmados no âmbito de um processo penal consensual propiciam agilidade, de maneira a não sobrecarregar o aparato judicial, além de alcançar resultados efetivos, transformar o processo em um instrumento eficaz de realização de justiça penal, abreviar e simplificar o processo penal, alcançando, assim, uma política criminal eficiente240.

Outro ponto positivo241 desse contexto diz respeito à técnica consensual, ou seja, a proximidade entre o juízo e seus destinatários, de maneira que será decidido conjuntamente, com autonomia, a vontade do órgão de acusação, da defesa e da vítima através de uma relação horizontal entre os sujeitos, amparados pela lei e pela transparência. O objetivo é adotar a melhor solução ao caso concreto, sem a imposição de uma das partes sobre a outra, visando o atendimento de todos os interesses – e não de um acima do outro.

238 Arturo Rocco, um dos articuladores do Código Penal italiano, o qual inspirou o CPP/1941 ainda vigente no Brasil, ao discutir o direito de punir, apontou que o direito, através da lei penal, implica na violação do preceito penal, contra o violador, o acusado. Assim, não se trata de um direito da vítima, de um direito privado, pois ao contrário, se está diante de um direito público, ou seja, de um direito de Estado. Portanto, ao invés de vingança, este direito seria uma defesa social. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. v. 1. Florianópolis, SC: Tirant lo Blanch, 2018, p.

214.

239 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 145.

240 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de; DEMERCIAN, Pedro Henrique. Um novo modelo de atuação criminal para o Ministério Público brasileiro: agências e laboratório de jurimetria, Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, v. 11, n. 1, 2017. Disponível em:

http://www.esmp.sp.gov.br/revista_esmp/index.php/RJESMPSP/ article/view/338. Acesso em: 10 jul. 2020.

241 OLIVEIRA, Rafael Serra. Consenso no processo penal: uma alternativa para a crise do sistema criminal.

São Paulo: Almedina, 2015, p. 76-77.

Nota-se que o processo penal consensual é um caminho ainda a ser pavimentado através do diálogo e da eficiência, para tornar-se um instrumento de política criminal capaz de superar desafios do sistema jurídico-penal, como a morosidade e a ineficiência da administração da justiça, a carência de valorização da vítima no processo penal e a obtenção de resultados justos e adequados às partes, tornando efetivo e resolutivo o combate aos problemas sociais contemporâneos.

Importante registrar que o processo penal consensual não viola a estrutura acusatória, pois no momento da celebração de um acordo, as funções de acusação, defesa e órgão imparcial estão preservadas.

O consenso não foi previsto no processo penal tradicional, assim, sob essa ótica, esse instituto pouco pode ser explicado ou até aceito. Para a sua aceitação deve haver uma compatibilização das normas processuais penais com a Constituição Federal, longe das amarras impostas por um processo penal anterior as normas constitucionais vigentes.

O órgão de acusação, titular da ação penal, proporá o consenso, conforme as possibilidades regradas; a defesa, por sua vez, avaliará se o acordo respeita a legalidade e os direitos individuais do acusado; por fim, ficará a cargo do juiz, imparcial e inerte – pois não influenciará nas tratativas – decidir, fundamentadamente, sobre a homologação do acordo, além de atuar no controle e na garantia da legalidade e na paridade de armas.

No sistema acusatório, no qual há a separação das funções de Estado-acusador e Estado-julgador, ao se implementar a consensualidade no processo penal, deve haver uma preponderância da atuação do Ministério Público como titular da ação penal e, por consequência, uma redução do protagonismo da autoridade judicial.

A participação da magistratura no acordo de não persecução penal, por exemplo, restringe-se a homologar, aferir os requisitos legais e conferir eficácia ao que foi ajustado pelo órgão de acusação e o imputado. A atividade do magistrado no consenso é, pois, bastante restrita, enquanto na colaboração premiada, conforme observa Pedro Henrique Demercian, o cenário é um pouco diferente:

Não é por outra razão que o artigo 4º, §§ 6º e 7º, estabelece com muita clareza que o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração. Esse dispositivo, por sinal, é consentâneo com um processo penal de estrutura acusatória, que observe rigorosamente a iniciativa das partes e a inércia de jurisdição242.

242 DEMERCIAN, Pedro Henrique. A colaboração premiada e a lei das organizações criminosas. Revista Jurídica ESMP-SP, v. 9, p. 53-88, 2016, p. 73.

Na hipótese de acordo de não persecução penal (medida pré-processual), caberá somente ao titular da ação penal pública propor o acordo, não cabendo sob qualquer hipótese essa iniciativa ao magistrado, pois trata-se de tarefa que não lhe é afeta. Assim, a importância da magistratura na justiça consensual reveste-se na necessidade de se estabelecer um controle, pois o magistrado não participa de nenhuma das suas fases, como também não será intermediário da vontade das partes. A função judicial se limita a validar um acordo, a verificar as condições de adequação aos dispositivos legais, podendo o magistrado observar se há fundamentos legais ou não para a sua homologação.

Não é possível haver intervenção judicial ex officio para refazer cláusulas, ou ainda, participar no acordo, mas é possível devolvê-lo quando se verificar condições insuficientes da proposta, ou se abusiva, excessiva ou estranha à disciplina legal243.

Se recusada a homologação, o magistrado devolverá os autos ao Ministério Público para oferecer denúncia, realizar diligências ou interpor recurso contra a decisão, na hipótese de recurso em sentido estrito244.

Embora a magistratura seja espectadora no processo penal consensual, a doutrina estabelece contornos próprios para sua atuação perante a negociação entre as partes do processo.

Na hipótese, por exemplo, da colaboração premiada, embora o papel do juiz seja homologatório, a análise judicial deverá corresponder ao modelo processual penal constitucional, ou seja, controlar a legalidade, a regularidade e a voluntariedade das declarações do colaborador245.

A resolução do litígio de índole criminal através do consenso das partes, ao apontar caminhos para a justiça restaurativa e menos punitivistas, também abarcado pela Lei Anticrime (através do acordo de não persecução penal), não é uma novidade no sistema brasileiro de justiça criminal. Consolidada no direito estrangeiro, o processo penal consensual foi inaugurado pela Lei n. 9.099/1995, que tratou dos institutos da composição civil, da transação penal e da suspensão condicional do processo.

Posteriormente, a Lei n. 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas) trouxe o acordo de colaboração premiada, adquirindo regras e particularidades próprias desse instrumento de consenso, de forma a tornar-se um mecanismo fundamental para combater, entre outros delitos, a criminalidade organizada.

243 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Art. 28, § 5º.

244 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Art. 581, XXV.

245 HARTMANN, Stefan Espírito Santo. O papel do juiz nos acordos de colaboração premiada. In: PACELLI, Eugênio; CORDEIRO, Nefi; REIS JÚNIOR, Sebastião dos (org.). Direito penal e processual penal

contemporâneos. São Paulo: Atlas, 2019, p. 164-174.

Assim, o acordo de não persecução penal abriu mais espaços para a substituição das penas privativas de liberdade como medida de prevenção e de repressão ao crime.

O agir resolutivo – através de um processo penal consensual, em meio às mudanças de comportamentos da sociedade contemporânea e a exigência de novas formas de controle social – é imperioso, pois trata-se de fomentar instrumentos de racionalização, pautados na informalidade, na transparência e na eficiência, a fim de se concretizar resposta jurisdicional adequada.

4.7 Poderes de investigação: vedação da investigação probatória e produção de prova