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3 O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTALIDADE DE POLÍTICA CRIMINAL

3.3 O processo penal e a política criminal

O processo penal, caso tenha alguma utilidade política-criminal a ser perseguida, deve ocorrer nos limites estritos colocados pela dogmática processual penal75.

A questão é debatida na doutrina, pois há quem entenda existir um modelo processual penal fundado exclusivamente em premissas dogmáticas, de forma a assegurar a igualdade e a

72 DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY Jorge Assaf. Curso de processo penal. 9. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2014, p. 1.

73 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 294.

74 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Desvinculando-se da ditocomia “inquisitório versus acusatório” e firmando-se o novo paradigma constitucional para sistema processual penal brasileiro, funcionalizado pela dupla baliza de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente. In: CAMBI, Eduardo; GUARAGNI, Fábio André. Ministério Público e princípio de proteção eficiente. São Paulo: Almedina, 2016, p. 294.

75 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 44.

formalidade na aplicação do direito penal material, não se permitindo a valoração de política-criminal, ou um outro modelo, que para além de sua missão de garantia, possa perseguir as finalidades políticas-criminais.

Outros sustentam a preferência a um processo penal com isenção à uma orientação político-criminal, ou seja, com uma dogmática fechada, sob a justificativa da possibilidade de se colocar em risco a segurança jurídica e a consequente função protetora da liberdade individual atribuída ao processo penal.

Pesa ainda em sentido contrário a uma orientação de política-criminal no processo penal a possibilidade de se ocultar outras formas de interesses – políticos e ideológicos – daqueles a quem o sistema deve ser orientado, contrários à segurança pública e à liberdade individual, corrompendo, assim, as bases formadoras do Estado de Direito. O raciocínio não está incorreto, contudo, trata-se de possibilidade viável mesmo na versão do processo penal de pura dogmática.

Por outro lado, há quem admita a orientação político-criminal dentro de um enquadramento sistêmico do processo penal. Como ocorre no direito penal material, o processo penal será revestido em um modelo para se exteriorizar a política criminal conforme o aspecto funcional (modo de validade jurídica) e o aspecto garantista (limites ancorados nos valores e nos princípios constitucionais).

Sob o aspecto funcional, relaciona-se a maior eficiência do processo penal, pois são catastróficos os efeitos produzidos por sua lenta tramitação, na medida em que há uma quebra de confiança do cidadão à tutela eficaz, o que estimula a autodefesa – além disso, quanto mais longínquo o fato, maior será a dificuldade de comprovar sua efetiva ocorrência. A resposta da prática delitiva ao autor do delito deve ser célere, para que possa, quiçá, aceitar a punição, além de restituir a paz jurídica causada pelo fato criminoso76.

A funcionalidade do processo penal está presente na Lei n. 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais), pois esta tornou o processo penal relativo aos delitos de menor potencial ofensivo mais simples, rápido, eficiente, democrático e mais próximo da sociedade77.

Já o aspecto garantista, para uma integração político-criminal do processo penal, demanda limitar e controlar a concentração de poder, no qual se encontram as garantias pessoais e a formalidade jurídico-processual.

76 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 55-56.

77 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 55-56.

A busca do equilíbrio entre os aspectos de funcionalidade e o garantista do processo penal deve girar em torno de uma complementaridade, evitando-se que um deles exclua o outro.

O processo penal não pode, afinal, orbitar em um apego desmedido da sua tradicional visão garantista, mas também não pode tolerar a adoção de um processo penal ágil destituído de garantias processuais, assim, “impõe-se uma ponderação entre os interesses da funcionalidade e garantia, tendo como limite a indispensabilidade ao máximo daquelas garantias que se fizerem necessárias para a tutela da dignidade humana”78.

O processo penal possui caráter instrumental, ou seja, serve para materializar a pretensão penal do Estado, conforme as normas de direito material. Porém, sua função deve ser estudada sob uma óptica que vai além, mais rica do que a afirmação de o processo penal ser um mero instrumento de aplicação do direito material.

Conforme explica Fernando Fernandes, há muito tempo o processo penal deixou de ser apenas a ideia do papel modesto e discreto do dogma da mera instrumentalidade para se transformar "num ‘servo loquaz’, sendo-lhe atribuído o papel de ‘sócio paritário’ do Direito Penal na missão de definir os termos da relevância penal e da responsabilidade”79.

Assim, tanto o direito penal material como o processo penal são duas pontas essenciais de um único sistema que, embora apresentem perfis diversos, estão entrelaçados por um projeto único de política-criminal, por isso, são desastrosas as consequências que geram a falta de sintonia entre o programa de política-criminal traçado pela lei de direito penal material e aquele projetado na lei processual penal.

O descompasso entre o processo penal e os fins político-criminais almejados pelo sistema jurídico-penal pode levar a contradições intrassistêmicas nocivas à atividade persecutória estatal e, ainda, aos próprios anseios de proteção de interesses politicamente escolhidos. Assim, como o direito penal, para se realizar o processo penal “faz-se imprescindível analisar se esse, em sua estruturação, leva em consideração as intenções político-criminais do sistema como um todo, o que demanda enfrentar a necessidade de posicionar o processo no âmbito geral da política-criminal”80. Afinal, há que se ter uma sintonia entre o direito penal e o processo penal através das necessidades advindas da política-criminal.

78 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 67.

79 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 69.

80 CUNHA, Vítor Souza. Acordos de admissão de culpa no processo penal – devido processo, efetividade e garantias. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 30.

Como forma de viabilizar a integração da política-criminal dentro do processo penal, é necessário transpor ao processo as finalidades de política criminal orientadas do sistema jurídico-penal.

Não se deseja excluir a autonomia teleológica de cada um dos subsistemas integrantes do sistema jurídico-penal, porém, não é adequada a exclusão recíproca das finalidades de política criminal nas quais cada uma delas se alicerça81.

Para compreender-se a melhor forma de utilização do processo penal, é necessário conhecer com mais profundidade os problemas sociais contemporâneos, de modo a fazê-lo tornar-se útil, eficiente e eficaz no contexto atual.