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4 SISTEMA PROCESSUAL PENAL E O CONTORNO CONSTITUCIONAL

4.4 O Ministério Público e o monopólio da ação penal pública

jurisdição penal (inciso LIII), a proibição de provas ilícitas (LVI), a presunção de inocência (LVII), as garantias de ampla defesa e contraditório no processo penal (inciso LV), o juiz natural (XXXVII c.c LII), o tribunal do júri para crimes dolosos contra a vida (XXXVIII), a publicidade (XXXIII c.c LX) e o direito ao silêncio (LXIII), ampliado pelo princípio da não autoincriminação (Pacto de San José da Costa Rica, art. 8, 2, "g"). Ainda complementam essa vertente o princípio da inércia jurisdicional (implicitamente extraído do art.

129, I), bem como nova referência à publicidade e a necessidade de fundamentação das decisões estampados no inciso IX do art. 93 da Constituição179.

A outra baliza unificadora do processo penal é a proibição da proteção insuficiente, que pode ser identificada através de alguns princípios constitucionais:

a ação penal privada subsidiária (LIX), a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (LXVIII), a possibilidade de prisão em flagrante (XI c.c LXl), a inafiançabilidade para crime de racismo (XLII), para crimes hediondos e equiparados (XLIII), e para ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (XLIV), a possibilidade de prisão cautelar (LXl c.c. LXVI), a possibilidade de interceptação de comunicação telefônica e a possibilidade de expedição de mandado de busca e apreensão (XI), complementados pelo princípio da oficialidade, consignado na regra do monopólio da ação penal de natureza pública pelo Ministério Público (art. 129, I)180.

Rodrigo Chemim explica que é na harmonização dessas duas vias, do Estado e pelo Estado, que se identificam os princípios unificadores do processo penal constitucional brasileiro.

E é a partir desses princípios, todos moldados aos objetivos do processo penal numa perspectiva constitucional, que se fundamenta um modelo de sistema processual constitucional, capaz de enfrentar alguns dos problemas da justiça criminal, e a possibilitar uma nova leitura dos institutos que terão reflexos diretamente no cumprimento dos objetivos do processo penal, principalmente institutos que têm relação direta com o órgão acusatório, o Ministério Público.

intrínseca com as normas constitucionais, de forma a impactar diretamente o sistema processual, e por consequência o Ministério Público, a parte acusatória definida pela Constituição Federal de 1988.

A origem do Ministério Público se confunde, mistura-se com o exercício da ação penal pública181. Historicamente, o início da ação penal era privada, o que significa dizer que ficava a cargo do ofendido. Posteriormente, foi entregue a qualquer do povo a difícil tarefa de acusar publicamente aquele infrator da lei penal, revelando um Estado indiferente ao resultado do julgamento.

O resultado da demanda penal era oriundo das habilidades das partes e suas malícias, o que trazia evidente prejuízo à persecução penal. Posteriormente, superada a ideia da sociedade liberal individualista romana, após uma evolução cultural significativa, surgiu o sistema inquisitório, influenciado diretamente pelo direito canônico.

Com o Estado à frente do interesse de combater e reprimir a criminalidade, o particular afastou-se dessa tarefa; o juiz passou, então, a formular a acusação e a perseguir a prova, fazendo desparecer o triângulo processual. A relação ficou restrita entre juiz e réu, este último considerado mero objeto de investigação.

Nesse contexto, a prova não servia ao juiz-acusador para demonstrar a verdade – à época utilizava-se a confissão, que era extraída mediante tortura – mas para atingir a prova plena e justificar a condenação.

Entendeu-se, então, que o Estado precisava criar mecanismos seguros para prestar a atividade judicial, de forma a afastar o juiz das atividades persecutórias, atuando de forma independente da sua vontade ou interesses das partes, com imparcialidade.

Esse objetivo foi atingido com a institucionalização do Ministério Público, “que pode ser considerado o verdadeiro “ovo de colombo” para o processo penal que surgiu modernamente”182. Baniu-se a figura do juiz inquisitivo, com a separação cabal entre “acusação”

e “jurisdição”, e o Ministério Público tornou-se o “dono”183 ou “senhor”184 da ação penal pública, o dominus litis.

O Ministério Público, ao agir pelo Estado, assumiu a titularidade da persecutio criminis in judicio, a partir da volta das três funções concedidas a agentes diversos, e sem acusação

181 Sobre a origem do Ministério Público conferir: LYRA, Roberto. Novo direito penal: introdução. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 17-23.

182 JARDIM, Afrânio Silva. Ação penal pública – princípio da obrigatoriedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 25.

183 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 87.

184 NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 25.

privada. O processo penal publicizou o sistema acusatório através de meios para a descoberta da verdade, resguardando direitos individuais e preservando a defesa social.

No sistema acusatório, a jurisdição penal deve ser provocada pelo órgão acusador do Estado, sem justiça privada, e no qual os exercícios das atividades jurisdicionais são realizados por órgãos absolutamente independentes.

A atuação do Ministério Público, como órgão acusador do Estado, deve ser pela correta aplicação da lei, a funcionar no caso concreto como um custo iuris, tendo em vista que o Estado não tem interesse em sustentar uma acusação injusta. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 129, I, instituiu a cláusula constitucional para atribuir ao Ministério Público o monopólio da ação penal, incumbindo-o ainda do exercício da promoção da política criminal repressiva no Brasil185. Além da ação penal pública, o Ministério Público tem legitimidade ativa para requerer medidas acauteladoras e demais incidentes previstos no Código de Processo Penal, embora a legislação processual atribua capacidade postulatória a outros órgãos e autoridades públicas, contrariamente ao comando constitucional186.

Ademais, ser titular da ação penal pública é um dos fundamentos para a possibilidade de o Ministério Público exercer poderes investigatórios criminais, por isso, não se pode falar em

“monopólio” de investigação criminal pela polícia.

Alexandre Magno Benites de Lacerda, ao afiançar a possibilidade e a necessidade da investigação criminal pelo Ministério Público, esclarece:

No Estado Democrático de Direito, o Ministério Público brasileiro – instituição independente dos demais Poderes – tem a missão constitucional de atuar de forma proativa e eficaz, em especial, no combate a corrupção e ao crime organizado, que ofendem de sobremaneira bens jurídicos e valores fundamentais da sociedade, precipuamente em razão de sua titularidade privativa na ação penal187.

Não se coaduna com um Estado Democrático de Direito a perspectiva legal e doutrinária de que uma única instituição reúna em si todos os poderes de investigação possíveis, excluindo, assim, outras instituições que possuem semelhante missão constitucional em suas respectivas áreas de competência. É o que adverte Alexandre Rocha: "Aliás, a ideia é

185 GAZOTO, Luís Wanderley. O princípio da não-obrigatoriedade da ação penal pública – uma crítica ao formalismo no Ministério Público. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 115.

186 MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Ministério Público – a Constituição e as Leis Orgânicas. São Paulo:

Atlas, 2015, p. 111.

187 LACERDA, Alexandre Magno Benites de Lacerda. A investigação criminal pelo Ministério Público na visão do Supremo Tribunal Federal. In: LACERDA, Alexandre Magno Benites; et al. Garantismo e processo penal.

Campo Grande: Contemplar, 2019, p. 95.

paradoxalmente contrária a um modelo de processo penal de caráter constitucional que defenda um sistema cada vez mais acusatório, em detrimento das reminiscências inquisitórias da época do feudalismo"188.

Conforme pondera Hugo Nigro Mazzilli, quando o Ministério Público deixa de propor uma ação penal, ao deixar de acusar, é a única hipótese identificada em que a instituição

“condiciona o ius puniendi do Estado soberano. Somente o Ministério Público pode, fundamentadamente e de acordo com a lei, decidir pelo Estado, por sua palavra final, a não acusação” 189.

A exceção da privatividade da ação penal pública está presente em duas hipóteses decorrentes da própria Constituição Federal de 1988: a) a ação penal privada subsidiária da pública (art. 5º, LIX, da CF/1988); e b) a situação provisória, quando da nomeação de um advogado para responder interinamente, pela Procuradoria-Geral, quando da criação de um Estado (art. 235, VIII, da CF/1988).

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, foram derrogados todos os procedimentos que remanesciam no CPP/1941 contrários à normativa constitucional, abolindo os procedimentos penais ex officio e judicialiformes, instaurados e parcialmente instruídos pela autoridade policial, comprometendo em ambos os casos a imparcialidade na colheita de provas e o contraditório, prestigiando-se, dessa forma, o sistema acusatório.

Ainda não será qualquer órgão estatal que poderá ingressar com a ação penal pública, assim como também não será qualquer do povo, pois trata-se de uma restrição que reforça, implicitamente, o rol de direitos fundamentais, restringido a apenas um órgão estatal, alinhado ao interesse público, a possibilidade constitucional de se ingressar com a ação penal pública190. Não se admitem, além de serem repudiados, quaisquer expedientes que tencionem transferir essa tarefa para outro órgão, salvo quando decorrente da própria Constituição Federal191.

Portanto, decorrerá do monopólio da ação penal pública exercida pelo Ministério Público, além de lhe ser permitido o exercício do poder investigatório, a decisão final de arquivar qualquer peça de informação criminal, seja fundado em análise da justa causa da ação penal ou

188 MORAES, Alexandre Rocha Almeida. A política criminal pós-1988: o Ministério Público e a dualidade entre garantismos positivo e negativo. In: SABELLA, Walter Paulo; DAL POZZO, Antônio Araldo Ferraz; BURLE FILHO, José Emmanuel (coord.). Ministério Público: vinte e cinco anos do novo perfil constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 763.

189 MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 359.

190 GARCIA, Emerson. Ministério Público – organização, atribuição e regime jurídico. 5. ed. São Paulo:

Saraiva, 2015, p. 406.

191 MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Ministério Público – a Constituição e as Leis Orgânicas. São Paulo:

Atlas, 2015, p. 111.

mediante o uso da justiça penal consensual, “a partir de uma ótica contemporânea do processo penal baseado no princípio acusatório”192.

A titularidade do direito de ação penal pública pelo Ministério Público decorre da evolução do sistema acusatório e de todos os reflexos processuais dele oriundos. Assim, o CPP/1941 deve ser revisto e moldado a modelo de processo penal com suporte real no atual regime constitucional. É necessário adequar os novos instrumentos de política criminal, a exemplo da possibilidade de se fazer uma releitura do princípio da obrigatoriedade da ação penal, permitindo a elaboração de acordos e de negociações com os acusados, considerando o interesse público e o interesse das vítimas, além da possibilidade de “não acusar” dentro de limites impostos constitucional e legalmente, com vistas a um processo penal voltado à sociedade contemporânea, cujos efeitos já foram gerados pela globalização diante da imposição de diversos desafios correlacionados ainda a serem enfrentados.

A titularidade da ação penal possui também como objetivos proteger o réu dos arbítrios do Estado e garantir à vítima e à sociedade uma resposta do Estado para os infratores da norma penal.

Com perfil dotado pela Constituição cidadã, constituído de garantias e abrigado pelo princípio da unidade e da independência funcional, o Ministério Público, na ação penal pública, representa a sociedade. Assim, é necessária a imposição da formatação de políticas criminais pautadas pela eficiência, que deverão nortear sua atuação como órgão indivisível e assegurar sua missão constitucional de defesa do regime democrático193.

4.5 O princípio da obrigatoriedade e sua repercussão no sistema processual penal