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3 O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTALIDADE DE POLÍTICA CRIMINAL

3.1 O sistema de direito penal

3 O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTALIDADE DE POLÍTICA

Conforme ressalta Fernando Fernandes:

Um sistema Punitivo Estatal que se pretenda moderno, funcional, evoluído quanto à orientação e às consequências, somente pode comprometer-se a uma função de antecipar e evitar a ocorrência dos conflitos; numa palavra: ser inspirado por motivos de política criminal63.

No Brasil, Roberto Lyra criou a Escola Brasileira de Direito Penal Científico, pela qual buscou compreender de forma global o direito penal enquanto ciência, organizando-o em dois blocos: 1 – direito penal científico e 2 – direito penal normativo. O científico competia estudar de forma vertical a criminalidade (conceito sociológico), enquanto o direito penal normativo tinha como objetivo analisar o crime horizontalmente (conceito jurídico)64.

O direito penal, enquanto ciência social, não pode permanecer distanciado das questões humanas que o cercam, ou seja, deve existir proximidade entre ele e a realidade social. Contudo, observa-se que as lições sobre uma ciência global do direito penal foram concebidas por uma influência clássica-liberal-individual, mas a dogmática, através das suas bases normativas, continuou em uma posição de supremacia sobre a política criminal e a criminologia, fincadas em bases empíricas.

Atualmente, a busca tanto por um direito penal quanto por um processo penal democráticos para materializar direitos fundamentais exige a compreensão de uma nova concepção de “ciência global do direito penal”, a reunir a dogmática penal, a criminologia e a política criminal não como ciências hierarquizadas entre si, mas autônomas, complementares e independentes, para assim, formular leis com vistas à racionalidade delas65.

Isoladamente, a dogmática penal não é capaz de responder aos novos desafios, razão pela qual deve ser referenciada pela política criminal e apoiada na criminologia66. Por isso, o objeto do direito penal não pode ser apenas o direito positivo, marca da dogmática jurídico-penal tradicional. A dogmática jurídico-penal não será enfraquecida, tampouco negada a sua importância, pois trata-se de uma conquista para o cumprimento da relevante função de garantir os direitos individuais ante o direito de punir do Estado.

63 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 32.

64 LYRA, Roberto. Novo direito penal: introdução. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 1.

65 TURESI, Flávio Eduardo. Justiça penal negociada e criminalidade macroeconômica organizada – o papel da política criminal na construção da ciência global do direito penal. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 55.

66 TURESI, Flávio Eduardo. Justiça penal negociada e criminalidade macroeconômica organizada – o papel da política criminal na construção da ciência global do direito penal. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 44.

Busca, ao contrário, ampliar o espaço de ocupação da política criminal e da criminologia dentro da ciência do direito penal como um todo para, assim, permitir a aproximação da realidade social concreta, ou seja, que o órgão acusatório possa tratar como crime o que realmente deve ser considerado como tal e descriminalizar aquilo que não deve ser objeto de atenção criminal, conforme os limites legais empregados e balizados na Constituição Federal, nos tratados internacionais e nas legislações pertinentes, de maneira a racionalizar a atuação da atividade persecutória estatal.

O direito penal não pode ser considerado uma ciência neutra, pois sua construção é um lento e inacabado processo, sujeito a influências externas e, inclusive, ideológicas, conforme observa Antonio Carlos da Ponte:

O Direito Penal possui ideologia e esta deve servir a um modelo de sociedade.

A ideologia do Direito Penal, em um Estado Democrático de Direito, não é a mesma ideologia adotada em um Estado autoritário. Essa diferença conceitual e de fundamentos serve à demonstração de que a dogmática não pode ser interpretada de forma neutra e descompromissada, como se estivesse acima dos fundamentos da sociedade67.

A influência ideológica dentro de um Estado autoritário, em uma perspectiva dogmática, tende a negar direitos e liberdades individuais, ao contrário da influência ideológica precedida em um ambiente democrático, no qual impera o respeito aos direitos fundamentais.

Esses mesmos pressupostos metodológicos e jurídico-políticos que sustentam a concepção da unidade funcional entre a política criminal e a dogmática penal, podem ser estendidos, sem óbices, ao processo penal, pois esse integra o sistema de justiça criminal, com fundamento também no modelo jurídico-constitucional, possibilitando buscar uma coesão dos elementos internos desse sistema e sua estruturação para não ser contraditória68.

Certo é que a dogmática deve exercer a política criminal nos limites da interpretação, pois não se poderia aplicá-la puramente, visto que não se concebe um juiz legislador, nem mesmo um órgão acusatório sem limites, sob pena de ofensa aos princípios da separação dos poderes, além de promover insegurança jurídica e romper o pacto social. Assim, a política criminal exterioriza-se harmoniosamente com a dogmática, através das normas de direito penal e de processo penal, com respeito aos seus princípios.

67 PONTE, Antonio Carlos da. Crimes eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 145.

68 CUNHA, Vítor Souza. Acordos de admissão de culpa no processo penal – devido processo, efetividade e garantias. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 33.

No sistema jurídico-penal, deve-se encontrar o posicionamento e a relação junto ao processo penal, mais do que uma relação do direito processual para concretizar o direito substantivo. O processo penal deve, então, ser reconhecido como uma parte do direito penal porque embora se deva respeitar a autonomia de cada um deles, suas relações são estreitas, visto que no aspecto de política criminal ambas disciplinas estão em uma relação de complementaridade.

Na lição de Jorge de Figueiredo Dias69, entre o direito penal e o processo penal existe uma relação mútua de complementaridade funcional. Portanto, ao se considerar a existência entre o direito penal e processual penal de uma “relação mútua de complementaridade funcional”, há também que se impor uma limitação de natureza epistemológica, pois não existe assimilação completa entre as duas disciplinas, não se negando assim a autonomia de princípios existente entre ambas.

Quando há uma aspiração político-criminal para se efetivar a proteção penal a determinado bem-jurídico, por meio da criminalização de um determinado comportamento, geralmente, ignora-se por completo a necessidade de se avaliar a capacidade do processo penal para suportar as novas demandas. É justamente essa falta de capacidade que possui o poder de criar uma crise de efetividade, trazendo como consequência a falta de credibilidade no sistema penal.

Diante disso, uma possível orientação política-criminal do processo penal possui como finalidade, além de garantir direitos individuais, desestimular comportamentos desviantes. Essa complementaridade funcional permite então, assim como o direito penal, que o processo penal também seja orientado em termos de política criminal.