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3 O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTALIDADE DE POLÍTICA CRIMINAL

3.4 A evolução criminal e o processo penal

Como forma de viabilizar a integração da política-criminal dentro do processo penal, é necessário transpor ao processo as finalidades de política criminal orientadas do sistema jurídico-penal.

Não se deseja excluir a autonomia teleológica de cada um dos subsistemas integrantes do sistema jurídico-penal, porém, não é adequada a exclusão recíproca das finalidades de política criminal nas quais cada uma delas se alicerça81.

Para compreender-se a melhor forma de utilização do processo penal, é necessário conhecer com mais profundidade os problemas sociais contemporâneos, de modo a fazê-lo tornar-se útil, eficiente e eficaz no contexto atual.

de incertezas, inseguranças e riscos, exige-se a modificação de paradigmas e a adaptação dos indivíduos e das instituições aos novos desafios originados pelo tempo social acelerado no qual se vive hoje.

É característico do mundo globalizado a crescente busca por sistemas desburocratizados que promovam resultados no menor tempo possível, em um cenário em que a ciência dinâmica que rege as relações sociais se adapte a algumas exigências trazidas pela pós-modernidade, afastando a atual estrutura formalista e ineficiente aos olhos dos atuais interesses da sociedade.

O sistema jurídico deve ser enquadrado conforme as necessidades da sociedade contemporânea, na medida em que a ciência jurídica precisa comportar-se de acordo com as transformações sociais, pois ela é um produto da sociedade. Assim, o cenário contemporâneo exige uma modernização do sistema jurídico baseado em instrumentos voltados à concretização de eficiência, da racionalidade e de resultados efetivos. Sistema esse que deve ser permeado pela desburocratização, racionalização, celeridade, maior custo-benefício social e econômico, além de exigir uma atuação de várias disciplinas e da integração das instâncias de controle social, como forma de ajustamento às complexidades inerentes à sociedade pós-moderna.

Nessa linha, o direito penal e o processo penal de cunho tradicional e liberal estão se demonstrando incapazes de, isoladamente, fazerem frente aos desafios apresentados com a evolução da sociedade em uma era globalizada. Isso porque, essa evolução desencadeou o surgimento de novas práticas delitivas e lesivas, de forma a gerar uma sensação de insegurança aos indivíduos, elevando a exigência de novas formas de atuação do Estado, como resposta efetiva e de proteção, a partir do direito penal e do processo penal, tendo em vista a relação de complementaridade entre ambas as disciplinas.

É parte deste processo de globalização o surgimento de crimes mais violentos, difusos e organizados, condutas que estão cada vez mais complexas e que continuam a se transformar em alta velocidade. Nesse quadro, avista-se uma possível tensão entre a prevenção e a garantia, e, ainda, entre legalidade e política criminal, com tendência para resolver-se para o lado da segurança e da prevenção.

Para enfrentar essa tensão envolvendo a política criminal, há de se pensar em alternativas de ordem processual para distensionar o sistema punitivo, em busca de um equilíbrio entre a legalidade (garantia) e a política criminal (funcionalidade).

O sistema de justiça-penal contemporâneo acima pode ser atingido, dentre outras formas, pela ineficiência e pelo aumento da criminalidade, ampliando também a sensação de impunidade difundida na sociedade e a lentidão da resposta penal.

O delito deixou de ser restrito a fronteiras geográficas, conduzindo hoje a novos desafios a serem enfrentados por penalistas e processualistas envolvendo questões penais externas aos territórios, a exemplo dos crimes de tráfico internacional de drogas, lavagem de dinheiro, tráfico de pessoas, transferência ilícita de capitais, crimes cibernéticos, organizações criminosas e pedofilia, a exigirem uma modernização do direito penal e do processo penal capazes de criar instrumentos para combater essas espécies delituosas.

Atualmente vive-se numa sociedade dependente da tecnologia, da informática que alcança todos os setores da vida pública ou privada. A evolução da sociedade nesse sentido tornou-se também, sob alguns aspectos, seu maior problema, pois não há um sistema digital absolutamente seguro. Hoje, a tecnologia propicia ações antes não imaginadas, como o ataque de hackers ou ciberpiratas invadindo diversos sistema considerados extremante seguros, como o sistema de defesa norte-americano84. A internet serve, ainda, como meio para se propagar informações criminosas85, como a preparação de explosivos, de atividades terroristas e da prática do racismo.

A modernização através dos denominados veículos autônomos, se por um lado, promete reduzir acidentes, por outro, coloca em xeque o sistema de responsabilização penal, visto que mudanças como essa podem trazer novas formas de lesão a bens jurídicos tradicionais.

Para além disso, postula-se até mesmo novos bens jurídicos, atores ainda inéditos passíveis de responsabilização por danos ou ameaças a direitos de terceiros, a exemplo dos robôs como sujeitos de direito penal86.

Os atentados terroristas praticados contra várias nações ao redor do mundo, a exemplo dos ataques de 11 de setembro de 2001, em Nova York, e de 11 de março de 2004, em Madri, demonstram a necessidade de o direito penal e o processo penal serem vistos sob outras perspectivas nos ordenamentos jurídicos, como um sistema de freios e contrapesos junto aos

84 CANALTECH. Hackers invadem sistemas do Pentágono e encontram vários bugs de segurança. Por:

Jones Oliveira, 19 jun. 2016. Disponível em: https://canaltech.com.br/hacker/hackers-invadem-sistemas-do-pentagono-e-encontram-varios-bugs-de-seguranca-70247/. Acesso em: 02 fev. 2022.

85 VEJA SP. EUA denunciam jovem brasileiro adorador do massacre de Columbine. Adolescente morava na Zona Leste da capital paulista e foi alvo de busca e apreensão. 3 fev. 2022. Disponível em:

https://vejasp.abril.com.br/cidades/eua-denunciam-jovem-zona-leste-massacre-columbine/. Acesso em: 02 fev.

2022.

86 GLESS, Sabine; WEIGEND, Thomas. Agentes inteligentes e o direito penal. In: ESTELLITA, Heloisa;

LEITE, Alaor (org.). Veículos autônomos e direito penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

direitos e garantias fundamentais, tendo em vista a inexistência de direito fundamental absoluto, mas de direitos sujeitos a limites e restrições.

O surgimento das criptomoedas ampliou o risco à intimidade de dados pessoais e dos sistemas financeiros, gerando a necessidade de intervenção estatal na área penal também nesse segmento.

Assim, tendo em vista a sofisticação atual da criminalidade, os padrões clássicos do processo penal e do direito penal não são mais suficientemente aptos a enfrentá-la. Soma-se a isso a enorme quantidade de normas incriminadoras87, tendo em vista a necessidade de se proteger bens jurídicos em atenção aos novos interesses demandados pela sociedade, decorrentes das novas práticas e costumes advindos naturalmente do desenvolvimento social.

Nesse contexto, Alexandre Rocha pontua:

O chamado ‘direito penal moderno’, pautado pelo caos normativo e pela descodificação da legislação, implicou a criação de aproximadamente 700 novos tipos penais no Brasil desde a Constituição Federal: o aumento da moldura penal, a criminalização territorialmente extensa e a adoção de bens jurídicos ‘universais’ (supraindividuais, vagos e genéricos), evidentemente, pautaram novos paradigmas para o processo penal88.

O aumento desenfreado de normas penais incriminadoras, após o modelo do Estado Social que fundamentou o positivismo jurídico, criou o fenômeno da overload do sistema punitivo do Estado, “sobrecarregando tanto no que se refere à previsão dos crimes e respectivas sanções como também nos mecanismos de aplicação do Direito Penal, tornando-o não eficiente e não funcional”89.

Para Claus Roxin, haveria um aumento dos dispositivos penais, levando-os às alturas, devido ao crescimento de novas formas de comportamento puníveis: “uma criminalidade internacional, decorrente da abertura das fronteiras, que antes não era possível nestas proporções; mas também, por exemplo, uma criminalidade de drogas, decorrente do consumo que cresce constantemente”90.

87 MORAES, Alexandre Rocha Almeida. A política criminal pós-1988: o Ministério Público e a dualidade entre garantismos positivo e negativo. In: SABELLA, Walter Paulo; DAL POZZO, Antônio Araldo Ferraz; BURLE FILHO, José Emmanuel (coord.). Ministério Público: vinte e cinco anos do novo perfil constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 755.

88 MORAES, Alexandre Rocha Almeida. A política criminal pós-1988: o Ministério Público e a dualidade entre garantismos positivo e negativo. In: SABELLA, Walter Paulo; DAL POZZO, Antônio Araldo Ferraz; BURLE FILHO, José Emmanuel (coord.). Ministério Público: vinte e cinco anos do novo perfil constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 754.

89 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 97.

90 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Trad. Luís Greco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 16.

O problema agravou-se na medida em que passou a existir maior apego às preocupações em relação às garantias a serem conferidas aos cidadãos, de um lado, com a rigidez do dogma do princípio da legalidade (material e processual), de outro, tendo em vista as exigências dele decorrentes.

Esse fenômeno negativo iniciou-se em 1890, a partir da edição de centenas de leis penais até 1930, o que transformou o direito penal brasileiro em um verdadeiro caos. Mesmo após 1940, já na vigência do Código Penal, a inflação penal prosseguiu resultando num sistema penal falido.

Conforme destaca Luiz Luisi, o “sistema penal brasileiro é um sistema ineficiente, ineficaz, um verdadeiro “elefante branco”, que não ajuda em nada. E continuamos a editar leis, leis simbólicas”91.

São conhecidas como leis simbólicas aquelas elaboradas com o fim de apaziguar o eleitor. Trata-se, sobretudo, de uma atuação política a utilizar o direito penal para provocar uma impressão na população de combate ao crime e tranquilizar o cidadão cumpridor de leis, visando acalmar a opinião pública, ainda que as leis não sejam efetivamente cumpridas.

Como consequência, a edição de leis simbólicas contribui com a contínua expansão do direito penal sem proporcionar uma solução real à criminalidade, maquiando o correto enfrentamento dos problemas causados pela existência de uma crise em todo o sistema de justiça penal92.

Luiz Luisi93 argumenta ainda sobre a necessidade de se conter o desvario criminalizador em razão da inflação legislativa, ou, ainda, do patológico exagero das leis penais, colocando-lhe freios. Segundo o autor, é necessário dar uma nova forma ao princípio da legalidade, acoplando a este o princípio da necessidade, de forma a permitir o melhor controle jurisdicional da legislação, ou seja, considerando as reais oportunidade e necessidade de se aprovar determinadas leis penais.

Os novos parâmetros impostos pela pós-modernidade estabeleceram, por um lado, um conflito claro entre a criminalização e a expansão do direito penal, e, por outro, revelaram o insuficiente mecanismo burocrático processual desalinhado com as diretrizes constitucionais que deveriam formá-lo.

91 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 116.

92 ANDRADE, Roberta Lofrano. Processo penal e sistema acusatório – evolução histórica, expansão do direito penal e considerações críticas sobre o processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 161.

93 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 116.

A ausência ou a insuficiência de outras espécies de mecanismos de proteção não jurídicos – inclusive dos jurídicos, mas não necessariamente jurídico-penais – estão desprestigiados ou são insuficientes, a exemplo da ética social, do direito civil e do direito administrativo94.

O resultado, conforme observa Jesús-María Silva Sánchez, é desalentador “porque a visão do Direito Penal como único instrumento eficaz de pedagogia político-social, como mecanismo de socialização, de civilização, supõe uma expansão ad absurdum da outrora ultima ratio”95. Essa expansão em boa parte é inútil, “na medida em que transfere ao Direito Penal um fardo que ele não pode carregar”96.

Assim, a expansão de novos bens jurídicos é creditada a diversos fatores, às novas realidades, à manifestação de “bens escassos”, como o meio ambiente, e ainda em razão de um incremento essencial de valor experimentado pela sociedade, como consequência da evolução social e cultural, como o patrimônio-histórico e artístico.

Contudo, a expansão pode se dar em um espaço de “expansão razoável” ou, por outro lado, ocorrer uma “expansão desarrazoada” do direito penal que, por consequência, atingirá todo o sistema de justiça-penal, incluindo o direito processual penal, cuja função é realizar o direito penal.

A hipertrofia legislativa causa a ineficiência e sobrecarrega a justiça criminal, estruturada atualmente em mecanismos de atuação antigos e tradicionais, insuficientes para o enfrentamento da forma atual de criminalidade praticada em todo o mundo.

A sensação de insegurança é um fenômeno a trazer problemas no sistema de justiça, em especial, diante da atuação dos meios de comunicação, resultando naquilo que se denomina sociedade do medo. A transmissão de uma imagem da realidade permite ao receptor, que está longe e distante dos fatos, a viver a mesma sensação daquele envolvido no acontecimento. O receptor da imagem, ao possuir a mesma percepção e sentimento daquele envolvido com os acontecimentos, abre espaço para percepções inexatas e para a sensação de impotência. Com razão, “por outro lado, a reiteração e a própria atitude (dramatização, morbidez) com a qual se

94 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002, p. 58.

95 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002, p. 61.

96 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002, p. 61.

examinam determinadas notícias atuam como um multiplicador dos ilícitos e catástrofes, gerando uma insegurança subjetiva que não se corresponde com o nível de risco objetivo”97.

Assim, os meios de comunicação difundem a sensação de medo, de insegurança e de vitimização, como um meio de cobrar as instituições, invadindo a democracia pela emoção e motivando, por vezes, mudanças inadequadas na legislação penal ou até indevidas atuações institucionais.

A mídia exerce uma função de controle informal ao demonstrar grande colaboração para a expansão do direito penal através da sensacionalização e da dramatização de notícias criminais. Os meios de comunicação, nesse contexto, são hábeis na produção de uma sensação de insegurança, a exigir medidas dos poderes públicos, de forma a estimular a grande pressão popular por uma forte intervenção do poder público para que se aprovem reformas penais necessárias ao efetivo combate à aterrorizadora criminalidade.

No entanto, na realidade, o medo da criminalidade não é criado pelos meios de comunicação ou pelas instituições públicas, mas são as hipóteses que reforçam ou ainda estabilizam medos já existentes, “o medo do delito aparece como uma metáfora da insegurança vital generalizada”98.

Diante desse cenário, o direito penal é pressionado a proporcionar maior segurança à população, a ampliar a proteção penal para pôr fim à sensação de insegurança, pouco se discutindo a modificação ou não de garantias, muitas vezes consideradas demasiadamente rígidas e, por isso, se transformando em alvos de maior flexibilização.

O processo penal tradicional, na visão explorada pela mídia, retira a igualdade de partes e paridades de armas entre acusação e defesa, desmonta garantias constitucionais irrenunciáveis, cria um “processo penal paralelo” difundido pela mídia de forma superficial e emocional que não permite a todos os envolvidos a igualdade de oportunidade para a exposição de pontos de vista. A cobertura midiática macula a presunção de inocência, de forma desconhecida ou deliberadamente ignorada, para satisfazer o sensacionalismo e os interesses de alguns, provocando o desequilíbrio entre os sujeitos do processo, deixando a percepção de que os procedimentos de apuração são obsoletos e ineficientes. O processo penal passa a ser encarado,

97 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002, p. 38.

98 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002, p. 40.

então, como um meio demorado de se fazer justiça, em contrapartida à maneira célere e perfeita da investigação da mídia99.

Não se trata de reduzir a liberdade de expressão e informação, amparadas pela Constituição Federal, mas de encontrar um equilíbrio para que não se ultrapasse, nas palavras de Nieves Sanz Mulas, “el limite que separa la noticia del espetáculo, la crítica del descrédito infundado, las expresiones duras de la descalificación gratuita”100.

Outro reflexo negativo, que pode causar ineficiência ao sistema, é o congestionamento processual. Afinal, a morosidade da justiça pode ter origem desde questões ligadas ao aparelhamento dos órgãos judiciários, como em razão de questões relacionadas ao processo. O tempo gasto para se efetuar a prestação jurisdicional surge como um dos fatores da atualidade importantes no processo penal.

A razoável duração do processo judicial, assim como os meios que garantem a celeridade de sua tramitação, são direitos e garantias constitucionais a serem assegurados aos cidadãos (art. 5º, LXXVIII, da CF/1988). Um dos reflexos da morosidade do andamento dos processos é potencializado justamente pela inflexibilidade do princípio da legalidade, tanto no âmbito material, como no processual.

Exemplo disso se constata na aplicação estrita do princípio da legalidade na tutela penal de lesões insignificantes, a provocar a sobrecarga de trabalho na atividade judicial em razão da persecução de delitos menores, sem a existência de uma análise detida de justa causa para a ação penal pelo órgão de acusação.

São grandes as consequências trazidas em razão da morosidade da justiça criminal, dentre elas: inviabiliza-se a realização dos fins das penas, aumentam os casos de crimes não esclarecidos e a paz jurídica aos cidadãos deixa de ser assegurada, um dos principais escopos da instrumentalidade do processo penal.

O prazo entre o delito e a pena aplicada, e a probabilidade da punição possuem um efeito maior do que a própria severidade da pena aplicada, assim como uma decisão mais célere terá maior probabilidade de justiça na decisão. Afronta-se, ainda, o princípio da presunção de inocência, na medida em que a demora do processo penal ofende a paz jurídica do acusado.

99 ANDRADE, Roberta Lofrano. Processo penal e sistema acusatório – evolução histórica, expansão do direito penal e considerações críticas sobre o processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 123.

100 MULAS, Nieves Sanz. Justicia y medios de comunicación. Um conflito permanente. In: TORRE, Ignacio Berdugo Goméz de la (coord.); MULAS, Nieves Sanz (coord.). Derecho Penal de la Democracia vs.

Seguridad Pública. Granada: Comares, 2005, p. 24. Tradução livre: "o limite que separa a notícia do espetáculo, a crítica do descrédito infundado, as expressões duras das desqualificações gratuitas".

Em última análise, o que se busca, “é a racional gestão dos tempos de processamento criminal, assumindo, em todas as suas consequências, a necessidade de que ele se transforme num valioso instrumento de política criminal”101.

Como dito, o método processual penal tradicional já é obsoleto e insuficiente para se realizar um efetivo combate à criminalidade contemporânea. Diante disso, deve-se atribuir ao órgão acusatório instrumentos fundados na adoção de técnicas e de políticas criminais, para que possa atuar trazendo resultados eficazes e adequados à modernização e ao enfrentamento da evolução da criminalidade.

Há que se renovar a ciência penal, a partir do implemento de novos métodos e técnicas processuais, formas de interpretação, utilização de institutos vigentes conforme os valores fixados na Constituição Federal, na legislação infraconstitucional, nos tratados e nas convenções internacionais.

O direito, em especial o processual penal, não cumprirá a sua missão se não houver uma aproximação com o seu destinatário final, a sociedade, pois o contato com a realidade social pode permitir a compreensão das reais necessidades da sociedade para a implantação de políticas criminais aptas a efetivar uma resposta do Estado, evitando-se as mazelas relacionadas ao sistema de justiça penal conforme se conhece atualmente, como a sensação de insegurança, o descrédito e o justiçamento privado.

Embora o processo penal brasileiro esteja em evolução para concretizar seus objetivos diante dos desafios impostos pela evolução da sociedade, essa construção deve ser solidificada segundo as normas constitucionais, de forma a estruturar um modelo de processo penal atual, sem se descuidar das garantias fundamentais que protegem harmoniosamente o acusado e a sociedade ao mesmo tempo.

Assim como o processo penal, o Ministério Público deve se reportar a sua conformação constitucional para enfrentar esses desafios contemporâneos, de forma a maximizar a tutela dos direitos fundamentais mediante um planejamento, visto que a segurança pública é um dos seus principais objetivos constitucionais, considerando a existência do monopólio da ação penal pública102.

Nesse panorama, para enfrentar os problemas sociais contemporâneos que ultrapassam fronteiras geográficas, dada a evidência do expansionismo transfronteiriço dos delitos, o

101 FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001, p. 102.

102 ZANETI JÚNIOR, Hermes. O Ministério Público e o processo civil contemporâneo. 2. ed. São Paulo:

JusPodivm, 2021, p. 65.

Ministério Público deve estruturar-se em torno da tutela dos direitos – não de estruturas formais e territoriais – mas a partir de uma orientação fundada na premissa de que um empecilho processual não justificado em direitos fundamentais deve ser removido dogmaticamente, por desviar de uma ideologia processual constitucional103.

Conforme adverte Alexandre Rocha, é preciso que o Ministério Público

compreenda que, assim como não é mais possível combater a criminalidade contemporânea com instrumentos e com a dogmática de inspiração clássica, a Instituição não pode continuar simplesmente a agir com o modelo de intervenção pensado pelo legislador na década de 40 do século passado104.

103 ZANETI JÚNIOR, Hermes. O Ministério Público e o processo civil contemporâneo. 2. ed. São Paulo:

JusPodivm, 2021, p. 66.

104 MORAES, Alexandre Rocha Almeida. A política criminal pós-1988: o Ministério Público e a dualidade entre garantismos positivo e negativo. In: SABELLA, Walter Paulo; DAL POZZO, Antônio Araldo Ferraz; BURLE FILHO, José Emmanuel (coord.). Ministério Público: vinte e cinco anos do novo perfil constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 761-762.