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A divergência entre as expressões no corpo e na mente

Tal explicação se faz necessária porque a proposição afirma justamente que “a alma humana tem um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus”. Tal conhecimento, no entanto, é, na maior parte das vezes, obscuro, porque, na impossibilidade “de imaginar Deus como imaginam os corpos”, os homens preenchem a ausência de imagens de Deus com imagens dos corpos, misturando afecções produzidas por modos da extensão à idéia de Deus tal como se exprime como modo do pensamento. O mesmo mecanismo se faz presente em grande parte dos erros que cometemos:

“a maioria dos erros consiste apenas em que não aplicamos corretamente os nomes às coisas. Com efeito, quando alguém diz que as linhas que conduzem

do centro do círculo são desiguais, por certo que entende então pelo nome de círculo uma coisa diferente do que entendem os matemáticos. Do mesmo modo, quando os homens se enganam a calcular, têm no espírito números diferentes daqueles que estão no papel. É por isso que, por certo, se se atende ao seu espírito, eles não se enganam; parece, no entanto, que se enganam, porque cremos que eles têm no espírito os números que estão no papel. Se não fosse isso, não julgaríamos que eles se enganam, do mesmo modo que não acreditei que se que eles se enganam, do mesmo modo que não acreditei que se enganava aquele a quem ouvi, não há muito tempo ainda, gritar que o seu pátio tinha voado para a galinha do vizinho, pois o seu pensamento parecia-me suficientemente claro”.

Os casos de erro descritos por Espinosa indicam “uma distorção entre as idéias”,

modos do pensamento, “e as palavras”200, modos da extensão, uma vez que, para

Espinosa “a essência das palavras, com efeito, e das imagens é constituída apenas por

movimentos corporais que de modo algum envolvem o conceito de pensamento”201. Há

uma disjunção entre as palavras e as coisas, mas também entre as palavras e imagens e as idéias, cada um deles sendo um modo de expressão diferente, que pode entrar em desacordo com os demais. Se prestarmos atenção ao trecho citado acima, veremos que “do ponto de vista da mente, o erro é, em realidade, verdade”, ou seja, não há erro, pois, do ponto de vista das idéias, não há inadequação. A inadequação tem lugar na

correspondência entre idéias e imagens ou palavras202 (no caso de Deus, atribuímos

imagens dos corpos que conhecemos à idéia de Deus, no caso da frase ouvida por Espinosa, houve uma troca: a galinha foi chamada de pátio e o pátio, de galinha). Como explica Chantal Jaquet, “o erro é apenas uma aparência ligada ao fato de que nosso

200

JAQUET, C. Op. cit., p. 12. 201

Et, proposição 49, escólio. 202

Chantal Jaquet diz que o erro é, no fundo, expressão de uma verdade do ponto de vista do pensamento, enquanto que “do ponto de vista do corpo”, seria “uma má aplicação dos nomes às coisas” (p.12). Parece mais conforme ao texto da Ética, contudo, situar o erro na passagem entre corpo e pensamento, como uma espécie de falha na transcrição de um registro para o outro. Chantal Jaquet analisa o erro ora segundo um atributo, ora sobre outro, dando margem a uma localização do erro mais no corpo que no pensamento, o que não corresponde à sua leitura do espinosismo. De fato, a autora esclarece mais à frente que “o corpo não se engana”, já que “a verdade e a falsidade são modalidades da idéia e se referem portanto ao pensamento, não à extensão” (p. 13).

ouvido não escuta [entend] sensivelmente o que a mente de outrem entende [entend],

contudo, inteligivelmente, mas que seu corpo não transcreve à exatidão”203. Assim,

vemos que entre os corpos e as idéias não há equivalência, mas possibilidade de tradução, com todos as possibilidades de desvio que uma tradução implica.

O erro pode ser visto então como um problema de transcrição, de versão de uma linguagem em outra ou de um tipo de registro em outro. Não é uma falha a ser reputada ao corpo, como grande parte da tradição filosófica costumou concebê-lo, mas um problema ocorrido na passagem de um tipo de expressão ao outro. De resto, seria despropositado atribuir o erro ao corpo já que “a verdade e a falsidade são modalidades da idéia e dizem respeito, portanto, ao pensamento, não à extensão”. O corpo exprime com seus recursos ou em seu estilo próprio, por assim dizer, mais do que a adequação entre coisas, palavras e idéias. No exemplo da frase ouvida por Espinosa em que a ordem das palavras foi invertida, podemos compreender tal inversão como resultado “de um movimento corporal que manifesta fisicamente a emoção, a surpresa ou a perturbação” provocadas pelo acontecimento inesperado do levantar vôo de uma galinha em direção ao terreno vizinho. Se pensarmos em termos de paralelismo, seremos tentados a “procurar sistematicamente equivalências entre movimentos corporais e

pensamentos”204, busca que se revela vã – pois não há correspondência termo a termo –

e nem sempre interessante, uma vez que há fenômenos ou acontecimentos melhor descritos num modo de expressão que em outro.

O termo paralelismo, portanto, revela-se insuficiente tanto para pensar a disjunção entre corpo e mente quanto a unidade entre ambos. Chantal Jaquet propõe que tal termo seja substituído por um outro mais preciso, por descrever melhor os dois aspectos da relação entre corpo e mente (unidade e divergência). Além disso, tal termo

203

tem a vantagem de ser utilizado pelo próprio Espinosa, de não ser importado de outro sistema, como é o caso do termo paralelismo. Curiosamente, o adjetivo aequalis (igual) é empregado no corolário da mesma proposição que serviu de base para a aplicação do

termo paralelismo ao sistema espinosano205. Se a proposição afirmava uma identidade

entre a ordem e a conexão das idéias e das coisas, o corolário extrai uma conseqüência da proposição, a saber “que a potência de agir de Deus é igual à sua potência atual de agir”. Mas não é apenas em Deus que as duas potências, de agir e de pensar, estão em pé de igualdade. Também no homem há duas potências de igual envergadura, como

Espinosa mostra mais à frente:“o esforço da Mente ou a sua capacidade de pensar é, por

natureza, igual e simultânea ao esforço do Corpo e sua capacidade de agir”206. Chantal

Jaquet assinala que “quando Espinosa quer explicar que a ordem e a conexão das idéias das afecções na mente vai de par com aquela das afecções do corpo e constitui uma só e mesma coisa, recorre seja ao adjetivo aequalis, seja ao advérbio simul, seja aos dois ao

mesmo tempo”207, o que possibilita falar, a respeito da filosofia de Espinosa, de uma

doutrina da igualdade entre os atributos, no que se refere a Deus, e seus modos, no que se refere ao homem, ao invés de uma doutrina do paralelismo.

Assim, entre a idéia, no caso, a mente, e seu objeto, no caso, o corpo, há uma relação de igualdade, pois todos os elementos que se encontram em um têm um

205

Et, II, proposição 7. 206

Et, III, proposição 28, demonstração. A tradução portuguesa de Joaquim de Carvalho, assim como a tradução francesa de Charles Appuhn, traduz os adjetivos latinos aequalis e simul pelos substantivos paridade e simultaneidade (parité et simultanéité). Joaquim de Carvalho traduz assim: “entre o esforço da Mente ou a sua capacidade de pensar e o esforço do Corpo e sua capacidade de agir, há, por natureza, paridade e simultaneidade. A tradução aqui proposta explora a possibilidade de traduzir de modo mais próximo ao texto latino, preservando ambos os termos como adjetivos. Nem sempre exploramos essas sutilmente diferentes possibilidades de tradução. Contudo, estamos acompanhando a leitura de Chantal Jaquet, que sugere que passemos a pensar a relação entre corpo e mente em Espinosa em termos de igualdade, e não mais de paralelismo, o que representa um ganho em termos de proximidade em relação à letra e ao espírito da Ética. Em função disso, é importante tentar traduzir ao menos o termo aequalis pelo seu equivalente em português, caso contrário, correríamos o risco de enfraquecer um dos argumentos que caucionam o abandono do termo paralelismo: o fato de ele não figurar no texto latino da Ética (assim como o termo paridade tampouco se encontra ali, mas é uma paráfrase para aequalis).

207

correspondente no outro segundo os mesmos encadeamento e ordem. Tal igualdade não implica numa identidade de natureza, mas significa que um mesmo acontecimento, modificação ou afecção reverbera tanto no modo concebido segundo um atributo quanto segundo o outro, tudo o que se passa no registro corporal tem um equivalente no registro mental. É o que se depreende da proposição 12 da parte II da Ética:

“Tudo o que acontece no objeto da idéia que constitui a Mente humana deve ser percebido pela Mente humana; por outras palavras: a idéia dessa coisa existirá necessariamente na mente; isto é, se o objeto da idéia que constitui a mente humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse corpo que não seja percebido pela Mente”.

A demonstração desta proposição evoca o que foi estabelecido no corolário da proposição anterior: a mente humana é uma parte do intelecto infinito de Deus. Tudo se passa como se cada mente humana individual fosse a idéia que Deus tem do corpo a que aquela mente se encontra ligada. Isto é válido não só para os homens, mas para todo e qualquer indivíduo, que pode ser concebido como modo segundo o atributo da extensão ou do pensamento, já que, para todo e qualquer corpo, há uma idéia correspondente no

intelecto de Deus, como se vê no escólio da proposição seguinte208: “tudo o que até aqui

demonstramos são coisas comuns e se aplicam tanto aos homens como aos outros indivíduos, os quais, embora em graus diferentes, são, todavia, animados.”