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As diferentes formulações do Corpo sem Órgãos

Inicialmente, seria útil reconstituir a história da noção de Corpo sem órgãos na obra de Deleuze, assinalando as transformações que ela sofre em certos momentos em relação à maneira com que ela é usada. O termo corpo sem órgãos aparece pela primeira vez em Lógica do sentido. Neste texto, trata-se de conceber a produção do sentido como acontecimento, como dimensão capaz de articular os corpos em suas relações com a linguagem. O sentido é, neste texto, objeto de uma tríplice gênese: ontológica, lógica e dinâmica, já que não pode ser considerado como meramente dado em uma das relações entre a linguagem e os efeitos evenemenciais surgidos numa proposição. O corpo sem

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órgãos aparece na terceira gênese, que concerne a produção de duas superfícies, corporal e incorporal, a partir da profundidade dos corpos. Na elaboração desta terceira gênese, a teoria psicanalítica desempenha um papel de extrema importância, na medida em que pressupõe a unidade entre corpo e mente e procura expor a constituição do afetivo, em particular, e do mental, de modo geral, a partir das interações entre os corpos. Deleuze utiliza preferencialmente a teoria de Melanie Klein, porque a gênese ali descrita se inicia com o recém-nascido e procura detalhar as etapas desta constituição, ponto em que a teoria freudiana permanece lacunar.

Em uma nota para a edição italiana de Lógica do sentido, publicada em 1976, Deleuze define a tentativa deste livro. Tratava-se de mostrar “como o pensamento se organiza segundo eixos e dimensões semelhantes” às exploradas e criadas na obra de Lewis Carrol: “por exemplo, o platonismo e a altura que orientarão a imagem tradicional da filosofia; os pré-socráticos e a profundidade (o retorno aos pré-socráticos como retorno ao subterrâneo, às cavernas pré-históricas); os estóicos e sua nova arte das superfícies...”. A verticalidade ascendente que Deleuze detecta no platonismo vincula-se ao delineamento de um mundo das idéias como essências fixas às quais todos os existentes se reportam, segundo uma relação regida pela semelhança, que mede o grau de proximidade em relação a um modelo. O mundo dos pré-socráticos implicaria uma descida às profundezas na media em que procuram determinar princípios materiais de que todo o real derivaria. Assim, tal mundo estaria vinculado à profundidade por envolver uma busca pela origem, tanto mais que tal origem é, de algum modo, material.

A exploração das superfícies constituía, para Deleuze, a “novidade” própria de

Lógica do sentido em relação a Diferença e repetição, ainda marcado pela busca de uma

certa “altura clássica” assim como de uma “profundidade arcaica”162. A repartição

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DELEUZE, G. Deux régimes de fous. Note pour l’édition italienne de Logique du sens. Paris, Minuit, 2003, p. 59

estóica entre corpos e incorporais constitui, para Deleuze, o vigor do pensamento deles e o torna um instrumento para estabelecer uma ontologia do devir, ou seja, dos acontecimentos puros. Por este viés, articulam-se Carrol e os estóicos: são duas maneiras de tomar os devires, os acontecimentos como aquilo que se produz em superfície, no limite que separa, mas também une, uma dimensão material e outra ideal.

O último movimento de Lógica do sentido, em que se encontra o Corpo sem

órgãos, consiste em engendrar a superfície da “expressividade”163, em que a linguagem

é tornada possível, a partir dos corpos ainda tomados segundo a dimensão da profundidade. Tal superfície era considerada dada nas gênese lógica e ontológica. A gênese dinâmica procura, então, investigar a instauração da linguagem através da distinção entre corpos e estados de coisa, por um lado, e dos acontecimentos incorporais a serem expressos e que constituem o sentido como aquilo que permite falar do que acontece aos corpos. Tal gênese descreve a conquista da superfície através de uma separação, nos corpos, entre comer e falar, entre essas duas relações entre os corpos que concernem à oralidade, segundo um referencial psicanalítico. Assim, a tarefa da gênese dinâmica é mostrar como se constrói um corpo falante, um corpo que pode “fazer com que os sons não se confundam com as qualidades sonoras das coisas, com o ruído dos

corpos, suas ações e paixões”164.

Nesta perspectiva, Deleuze retoma, introduzindo certas modificações, “a história das profundezas” traçada por Melanie Klein, com a sucessão das posições que tornam possível a formação de zonas erógenas como superfícies afetivas que vão se criando no corpo durante esse processo. Ora, suas ressalvas concernem justamente o “tema do

corpo sem órgãos” . Além disso, o que Melanie Klein descreve nos termos de uma

posição paranóide-esquizóide no desenvolvimento do recém-nascido, Deleuze chama de

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“mundo dos simulacros”165, por ser não só composto de fragmentos, mas também por funcionar por fragmentação contínua. O caráter parcial dos elementos deste sistema se deve aos problemas de alimentação e de excreção que o fazem surgir. A única integridade possível em tal sistema é a de um corpo sem órgãos, que define uma unidade constituída pelos elementos diferenciais independentes que não chegam a assumir a forma de um objeto completo. A unidade do corpo sem órgãos, porém, é obtida em detrimento das funções vitais, o que, a partir de O Anti-Édipo, constituirá uma das tendências do corpo sem órgãos, mas esta noção será cada vez mais enriquecida por outras determinações, como veremos mais à frente.

Melanie Klein, ao contrário, não notava a constituição de uma unidade própria ao mundo fragmentado da posição paranóide-esquizóide e considerava a hipótese de uma introjeção do seio materno como objeto íntegro benfazejo, o que forneceria a saída da posição paranóide-esquizóide. A dinâmica de tal processo envolveria, neste caso, uma espécie de queda do seio como objeto integrado e completo, que, não sendo tragado e despedaçado na profundidade dos fragmentos, seria capaz de instaurar uma superfície. Mas, se mantivermos a especificidade deste mundo dos simulacros, seu caráter fragmentário, torna-se difícil pensar a introjeção de um objeto completo enquanto tal. Isto leva Deleuze a conjecturar que a instauração de uma superfície que se desprende dos corpos deve colocar em jogo a relação entre profundidade e altura, esta última sendo a dimensão própria a um objeto completo. A tensão entre estas duas dimensões é que engendraria a formação de uma superfície em que a expressão é tornada possível.

A sucessão kleiniana das posições e a formação progressiva de zonas erógenas

serão abandonadas em proveito de uma generalização do corpo sem órgãos como

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instância implicada na produção desejante. O inconsciente será, então, concebido como produtor de conexões segundo uma oscilação entre dois pólos do delírio (a paranóia e a esquizofrenia). As demais configurações do inconsciente, aquelas relativas ao complexo

de Édipo, como a posição depressiva tal como descrita por Melanie Klein e a saída

neurótica que ela possibilita, serão consideradas, em O Anti-Édipo, como produtos residuais. Tais formações seriam o resultado da incidência das instâncias repressivas sobre a produção desejante (por exemplo, o enclausuramento do desejo na família, expresso na teorização do complexo de Édipo). Da mesma maneira, se Deleuze e Guattari utilizam ainda o termo objeto parcial em O Anti-Édipo para designar as peças das máquinas desejantes, esta última sobrevivência da terminologia psicanalítica desaparecerá em Mil platôs.