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O desenvolvimento igual das diversas aptidões do corpo e da mente por meio da alegria

Ora, na obra de Espinosa, o termo potência faz parte do vocabulário usado na ontologia, mas também é empregado no campo da política. No Tratado político, conforme nota Chantal Jaquet, a igualdade entre as potências é relativa, ao contrário do que ocorre na Ética, em que não pode haver qualquer desigualdade entre as potências de agir e pensar ou entre os atributos. Mas, no Tratado Político, a igualdade pode ser atribuída a coisas diferentes, desde que tais diferenças sejam desprezíveis em comparação a uma outra coisa tida como padrão. É o caso da potência dos homens enquanto cidadãos de um Estado. Embora os homens sejam diferentes, inclusive com relação à potência própria de cada um, ao que são capazes de fazer e às maneiras pelas quais podem ser afetados, suas potências individuais podem ser consideradas iguais, se comparadas à potência do Estado.

A igualdade entre as potências de agir e pensar não é fruto de uma padronização, mas entretém uma relação com a diversidade. Ambas as potências são iguais e se desenvolvem revelando “uma igualdade de aptidões para exprimir toda a diversidade

contida na natureza”227 do corpo e da mente. Tal diversidade deriva do caráter

compósito do corpo e da mente. O corpo é composto de várias partes que devem todas

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receber estímulos para se desenvolver por igual. Caso uma parte seja estimulada em detrimento das outras, ocorrerá um desenvolvimento exagerado desta parte e uma atrofia daquelas deixadas de lado, o que se traduz numa fixação da mente em certas idéias, em prejuízo do aparecimento de outras. Tal princípio de desenvolvimento das capacidades do corpo, com um paralelo fomento das capacidades da mente, serve à defesa do riso na parte IV da Ética, que já abordamos no primeiro capítulo. Trata-se de mostrar que o riso (risum) e o gracejo (jocus), a brincadeira, por serem modos da alegria, fazem-nos passar a uma perfeição maior, desde que não sejam excessivos e não se confundam com a irrisão ou escárnio. Para Espinosa, o escárnio nasce do ódio,

portanto, é mau, visto que “o ódio nunca pode ser bom”228. Desse ponto de vista, o

humor, mesmo galhofeiro, o rir-se de algo ou de alguém, pode ser uma via de acesso à beatitude (o grau máximo de perfeição), a esta alegria que é uma espécie de riso com a Natureza inteira. O riso nas suas várias modalidades, quando não ligado ao ódio, poderia nos tirar da passividade. Mas, mesmo quando o riso surge de uma afecção contaminada inicialmente de ódio, não teria o condão de transformar o ódio

progressivamente em outra coisa?229

Seja como for, o riso aumenta nosso grau de perfeição, na medida em que é uma manifestação de alegria e qualquer interdição deste só pode derivar de “uma feroz e

triste superstição”230. Alegrar-se ou expulsar a melancolia é comparável a alimentar-se e

saciar a sede, sendo todas estas atividades necessidades do corpo humano. Nesse sentido, o deleite que nos possa vir do trato com as coisas também é digno de elogio, já

228

Et,, IV, proposição 45. 229

Uma maneira de compreender o trabalho de palhaço como mobilização para a atividade por meio do cultivo da alegria pode ser encontrada na tese de Kátia Kasper, já mencionada aqui anteriormente (KASPER, K. Experimentações clownescas: os palhaços e a criação de possibilidades de vida. Tese de doutorado defendida em 19/02/2004 na UNICAMP -Universidade Estadual de Campinas - no departamento de Educação, Sociedade, Política e Cultura da Faculdade de Educação). Venho explorando conexões desta linha de trabalho com a filosofia, como no texto apresentado no XII Encontro da ANPOF,

Por uma clownfilosofia, e no texto Clownfilosofia ou o que pode um palhaço, apresentado no Colóquio O trágico e o cômico, realizado na UFOP- Universidade Federal de Ouro Preto – em novembro de 2006.

que é manifestação de alegria assim como o riso. Não há nenhuma virtude na seriedade, na sisudez e menos ainda na tristeza e na mortificação. O tipo de vida a ser eleito como norma, a ser seguido pelos que querem ser sábios, inclui o prazer que advém do contato com uma vasta gama de outros corpos:

“Portanto, usar das coisas e deleitar-se nelas (não até à náusea, pois isto não é deleitar-se), quanto é possível, é próprio do homem sábio. É próprio do homem sábio – digo – alimentar-se e recrear-se com comida e bebida moderadas e agradáveis, assim como com os perfumes, a amenidade das plantas verdejantes, o ornamento, a música, os jogos desportivos, os espetáculos e outras coisas deste gênero, de que cada um pode usar sem dano para outrem. Com efeito, o Corpo humano é composto de muitas partes de natureza diversa, que carecem continuamente de alimento novo e variado, para que o Corpo seja igualmente apto para todas as coisas que podem seguir-se da sua natureza e, conseqüentemente, para que a Mente seja igualmente apta para entender simultaneamente várias coisas231”.

À variedade dos estímulos a que submetemos nosso corpo, que dará ensejo ao desenvolvimento de todas as suas partes igualmente, corresponderá uma variedade de idéias que se produzirão em nós, permitindo o florescimento de todas as nossas capacidades mentais de modo igual. Este tema é retomado no capítulo XXVII da parte IV e exposto basicamente nos mesmos termos, com a diferença de haver ali uma certa ênfase na relação da nutrição do corpo com sua conservação, sem deixar de lado a equivalência entre conservação e expansão de potência (ou desenvolvimento das aptidões ou capacidades). Chantal Jaquet se refere a esta passagem para abordar a questão da variedade de estímulos a que o corpo deve ser submetido para que sejam exploradas todas as suas potencialidades e desenvolvidas, de maneira correspondente, toda a capacidade mental do indivíduo. Se a proposição 45 da quarta parte foi citada aqui em seu lugar, isto se deve ao vínculo mais imediato ali estabelecido entre a exploração das capacidades do corpo e a alegria ou aperfeiçoamento facultado aos seres

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humanos. De qualquer maneira, importa ressaltar a igualdade entre as potências do corpo e da mente e seu desenvolvimento simultâneo. Agora que já acompanhamos o levantamento que Chantal Jaquet faz dos vários usos do termo igualdade e derivados na obra de Espinosa, podemos nos referir à terceira parte da Ética, em que a unidade entre corpo e mente e a igualdade entre os atributos é apresentada em “um tipo de discurso

que se refere ao mesmo tempo ao pensamento e à extensão”232 de maneira sistemática, o

que não ocorre nas partes anteriores.