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As incidências de ‘igual’ e de ‘igualdade’

Adiantamos aqui em linhas gerais as conseqüências éticas da igualdade entre os atributos, que redunda na igualdade entre corpo e mente. Mas falta ainda compreender de maneira mais precisa o que significa tal igualdade. Para tanto, retomaremos a análise que Chantal Jaquet faz das incidências dos termos aequalis e aequalitas em diferentes pontos da obra de Espinosa. Numa primeira incidência do termo ‘igual’ apresentada por Chantal Jaquet, o que vemos não é a afirmação de uma igualdade, mas de sua impossibilidade, no que se refere à idéia de substância. Espinosa visa demonstrar que há uma só substância infinita e, para tanto, afirma que “não existem duas substâncias

iguais”221, pois, se houvesse mais de uma substância infinita, uma limitaria a outra, o

que introduziria uma finitude relativa na própria idéia de substância. Mas, ainda que do interior de uma caracterização negativa, podemos extrair desse trecho uma definição da igualdade como “uma identidade de natureza” que “implica a existência de uma

pluralidade de coisas do mesmo gênero que se limitam umas às outras”222. Esta

definição pode ser confirmada por um outro trecho do Breve tratado223 em que Espinosa

221

Breve tratado, I, cap. II, § 6. 222

procura mostrar que o homem não pode ser considerado uma substância, apelando para a sua limitação e para o fato de que um homem pode ser considerado igual a outro.

Todavia, não é a este tipo de igualdade a que Espinosa se refere na Ética, quando se trata de comparar as potências de agir e de pensar no homem e em Deus, já que não se trata ali de comparar duas coisas que, por estarem em pé de igualdade, restringem uma à outra. No caso de Deus, trata-se de duas potências infinitas. No caso do homem, “a igualdade entre a potência de pensar da mente e a potência de agir do corpo não pode ser entendida como uma limitação recíproca, pois uma idéia só pode ser limitada por

uma idéia, e um corpo, por outro corpo”224, conforme o que se lê na segunda definição

da primeira parte da Ética:

“Diz-se que uma coisa é finita no seu gênero quando pode ser limitada por outra da mesma natureza. Por exemplo: um corpo diz-se que é finito, porque sempre podemos conceber outro que lhe seja maior.

Do mesmo modo, um pensamento é limitado por outro pensamento. Porém, um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo.”

Esta definição pode ser vista como uma espécie de antecipação da posição de igualdade entre a ordem e a conexão das coisas e das idéias, na medida em que a igualdade implica a ausência de causalidade real entre as duas instâncias que podem ser concebidas distintamente como ponto de vista sobre um indivíduo a partir de um ou de outro atributo. A posição de igualdade não significa, como vimos, uma identidade de natureza ou de modalidade de ser, como seria o caso numa comparação entre substâncias, se houvesse mais de uma substância infinita. De resto, quando Espinosa argumenta na Ética contra a existência de mais de uma substância, não se vale mais do adjetivo igual, mas de uma outra expressão: “na natureza das coisas, não pode haver

duas ou mais substâncias de mesma natureza ou atributo”225. O fato de o termo igual

não ser mais utilizado, na Ética, numa situação análoga àquela em que aparecia no

224

JAQUET, C. Op. cit., p. 17. 225

Breve tratado, é mais um indicativo de que ele é reservado a um novo uso. Com efeito,

se acompanharmos as incidências listadas por Chantal Jaquet, veremos que, além de servir para comparar as potências de agir e de pensar, “o adjetivo ‘igual’ é aplicado à alma para designar sua firmeza, sua impassibilidade e sua constância face às

reprimendas e ofensas”226. Igualdade, neste caso, seria a capacidade de manter um

mesmo estado de ânimo diante de circunstâncias diferentes.

Observemos ainda um outro uso do termo em questão. Neste uso, Espinosa se refere à incapacidade do modo finito de perceber as diferenças a partir de uma certa escala. Não se trata de uma igualdade absoluta, mas relativa, que envolve comparação. Há um certo limite para nossa capacidade de imaginar distintamente as coisas situadas a uma certa distância de nós ou acontecidas num tempo de há muito passado ou projetado num futuro que tardará a chegar. A partir de um certo ponto, nossa imaginação situa todas as coisas distantes de nós no espaço ou no tempo num mesmo plano, estabelecendo uma igualdade entre elas. Isto não elimina nosso conhecimento das diferenças existentes entre tais distâncias, mas nos faz igualar as posições dos objetos ou acontecimentos. Tal equalização é operada pela imaginação, o que nos indica que este sentido não será o mesmo envolvido na comparação entre as potências do corpo e da mente.

De fato, a imaginação não é representativa da capacidade de pensar, pois nem ao menos nos fornece idéias adequadas. Além disso, vimos que a equiparação entre as potências do corpo e da mente derivava da igualdade entre os atributos, ou seja, da comparação entre as duas potências do ponto de vista de Deus ou da Natureza. Assim, sendo, do ponto de vista da substância infinita, não há limitação no que se refere à percepção das diferenças, logo, não se pode supor o estabelecimento de uma igualdade

dentre coisas situadas a intervalos de tempo ou espaço variáveis, pois o ponto de vista da substância infinita é o da eternidade. Até mesmo o entendimento finito do homem pode chegar a uma apreensão das coisas sub species aeterniatis, na medida em que é uma parte do entendimento infinito de Deus. Veremos mais à frente que a igualdade entre as potências do corpo e da mente, que resulta da igualdade ontológica entre os atributos, mantém uma relação com a diversidade, embora não seja exatamente uma diversidade posicional.

O desenvolvimento igual das diversas aptidões do corpo e da