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Entre idealismo e realismo: imagem e matéria em devir

Tal crise é a ocasião do “enfrentamento entre materialismo”, como tentativa de “reconstituir a ordem da consciência com puros movimentos materiais”, e “idealismo”, como esforço para mostrar como “a ordem do universo” se constituiria através de

“puras imagens na consciência”94. Para Bergson tanto o “idealismo” quanto o

“realismo” são duas teses igualmente excessivas”, a “matéria” não pode ser reduzida à “representação que dela temos”, assim como não se pode dotar a matéria do poder de produzir “em nós representações”, considerando-a, no entanto de natureza diversa dessas mesmas representações. Matéria e imagem se equivalem, sob a condição de entender esta última como “uma certa existência que é mais que aquilo que o idealista

chama de representação, mas menos que o que o realista chama de coisa”95. Bergson

considera que tal maneira de encarar a existência da matéria é própria do senso comum, definido como “ponto de vista de um espírito que ignoraria as discussões entre filósofos”. Bergson busca, no primeiro capítulo de Matière et mémoire, desenvolver uma concepção filosófica das relações entre mente e matéria, entre mente e corpo,

93 IM, pp. 84-85. 94 IM, p. 83. 95

BERGSON, H. Matière et mémoire. Oeuvres. Édition du centenaire. Paris,PUF, 1959, p. 1, ed. original, p. 161. As próximas citações seguirão essa mesma ordem : paginação da edição original primeiro e em

convidando o leitor a partir de uma maneira de encarar a matéria anterior à “dissociação

que o idealismo e o realismo” operaram “entre sua existência e sua aparência”96.

Mas em que consiste exatamente esta maneira de compreender a matéria da qual Bergson nos convida a partir? Como dissemos, a descrição desta “concepção da matéria” é inicialmente definida como “simplesmente a do senso comum”. A seqüência do texto nos permite compreender melhor o que Bergson entende por senso comum. Este termo tem para ele uma certa conotação positiva e designa uma eventual figura de

“homem estranho às especulações filosóficas”97, alguém cujas concepções não tenham

sido influenciadas nem pelo realismo, nem pelo idealismo. Tal indivíduo, continua Bergson, demonstraria espanto ao ouvir que “o objeto que ele tem diante de si, que vê e que toca, existe apenas em sua mente e para a sua mente, ou ainda, de maneira mais geral, existe apenas para uma mente, como queria Berkeley”. Semelhante “interlocutor” não-filósofo seria refratário a esta apresentação sucinta da tese idealista e persistiria convicto de “que o objeto” tem uma existência independente “da consciência que o

percebe”98. Seu espanto não diminuiria perante a afirmação de “que o objeto é

totalmente diferente do que percebemos nele, que ele não tem nem a cor de que o olho lhe dota, nem a resistência que a mão nele encontra”. O interlocutor de Bergson, não versado em filosofia, continuaria pensando que tanto a “cor” quanto a “resistência” que percebe “no objeto” encontram-se nele efetivamente. As qualidades do objeto configuram-no como uma imagem para tal interlocutor, que constitui o paradigma da atitude da qual Bergson deseja partir, uma imagem que não é meramente indicativa de um estado mental, “mas uma imagem que existe em si”. Quando Deleuze retoma o primeiro capítulo de Matéria e memória, esta é a definição de imagem implícita em sua

96 Id., p. 2, p. 162. 97 Id., p. 1, p. 161. 98 Id., p. 2, p. 161.

exposição, ou seja, imagem é aquilo que aparece, sem que este aparecer dependa de uma consciência para se configurar como existente, como verificaremos mais adiante.

Bergson supõe que a atitude de seu interlocutor hipotético constitui a inclinação natural de qualquer um que não tenha conhecimento das querelas entre realistas e idealistas (talvez por não imaginar quão desconfiados podem ser os que não têm erudição filosófica). Tal inclinação se desdobra no seguinte raciocínio: primeiro, este “espírito” livre de erudição filosófica acredita “que a matéria existe tal como ele a percebe; e posto que ele a percebe como imagem”, passa a considerá-la “nela mesma, uma imagem”. Convida seus leitores, então, a seguir esta inclinação, sugerindo que os obstáculos que estes porventura encontrarem para fazê-lo devem ser fruto da eventual dificuldade em se desfazer da “dissociação” que a tradição filosófica nos legou, sobretudo após Descartes, entre a “existência” e a “aparência” da matéria. Bergson resume o legado de Descartes, que consistiria em conferir um grau maior de realidade às qualidades primárias que às secundárias, ao estabelecer uma equivalência entre matéria e “extensão geométrica”. Contudo, a matéria enquanto res extensa, desprovida de cor, cheiro, sabor, textura, som - as relegadas qualidades secundárias, fonte de deleite ou desprazer -, estava assim colocada “muito longe de nós”, ou seja, cavou-se um abismo entre nossas impressões a respeito dos corpos (sua aparência), e os corpos neles mesmos (sua essência). Prosseguindo no rápido balanço sobre as concepções a respeito

da matéria na história da filosofia, Bergson louva o “progresso”99 alcançado por

Berkeley. No entanto, Berkeley teria proposto uma aproximação excessiva da matéria em relação a nós, ao “transportar a matéria para o interior do espírito e fazer dela uma pura idéia”. Se a posição cartesiana assegurava o caráter necessário “da ordem

matemática do universo”100, relegando as qualidades que não se deixam enquadrar nesta

99

ordem ao domínio do incerto, a concepção de Berkeley, por sua vez, ao colocar a existência da matéria na dependência de nossa percepção, destitui as leis da física de seu caráter necessário.

Para Bergson, a “crítica kantiana” visa justamente restaurar a necessidade da física, assentando-a sobre “um fundamento sólido, o que só consegue às custas de uma

diminuição do “alcance de nossos sentidos e de nosso entendimento”101. Tal restrição é

dispensável se a matéria for concebida como imagem nela mesma, independente de seu aparecer a uma consciência, o que implica em pensar a percepção como estando

“originariamente nas coisas mais do que na mente, fora de nós mais do que em nós”102.

Veremos mais adiante como Deleuze se vale de ambas as perspectivas, kantiana e bergsoniana, utilizando o bergsonismo como ferramenta para pensar um campo transcendental (ou plano de imanência, na terminologia deleuzeana mais tardia) independente da forma de um sujeito ou de uma consciência.