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Uma primeira abordagem do gerenciamento dos afectos

Além disso, a constatação de que certos corpos entram numa composição benfazeja com o nosso nos coloca na trilha do conhecimento das essências singulares. Mas não nos diz o que fazer diante de efeito nocivo de um corpo sobre o nosso. Ora, se não podemos evitar que um dado corpo produza um efeito ruim sobre o nosso todas as vezes que o encontramos, podemos, contudo, como que gerenciar tal efeito no que se

refere a suas conseqüências mentais. No escólio da proposição 20 da quinta parte da Ética, Espinosa faz uma apresentação resumida a respeito do que pode a mente para fazer face às afecções. Primeiro, a mente pode conhecê-las, e, em seguida, distinguir entre a afecção e a causa externa que a produziu, eliminando o amor ou o ódio derivados da afecção. Além disso, a presença das afecções “que se referem às coisas que compreendemos”, ou seja, às noções comuns, não está condicionada à presença dos corpos externos que podem tê-las ocasionado porque não derivam da imaginação. Isto quer dizer que tais afecções não estão sujeitas à flutuação que define a imaginação, que recolhe os efeitos dos corpos exteriores separados de suas causas e forma imagens desses encontros fortuitos. O poder da mente sobre as afecções que acompanham as noções comuns também deriva do fato de tais afecções serem causadas por vários fatores ao mesmo tempo (uma afecção é tanto mais forte quanto mais causas atuam na sua produção e é próprio das noções comuns ter vários corpos como causa, pois elas são propriedades comuns a todos os corpos). Finalmente, o poder da mente sobre as afecções consiste em ordená-las e encadeá-las de maneira adequada.

Devemos assim aproveitar os momentos em que não estivermos submetidos a afecções que entravam nosso poder de compreender para formar idéias adequadas (cuja primeira forma são as noções comuns), suscitando um encadeamento das afecções do corpo de acordo com tais idéias (uma vez que a ordem e conexão das afecções e idéias é a mesma). É o que diz a proposição 10 da quinta parte:

“Por este poder de ordenar e encadear as afecções do Corpo, podemos conseguir não sermos facilmente afetados pelas más afecções. Com efeito (pela proposição 7 desta parte214), requer-se maior força para entravar as afecções ordenadas e encadeadas segundo a ordem da Razão, do que para entravar as incertas e as vagas.”

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“As afecções que nascem da Razão ou são excitadas por ela, se se tem em consideração o tempo, são mais fortes que aquelas que se referem às coisas singulares, que nós contemplamos como ausentes.”

Isto ocorre porque a ordem da Razão é a ordem da Natureza e o que está de acordo com a Razão está de acordo com nossa essência singular (conatus). Veremos este ponto em maior detalhe no quarto capítulo. Espinosa prossegue instruindo os leitores sobre como viver mais sabiamente. Tais instruções poderiam ser confundidas com uma moral provisória à maneira de Descartes, já que substituem o conhecimento adequado das afecções. Sabe-se, porém, que a moral provisória é mais social do que individual e tem uma conotação conformista, na medida em que sugere que se siga os costumes do lugar em que se vive. Os conselhos dados por Espinosa neste trecho dizem respeito, de início, ao manejo das próprias afecções. Tais sugestões não se apóiam nos costumes, já que, apesar de pressupor que os seres humanos podem viver em harmonia, Espinosa não deixa de notar que não são muitos que procuram viver assim, ou seja, que os seres humanos que conduzem sua vida pela Razão estão longe de constituir a maioria. Veremos abaixo uma visão um tanto ácida sobre os seres humanos, freqüente sob a pena de Espinosa. Antes, vejamos seus conselhos:

“Portanto, o melhor que podemos fazer, enquanto não temos um conhecimento perfeito das nossas afecções, é conceber uma correta norma de viver, por outros termos, regras de vida precisas, e retê-las na memória e aplicá-las continuamente às coisas particulares que se apresentam frequentemente na vida, de maneira que a nossa imaginação seja profundamente afetada por elas e que elas nos estejam sempre presentes. Por exemplo, pusemos entre as normas de vida (ver proposição 46 da parte IV e seu escólio215) que o ódio deve ser vencido pelo amor, ou seja, pela generosidade e não ser pago com um ódio recíproco.”

O ódio deve ser vencido pelo amor, em primeiro lugar, no próprio indivíduo que o experimenta. Se nos deixamos contaminar pelo ódio alheio, ou se consideramos

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“Quem vive sob a direção da Razão esforça-se, quanto pode, por compensar pelo amor, ou seja, pela generosidade, o ódio, a ira, o desprezo, etc., de outrem para consigo mesmo.” O escólio diz: “quem quer vingar-se das injúrias pelo ódio recíproco vive, por certo, miseravelmente. Mas quem, ao contrário, deseja vencer o ódio pelo amor, esse, por certo, combate alegre e com segurança, resiste tão facilmente a um homem como a vários e carece, menos que ninguém, do auxílio da sorte. Àqueles que ele vence, esses cedem alegremente, não por deficiência, mas por acréscimo de forças; todas estas coisas se seguem de tal modo claramente só das definições de amor e de inteligência que não é preciso demonstrá-las uma por

facilmente as ações alheias como agressões ou injúrias, e passamos a querer nos vingar, esta preocupação nos mobiliza e nos faz perder parte de nossa potência. Primeiro porque, estando ocupados com o desejo de vingança, deixamos de ser afetados por outras coisas. Além disso, o ódio e as afecções a ele semelhantes são paixões tristes, que diminuem, por definição, nossa potência de agir.

“Mas, para este preceito da Razão nos estar sempre presente ao espírito, quando for conveniente, devemos pensar e meditar frequentemente nas injúrias dos homens e de que maneira e por que via elas podem ser repelidas o melhor possível pela generosidade; assim, com efeito, nós juntaremos a imagem da injúria à imaginação desta regra, e estar-nos-á sempre presente ao espírito (pela proposição 18 da Parte II216), quando nos fizerem alguma injúria.”

Devemos, assim, dispor do tempo em que não estamos tomados por afecções que prejudicam a capacidade de nossa mente para construir associações de idéias que nos conduzam a fazer que o amor prevaleça sobre o ódio, criando uma espécie de resposta automática. Tal resposta será um hábito mais fortemente adquirido se conseguirmos ligá-las a idéias adequadas, tais como as da necessidade em vigor na Natureza inteira e o princípio de busca da utilidade que deriva de nossa essência, como veremos no capítulo seguinte.

“Mas se nós tivermos também presente ao espírito o princípio da nossa verdadeira utilidade e ainda o do bem que resulta da mútua amizade e da sociedade comum e, além disso, que de uma norma de vida correta provém o supremo contentamento da Alma (pela proposição 52 da parte IV217) e que os homens, como as outras coisas, agem por necessidade da natureza; então a injúria, ou seja, o ódio que dela costuma resultar, ocupará uma parte mínima da imaginação e

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“Se o Corpo humano foi uma vez afetado simultaneamente por dois ou vários corpos, sempre que, mais tarde, a Alma imaginar qualquer deles, recordar-se-á imediatamente dos outros.”

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“O contentamento pode nascer da Razão, e só o contentamento que nasce da Razão é o maior que pode existir.”

será facilmente vencida; ou se a cólera, que costuma nascer das injustiças maiores, não é tão facilmente vencida, será, no entanto vencida, embora não sem flutuação da Alma, num espaço de tempo muito menor do que se nós não tivéssemos assim premeditado estas coisas, como é evidente pelas proposições 6, 7 e 8 desta parte218.”

Em seguida, Espinosa passa a tratar de outra paixão triste que nos acomete frequentemente: o medo. Para superá-lo, propõe que pensemos não só no poder de nossa mente, mas também que utilizemos nossas experiências pregressas para prever possíveis situações de risco e encontrar a melhor maneira de enfrentá-las. Tais pensamentos devem ser, contudo, organizados em função da busca pela nossa utilidade, ligada ao cultivo dos afectos de alegria, que aumentam nossa potência de agir, caso contrário, esses procedimentos não conduziriam a uma vida conforme à Razão.

“Para nos desembaraçarmos do medo, devemos pensar da mesma maneira na força de Alma; quer dizer, devemos enumerar e imaginar frequentemente os perigos ordinários da vida e a melhor maneira de os evitar e superar pela presença de espírito e pela firmeza de Alma. Mas deve notar-se que na ordenação dos nossos pensamentos e imaginações devemos atender sempre (pelo corolário da proposição 63 da parte IV e pela proposição 59 da Parte III219) àquilo que há de bom em cada coisa, a fim de sermos assim sempre determinados a agir pela afecção da alegria. Por exemplo, se alguém vê que busca demasiado a glória, pense no uso correto dela, em vista de que fim deve ela ser procurada e por que meios pode ser adquirida, e não no abuso dela, na sua vaidade e na inconstância dos homens e em coisas semelhantes.”

Espinosa passa, então, a descrever o modo de vida daqueles que vivem meramente conforme o ritmo de sua cupidez sem procurar arranjos afetivos que os conduzam a um modo de vida mais livre. Observa, ainda, que aqueles que canalizam

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As proposições 6 e 8 dizem: “na medida em que a mente conhece as coisas como necessárias, tem maior poder sobre as afecções, por outras palavras, sofre menos por parte delas” e “quanto maior é o número de causas simultâneas, pelas quais uma afecção é excitada, tanto maior ela é.”

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“Pelo desejo, que nasce da Razão, seguimos diretamente o bem e evitamos indiretamente o mal.” “Entre todas as afecções que se referem à mente enquanto ela é ativa, não há nenhuma além das que se

seus esforços para a obtenção de bens cuja posse é incerta são os que mais vituperam contra a índole dos seres humanos, mas esquecem toda amargura quando obtêm o que anseiam.

“Com efeito, é com tais pensamentos que os mais ambiciosos se afligem mais, quando desesperam de conseguir uma honra a que aspiram e, enquanto vomitam sua cólera, querem passar por sábios. Por isso, é certo que os mais desejosos de glória são os que mais clamam contra o abuso dela e contra a vaidade do mundo. E isto não é exclusivo dos ambiciosos, mas comum a todos aqueles para quem a sorte é adversa e aos que são de espírito impotente. Com efeito, o que é pobre e ainda por cima avarento não cessa de falar no abuso do dinheiro e nos vícios dos ricos, com o que não faz outra coisa senão afligir-se e mostrar aos outros que suporta de mau grado não só a sua pobreza, mas a riqueza dos outros. Da mesma maneira ainda, aqueles que foram mal recebidos pela sua amante não pensam senão na inconstância das mulheres e no seu espírito enganador e nos outros seus decantados vícios; e tudo isto lançam no esquecimento logo que são de novo recebidos pela amante.220”

A este modo de vida, opõe-se o modo de vida do sábio, que envida seus esforços na busca da realização de sua potência, que é o modo de liberdade acessível aos seres humanos. Ao invés de justificar a própria má sorte maldizendo a natureza humana, o sábio procura, ao contrário, conhecer as coisas de que os homens são capazes, com seus corpos e mentes. Além disso, busca compreender o funcionamento da Natureza, os encadeamentos causais que nela se produzem, e esta é a liberdade que consegue alcançar, não uma liberdade ilusória por meio da qual julga poder se furtar a tal encadeamento. Para finalizar o escólio, Espinosa faz comentários encorajadores, no sentido de mostrar que seus conselhos não são tão difíceis de executar. Veremos no próximo capítulo que essas considerações são exortativas, mas não supõem que a empresa a que Espinosa nos convida seja tida por ele como fácil, uma vez que o final da

Ética chama a atenção para o quanto os seres humanos negligenciam a sua salvação, ou

seja, a busca do terceiro gênero de conhecimento.

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“Aquele que, portanto se empenha em governar as suas afecções e apetites só por amor à liberdade, esse esforçar-se-á, quanto possível, por conhecer as virtudes e as suas causa e por encher a Alma de alegria, que nasce do conhecimento verdadeiro delas; mas de modo algum se esforçará por contemplar os vícios dos homens, nem por os injuriar, nem por gozar da falsa aparência da liberdade. Aquele que observar com cuidado estas coisas (com efeito, não são muito difíceis) e as praticar, esse poderá, certamente, num curto espaço de tempo, dirigir a maior parte das vezes as suas ações segundo o império da Razão.”