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O próximo exemplo diz respeito a realizações humanas mais complexas, que

envolvem “criatividade”248. A complexidade de objetos tais como templos e pinturas

indicaria que sua produção não poderia resultar da potência do corpo sem a intervenção da mente, ao que Espinosa responde voltando aos exemplos do sonâmbulo e da estrutura corporal. As ações do sonâmbulo são, por vezes, prodigiosas e nem por isso se diz que são causadas pela mente. A estrutura do corpo humano tem um grau de complexidade superior ao das obras de arte ou de engenharia e tampouco deve ser explicada pela mente, mas pela produtividade da substância infinita.

“Mas, dir-se-á que é impossível tirar apenas das leis da Natureza, considerada meramente como corporal, as causas dos edifícios, das pinturas e das outras coisas desta espécie que se fazem apenas pela arte humana e que o Corpo humano, se não fosse determinado e conduzido pela Mente, não estaria em estado de edificar um templo? Mostrei já que não se sabe o que pode o Corpo nem o que pode deduzir-se apenas da consideração da sua natureza, e que, muitas vezes, a experiência obriga a reconhecê-lo, apenas as leis da Natureza podem fazer o que jamais se julgou possível, sem a direção da Mente; são assim as ações dos sonâmbulos, durante o sono, de que eles próprios, no estado de vigília, ficam espantados. Acrescento aqui a própria estrutura do Corpo humano que ultrapassa muito de longe, em engenhosidade, tudo o que a arte humana fabrica, para nada dizer do que já atrás demonstrei, a saber, que da Natureza, sob qualquer atributo que seja considerada, se segue uma infinidade de coisas.”

Nesse momento, começa a refutação da suposição de que a mente comanda a capacidade humana de falar ou se calar, que inicia a discussão do tema da liberdade. A compulsão por falar é tomada como um caso particular da impossibilidade de controlar totalmente os próprios apetites. Contudo, no argumento dos adversários conjecturado por Espinosa, os exemplos daqueles que não conseguem calar-se (a tagarela e o embriagado) e dos que são conduzidos por apetites ou impulsos e ainda assim crêem desejar livremente os objetos para os quais tendem (a criança que procura saciar a fome com leite, aquele que se vê impelido para a vingança e aquele que procura fugir diante do medo) são vistos como representantes de uma regra da qual esses eventuais adversários se excluem. Espinosa fará desses exemplos, ao contrário, a regra da qual nenhum

indivíduo escapa. Não são apenas alguns indivíduos mais suscetíveis às solicitações corporais que se deixam levar por seus apetites, isto ocorre com todos os seres humanos. Alguns, contudo, supõem ter controle de suas inclinações, mas isto é uma interpretação inadequada das situações em que o impulso em questão é fraco e pode ser vencido por outras afecções que lhe são contrapostas (como a imagem de algum outro objeto mais desejável).

“Pelo que diz respeito ao segundo ponto, certamente que a sorte da humanidade seria muito mais feliz se estivesse igualmente na potência do homem tanto falar como calar-se. Mas a experiência ensina suficientemente e superabundantemente que nada está menos em poder dos homens que a sua língua e não há nada que eles possam menos fazer que governar os seus apetites. Daí resulta que a maioria julga que a nossa liberdade de ação existe apenas em relação às coisas que desejamos debilmente, pois, o apetite que nos inclina para essas coisas pode ser facilmente contrariado pela recordação de qualquer outra coisa de que nos recordarmos muitas vezes; enquanto que julgam que de modo algum somos livres quando se trata de coisas para que somos inclinados com uma afecção violenta que não pode ser acalmada pela recordação de outra coisa. Todavia, se eles não soubessem, por experiência, que muitas vezes lamentamos as nossas ações e que, frequentemente, quando somos dominados por afecções contrárias, vemos o melhor e fazemos o pior, nada os impediria de crer que todas as nossas ações são livres. É assim que uma criancinha julga apetecer livremente o leite, um menino irritado a vingança, e o medroso a fuga. Um homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da Mente que conta aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferiria ter calado. Do mesmo modo, o homem delirante, a mulher tagarela, a criança e numerosos outros do mesmo gênero julgam falar em virtude da livre decisão da Mente, enquanto que, todavia, são impotentes para reter o impulso de falar. A experiência faz ver, portanto, tão claramente como a Razão, que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes das suas ações e ignorantes das causas pelas quais são determinados; e, além disso, que as decisões da Mente nada mais são que os próprios apetites, e, por conseguinte, variam conforme as variáveis disposições do Corpo. Cada um, com efeito, governa tudo segundo a sua afecção própria, e, além disso, aqueles que são dominados por afecções contrárias, não sabem o que querem; finalmente, aqueles que não têm afecções são impelidos de um lado e outro pelo mais leve motivo.”

Aqueles que se julgam livres, portanto, apenas ignoram as causas que determinaram suas ações. Dito de outra maneira, aquilo que chamamos de decisão livre é apenas a determinação considerada sob o atributo do Pensamento, como Espinosa diz no prosseguimento do escólio. Depois disso, o domínio da mente sobre a fala é contestado mais uma vez, com a constatação de que as palavras devem ser registradas na memória, que é uma estrutura corporal, e, portanto a evocação de uma palavra está sujeita à causalidade corporal. Em seguida, Espinosa evoca situações de sonho com o intuito de mostrar que, da mesma maneira que acreditamos agir por decisões livres no sonho, mas não o fazemos, quando pensamos agir na vigília por decretos livres de nossas mentes, tampouco o fazemos. Pierre-François Moreau chama a atenção para o “material” utilizado por Espinosa nesta passagem, situações e imagens comuns tanto “na metafórica barroca, em que a vida é um sonho”, quanto na tradição filosófica (por exemplo, entre os céticos, os epicuristas e em Descartes). Espinosa recorre a essas “referências” comuns também em outros pensadores da “idade clássica”, mas para fins contrários aos destes. A referência ao sonho, ao sonambulismo e ao sono “longe de servir para depreender a liberdade última do Sujeito” presta-se a “estabelecer a opacidade e a impotência

originárias”249. Um passo necessário para sair desta situação de impotência é se livrar da

ilusão de agir motivados por decisões livres.

“Tudo isto mostra, sem dúvida, claramente que quer a decisão quer o apetite da Mente e a determinação do Corpo são, de sua natureza, coisas simultâneas, ou antes, são uma só e mesma coisa a que chamamos decisão quando é considerada sob o atributo do Pensamento e explicada por ele; determinação quando é considerada sob o atributo da Extensão, e deduzida das leis do movimento e do repouso, o que se verá mais claramente ainda pelo que, em breve, vamos dizer. Gostaria, com efeito, que se observasse particularmente o que se segue: nada podemos realizar por decisão da Mente de que antes não tenhamos a recordação. Por exemplo, não podemos dizer uma palavra, a não ser que nos recordemos dela.

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Mas não está na livre potência da Mente recordar-se de uma coisa ou esquecê-la. É por isso que se julga que o está na potência da Mente é apenas que podemos dizer ou calar, segundo a sua decisão, a coisa de que nos recordamos. No entanto, quando sonhamos que falamos, julgamos que falamos apenas por decisão da Mente, e, todavia, não falamos, ou, se falamos, isso provém de um movimento espontâneo do Corpo. Sonhamos também que escondemos aos homens certas coisas, e isso pela mesma decisão da Mente, em virtude da qual, durante a vigília, calamos o que sabemos. Sonhamos, enfim, que fazemos, por uma decisão da Mente, aquilo que, quando acordados não ousamos fazer. Em conseqüência disto, gostaria de saber se acaso existiriam duas espécies de decisões, as imaginárias e as livres. Se não se quer chegar até este ponto de insensatez, deverá necessariamente reconhecer-se que a decisão da Mente, que se crê livre, não se distingue da imaginação ou memória e não é senão a afirmação necessariamente envolta na idéia, enquanto é uma idéia (ver proposição 49 da Parte II250). E, assim, essas decisões formam-se na Mente com a mesma necessidade que as idéias das coisas existentes em ato. Aqueles,portanto, que julgam que é em virtude de uma livre decisão da Mente que falam, calam-se ou fazem seja lá o que for, sonham de olhos abertos.”

No próximo capítulo, retomaremos a crítica espinosana da idéia de livre arbítrio, através de uma leitura da carta 58 (de Espinosa a Schuller) que nos dará também ocasião de expor o que Espinosa entende por liberdade e como esta pode ser conquistada pelos modos finitos.

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IV – Prudência como dosagem na produção de efeitos: Espinosa, os chineses e o problema da liberdade

Para estudar o que Deleuze chama de experimentação, que engloba todos os procedimentos que ocorrem nos agenciamentos de desejo, parece-nos de grande valia uma passagem pelo Tratado da eficácia de François Jullien. É que tal noção pode ser aproximada daquilo que Jullien começa chamando de eficácia, para, ao final, definir mais precisamente como efetividade. Ao elaborar a idéia de experimentação, Deleuze e Guattari promovem uma renovação do tema da prudência, procurando escapar à concepção aristotélica e lhe dando tons espinosistas. Esta idéia remete à imagem do selo de Espinosa, usado como lacre em sua correspondência. No selo figura uma flor, acompanhada da inscrição Caute. Laurent Bove interpreta o convite contido no selo de Espinosa como “a exigência imanente e vital à qual cada um é ligado por seu direito natural. A tese de uma natureza estratégica dos conatus conduz a ler - no espinosismo –

uma ontologia dinâmica da decisão dos problemas”251. Nesse sentido, acautelar-se não

significa seguir uma mera regra prática cujo uso pode ser generalizado e estendido a toda sorte de situação. Ter cautela é colocar-se numa atitude estratégica ao lidar com os outros corpos, é aprender a entrar em composição com eles, a extrair das oscilações afetivas que eles nos provocam um manejo da própria potência de afetar e ser afetado e, consequentemente, da potência de agir.

Combate e estratégia: o enraizamento dos modos no