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A Doutrina Aristotélica da Esterilidade do Dinheiro e

2.1 A Procedência da Sociedade de Consumo

2.1.1 A Doutrina Aristotélica da Esterilidade do Dinheiro e

A filosofia grega viveu um aceso debate acerca da natureza da “vida boa” mas nenhuma corrente conhecida defendeu que a felicidade ética (eudaimonia) se

1Karl Marx criticava no Capital justamente essa passagem da relação “Mercadoria-

Dinheiro-Mercadoria” para a fórmula “Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro” que representa a forma de circulação em que o dinheiro se converte em capital. Como tal, já não se vende para com- prar (vende-se uma mercadoria para com o dinheiro resultante da sua cedência comprar outra mercadoria) mas sim compra-se para vender (o dinheiro é trocado por mercadoria que por sua vez é trocada por dinheiro). Comprar para vender é a transacção em que o dinheiro trasveste-se de capital supondo o seu regresso ao ponto de partida. No capitalismo o dinheiro pode agir, apenas, como meio de circulação.

Um centénio mais tarde, a Systemtheorie, sobretudo de Talcott Parsons e de Niklas Luh- mann, confirmou esta ideia quando defendeu o dinheiro como um medium funcional de troca.

conseguia através do êxito material e da dilatação do pecúlio. Quando Platão, na República, esboçou uma sociedade ideal, por intermédio do seu comu- nismo utópico, fê-lo sem privilegiar a propriedade. Ninguém possuiria nada, nem sequer a sua própria habitação para que, isentos da corrupção monetária, todos vivessem na mais acabada comunidade e harmonia.

No entanto, Aristóteles objectava que, nos termos platónicos da proprie- dade comum, o trabalho não seria equitativamente distribuído, sustentando, antes, a hipótese de um certo nível de aquisição própria que estivesse de acordo com a capacidade de trabalho demonstrada. O Estagirita separou duas variantes da aquisição: uma ordem natural que fornece os recursos necessá- rios à subsistência e à gestão doméstica, em que a acumulação de dinheiro não é viciosa na medida em que sendo um meio para um fim está limitada pela na- tureza desse próprio fim; e uma ordem que, longe de suprir as insuficiências materiais, estimula a reprodução monetária com vista à detenção de riqueza. A arte da obtenção de bens reveste-se, assim, de duas peles: uma doméstica, necessária e recomendável, e uma censurável e abominável por se realizar a expensas alheias. Aristóteles exproba a crematística que não governa a casa e que se define pela capacidade de utilizar o dinheiro como meio confundindo- o com o fim: “(. . . ) algumas pessoas são levadas a crer que fazer dinheiro constitui o objecto da gestão doméstica e pensam que tudo o que há a fazer na vida é aumentar o seu pecúlio sem limites (. . . ); alguns homens transfor- mam qualquer qualidade ou arte num meio de fazer dinheiro: concebem isto como fim e todas as coisas têm de contribuir para a promoção desse fim” (Aristóteles, 1998: 83). Esta crença no dinheiro como riqueza não é senão uma ilusão porque a abundância material não gera a abundância de uma “vida boa”, uma vez que se coloca como actividade que introduz um corte entre o homem e a natureza, e entre o homem e o próprio homem. Quando se cultiva os campos ou se criam animais obtém-se o ganho a partir da natureza au- mentando a quantidade de bens disponíveis à subsistência do homem. Porém, quando compramos algo e o tornamos a vender por mais dinheiro, não esta- mos a aumentar o valor do produto, com a agravante de que ganhamos o nosso dinheiro à custa da exploração do outro, disposto a comprar a um preço supe- rior ao da aquisição original2. O Estagirita enuncia, assim, a sua “doutrina da esterilidade do dinheiro” (Singer, 2006: 113-117) reprovando o comércio do

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dinheiro, sobretudo a prática do juro. “Ora o dinheiro foi instituído para troca, enquanto que o juro multiplica a quantidade do próprio dinheiro. É essa a origem do termo juro: os seres gerados assemelham-se aos seus progenitores e o juro é dinheiro nascido do dinheiro. Assim, de todos os modos de adquirir bens, este é o mais contrário à natureza” (Aristóteles, op.cit: 87). Aproveita- mento injusto do próximo, ruptura com a natureza ou vituperação da usura, é assim que Aristóteles entende a acumulação e a reprodução de dinheiro, con- siderado estéril assim que ultrapassa as fronteiras da necessidade doméstica e assim que subjuga o próximo à ganância individual. O dinheiro que gera dinheiro empresta o exemplo da mitologia do Rei Midas, contada por Oví- dio nas Metamorfoses. Recebendo o dom de transformar em ouro aquilo em que tocasse, Midas acabou por perceber que nem toda a abundância impede o sofrimento e a morte. De nada serve ter dinheiro sem com ele melhorar materialmente a condição de vida. Assim é também a ambição desmedida de ganho que gera dinheiro mas que não supre as necessidades domésticas. Não só a riqueza pelo juro prejudica, como também se mostra desvirtuosa porque comercializa o dinheiro.

Ao considerar a outra fonte do pensamento ocidental constatamos a mes- ma aversão à usura. Quando o cristianismo se impôs entre os judeus procla- mando uma ética universal onde cada um deve fazer o bem e emprestar o que é seu sem esperar nada em troca, então, ganhou força a ideia do comércio do dinheiro como actividade ilegítima. Mas ganha solidez sobretudo a ideia da agiotagem como acção delapidatória do homem. Quando o jovem Jesus ex- pulsou do tempo de Jerusalém não só os cambistas, como todos aqueles que ali compravam e vendiam alegando que tal actividade transformava um local de oração “num covil de ladrões”3, estava consumada a orientação religiosa do cristianismo face à sumptuosidade e à utilização do dinheiro como fim em si mesmo. Dirigindo-se aos oprimidos, o cristianismo via na pobreza uma sublime dignidade e encontrava na temperança um valor de elevado apreço. Além disso, a fé numa vida depois da morte, no Céu, levou a que a vida terrena, precária e difícil, fosse desconsiderada ao ponto de se insistir na fru- galidade. A atitude no que diz respeito aos bens terrenos é ilustrada pelas palavras de Jesus: “Falta-te só uma coisa: vai, vende tudo, dá os bens aos po-

tema da “exploração do homem pelo próprio homem” que Marx e Engels faziam coincidir com a burguesia capitalista recobre as formulações primogénitas do Estagirita.

bres e terás um tesouro no Céu”4. A relação entre a esfera religiosa e a esfera económica revelou-se tensa e culminou na rejeição dos bens económicos. Os mosteiros e os conventos exemplificam o ascetismo cristão face à riqueza. O monge renunciava aos prazeres corpóreos negando a si mesmo a propriedade individual. A sua existência baseava-se nesse repúdio e consagrava-se na par- cimónia, na sobriedade do seu próprio trabalho e na devoção ao Pai Criador.

Na fé cristã, a economia de lucro foi relegada para o campo do tabu e constituída como uma ofensa directa a Deus. O não ser capaz de agradar a Deus (Deo placere non potest) está na origem das advertências contra o apego aos bens materiais e pecuniários (Weber, 1982: 380). A própria Igreja, que se ocupou da manutenção da fé cristã, defendia uma atitude anti-crematística. Gregório Magno afirmou mesmo que, tal como existem tarefas que sujam o corpo (por exemplo, o limpar dos esgotos), também há outras que mancham a alma, e o câmbio é uma delas (Singer, op.cit: 119). O lucro não era bem estimado. No séc. V, o papa Leão I confidenciava ao bispo de Narbonne o quanto era custoso evitar o pecado no processo de compra e venda (idem). A usura era condenada e identificada com a avareza, um dos setes pecados mortais. A insistência sobre a pobreza e a condenação da riqueza não par- tilhada, isto é, da propriedade individual, relaciona-se com um outro pecado mortal, o da gula. O excesso dos prazeres corporais era criticado e constituía uma condição de impossibilidade de acesso à vida eterna a menos que fosse partilhada com os pobres. Sobre o louvor da distribuição da riqueza nasce a lenda medieval de Robin Wood, um homem que luta contra a corrupção dos costumes e da Igreja repartindo o dinheiro dos ricos com os pobres. Se existiu realmente, Wood poderia ter perfeitamente sido um padre que, cansado da po- dridão e desigualdade social, cumpriu escrupulosamente os desígnios da sua fé, tal como praticados pelo Messias.

Na tradição cristã dificilmente pode um mercador agradar a Deus.

2.1.2 O Princípio do Fim: a Disputa entre Rosseau e Smith e a