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A Ligação Comunitária: Relações Rituais, Totémicas

2.3 A Lógica Social do Consumo – Radiografia do homo consumans

2.3.3 A Ligação Comunitária: Relações Rituais, Totémicas

Uma das ilações que se pode retirar do que temos vindo a coligir é que as vidas sociais dos homens não sobreviveriam – pelo menos, nos seus actuais moldes simbólicos – sem a existência de objectos ou coisas. As coisas necessaria- mente possuem vidas sociais (Appadurai, 1986). Os bens de consumação não

são meras mercadorias, socialmente inócuas que merecem apenas uma con- sideração sumária e displicente. Os objectos pelos quais a consumação se efectiva são elementos dinâmicos, continuamente investidos e reinvestidos de valorizações. Completando a análise de Douglas e Isherwood, podemos afir- mar que a consumação envolve não apenas o envio de mensagens sociais como a recepção dessas mensagens. A consumação é um processo activo, social e relacional (Appadurai, op.cit: 31). Os objectos adquirem e perdem relevância, são cambiáveis ou não, dependendo das relações socio-temporais que se vão firmando. Eles dispõem de diferentes modos de criação de identidades sociais e de condicionar as relações interpessoais. Os objectos comportam “regimes de valor”, tantos quantas as arenas sociais onde entrem. Outorgar-lhes uma vida social não significa ingressar num animismo anódino, mas tem a preten- são de enfatizar a sua qualidade determinante na interacção homem/mundo dos processos sociais. Envolve afirmar, não que os objectos produzem o seu próprio sentido, mas que auxiliam e participam na emergência e na manuten- ção dos processos de sentido que o indivíduo confere à realidade social.

Se as coisas têm vidas sociais, as vidas sociais têm coisas (Lury, 1996: 10). Os objectos incluem significados tornando visíveis as categorias da cul- tura. É na aquisição, uso e troca societais, no fundo, é na consumação que os indivíduos manifestam as suas vidas sociais. Os bens materiais carregam sentido, são portadores de significado pelo que o seu uso é amplamente co- municativo. Esqueça-se que os produtos se destinam fundamentalmente a ser comidos, vestidos ou utilizados. Ignore-se a sua utilidade e destaque-se, antes, que os bens materais servem para pensar e para conhecer sociologica- mente o homem: afirme-se a sua mediação não-verbal das interacções sociais, enuncie-se o seu papel na construção social da realidade. Os bens da consuma- ção permitem construir um mundo inteligível a partir de uma visão conjunta da sociedade. Os objectos, seleccionam, e tornam aparentes e manifestos os juízos dos processos fluidos de classificação da realidade e das pessoas. A consumação é, por isso, uma actividade ritual “cuja função primária é tornar compreensíveis o fluxo incipiente de eventos” (Douglas e Isherwood, 1996: 43).

Um ritual define-se como um conjunto de actos formalizados, expressivos e portadores de uma dimensão simbólica que se caracteriza por uma confi- guração espacio-temporal específica através do recurso a objectos, a sistemas de comportamento, a uma linguagem específica e a símbolos emblemáticos.

O rito é, pois, um conjunto codificado de condutas simbólicas individuais e colectivas de carácter repetitivo. Ele produz a forma e a substância das rela- ções sociais ancoradas em mecanismos de solidariedade e identificação que impedem a deriva cultural. A repetição de gestos ligados a um objecto e o seu investimento afectivo e emocional que ocorre na consumação permite-nos pensar nela como um processo ritual cuja função essencial é assegurar a cir- cunscrição das categorias sociais. Ela estanca a verborreia da significância impondo sentidos estáveis que possibilitam a memória colectiva e a compre- ensibilidade. A consumação é um ritual25 que forma o estrato mínimo do consenso e dos significados concertados assumindo a forma de convenções sociais que tornam visíveis (conhecidas) as definições públicas. A escolha de bens que se opera na consumação cria um padrão de segregação que re- força algumas crenças e valores mas que exclui outros e que deve, por isso, ser perspectivada como um processo activo no qual todas as categorias so- ciais são continuamente redefinidas. Os objectos de consumação são, assim, meios de tornar evidentes e duradouras as categorias básicas pelas quais a sociedade classifica os seus indivíduos. Os bens servem para distribuir em classes os indivíduos sendo, neste sentido, promotores de identidade social. Os ritos conferem à realidade uma facticidade ou objectividade das crenças e princípios culturais tal que leva Douglas e Isherwood a falarem de concretude. Como ritual, a consumação é um mecanismo colectivo capaz de transferir o sentido, um estabilizador das relações humanas socio-culturais. O significado social da consumação é relacional e é tecido nos meandros da intersubjecti- vidade. “O sentido reside nas relações entre todos os objectos, tal como a

25McCracken identifica três grandes tipos de rituais de consumo (que correspondem ao que

nomeámos como consumação): os rituais de troca que implicam a escolha e a oferta de um objecto por parte de um indivíduo a um outro, como por exemplo o Natal; os rituais de posses- são ligados às actividades do coleccionador em que o indivíduo, projectando significados no objecto, transforma o produto num modo de expressão da individualidade. Vide a este propó- sito a análise ensaística de Baudrillard acerca do coleccionismo (2005: 91-114); o terceiro tipo de rituais de consumo é o de desinvestimento em que o indivíduo retira os valores do objecto para lhe atribuir novas valorizações, simultaneamente mais pessoais e socialmente expressivas. O objectivo é a separação simbólica do indivíduo do objecto para que o possa apropriar. Por exemplo, a limpeza e a redecoração de um apartamento para o qual o indivíduo se mudou ilus- tram esse desinvestimento dos anteriores valores e da re-atribuição de significações de modo a que o indivíduo se possa inserir e sentir confortável no seu uso (McCracken apud Heilbrunn, 2005: 45-47).

música está nas relações advindas dos sons entre si e não de uma única nota” (Douglas e Isherwood, 1996: 49). A faceta ritual da consumação, bem como a sua inserção cultural, permite que aproximemos as sociedades modernas e as sociedades primitivas, já que ambas denotam a tentativa de produzir o sentido através dos bens materiais.

Um outro aspecto onde se pode observar a universalidade dos fenómenos de consumação – retirando a primazia da modernidade do consumo conforme a ciência económica postula – é o carácter totémico que os objectos de con- sumação podem configurar no balisamento da relação do indivíduo ao outro. O totemismo das sociedades não-literárias reenvia à associação simbólica de animais ou plantas a comunidades de homens que partilham entre si a mesma genealogia e identidade simbólicas, sendo garantidas pelo animal ou planta representados. Um totem é um “objecto material ao qual o selvagem presta um respeito supersticioso porque ele crê que entre a sua própria pessoa e o totem existe uma relação particular” (Freud, 1993: 231). Os membros de um mesmo totem identificam-se reciprocamente entre si, reconhecendo-se e par- tilhando entre si os mesmos processos sociais. O totem integra os indivíduos em linhagens de parentesco que agregam realidades heterogéneas. De acordo com Lévi-Strauss, em Le Totemisme Aujourd’hui, o totemismo é a acção orga- nizadora do mundo natural pela qual este é seccionado em diferentes grupos de uma maneira que cria uma evidente diferenciação social. Um objecto natu- ral tende a representar toda uma estrutura social. A tribo será identificada em referência a esse objecto totémico que dá aos membros da tribo um fundo de partilhas que os aproxima e lhes confere uma identidade colectiva.

As sociedades contemporâneas operam, ainda hoje, formas transmutadas de totemismo conforme se pode perceber se tivermos em conta o modo como os indivíduos se posicionam face a um objecto de consumação. Estes são substitutos artificiais dos objectos naturais que preenchem a mesma função integradora e diferenciadora. Os objectos, devidamente distinguidos segundo a sua marca, são uma derivação de totem sobre os quais os indivíduos se abri- gam e se fazem associar de modo a marcar o seu próprio posicionamento na quadrícula social. Os logótipos e os emblemas apresentam, muitas vezes, ani- mais e plantas, espécies de mascotes, que relembram perfeitamente o carácter totémico da consumação hodierna. Acresce, a emergência de associações de consumidores de um tal produto traduz a mesma ligação social que os homens das sociedades não-literárias experimentavam sob a representação totémica. O

totem, tal como o produto de consumação, recolhe sobre si uma dada percep- ção do mundo que estrutura as relações interpessoais a partir da apropriação e da ostentação do objecto (Lury, 1996: 16).

Os consumidores das marcas respondem como os homens tribais a um totem: identificam-se, possuem códigos de comportamento uniformizados, estilos de vida comuns, um código de conduta e a partilha de afinidades elec- tivas importantes. A indumentária, o calçado, os adereços, a alimentação, os objectos que usam, funcionam todos como um código simbólico que os faz re- conhecer entre si e que operam como elementos classificadores e distintivos. Por exemplo, o dragão, a águia ou o leão dos emblemas dos clubes recrea- tivos e desportivos colocam sob a mesma umbrella identitária o conjunto he- terogéneo de sujeitos que pela sua reverência a esse totem contemporâneo se aproximam e reabrem os canais de comunicabilidade e afectividade. Não ra- ras vezes se iniciam relações afectivas e emocionais a partir da partilha de um mesmo totem. Como segunda ilustração, atentemos que um motociclo representa um totem moderno para o grupo de jovens que pertencem a um motoclube. A indumentária de cabedal, a aparência uniforme onde os óculos escuros e os cabelos compridos predominam, e os valores da liberdade e da autonomia, permitem ver os motociclistas desses clubes como sendo membros desse grande totem técnico que é a moto. Esta fornece uma outra organização da percepção do mundo que permite distinguir os seus membros dos outros clubes de objectos técnicos. Willis, estudando um motoclube no início dos anos noventa escreve: “As motos são personalizadas de modo a acentuar os traços de reconhecimento. Os cornos que adornam os guiadores e os guarda- lamas cromados dão à moto um aspecto feroz (. . . ); este conjunto compósito e móvel de barulho, metal e ornamentos vestimentários dá uma formidável expressão identitária a esta cultura e contribui fortemente para desenvolver os seus valores fundadores” (Willis apud Heilbrunn, 2005: 65). Como se vê, a relação destes homens não é a da funcionalidade ou da instrumentalidade mas a de uma expressão identitária que tende a enfatizar os valores convencionais da masculinidade: virilidade, agressividade, temeridade e intrepidez.

Em certa medida, o totem é um feiticismo, uma ordem religiosa na qual os objectos de culto participam da virtude divina obrigando a verdadeiros sa- crifícios (de tempo, de disponibilidade et caetera). Todavia, não é um feitiço já que, no totem, nunca se confunde a matéria bruta e física com as suas qualidades superiores atribuídas. No totem, como na consumação, a relação é

transparente e o que se joga é um laço social de aceitação, reconhecimento e integração social por lógicas de discriminação positiva e negativa.

A consumação faz transparecer os relacionamentos interpessoais ao ponto de se poder acrescentar à dimensão totémica uma dimensão tribal (Heilbrunn, 2005: 80). Identificar a marca ou os clubes de consumidores como uma tribo permite perceber como a ligação do indivíduo ao objecto não passa tanto por cartões de fidelidade como por uma experiência comunitária que aglutina o in- divíduo em volta de afinidades importantes capazes de gerarem “verdadeiros” públicos26. Em termos precisos, falamos de neo-tribalismo, como os agrupa- mentos comunitários que emergem na modernidade tardia e que decorrem das tribos descritas pelos antropólogos. As neo-tribos são marcadas pela fluidez: geograficamente dispersas raramente se condensam no espaço. Mas apesar da sua instabilidade não deixam de afectar envolvimentos emocionais (Lury, 1996: 250)

A ligação tribal ao objecto traduz-se na capacidade de raciocinar e dar sentido ao mundo a partir de uma comunidade que se funda na partilha de um interesse comum, e envolve a estimulação da sociabilidade em sociedades desagregadas (e desagregadoras). No fundo, a ligação emocional totémica e tribal que o indivíduo cultiva vem responder à necessidade de preencher os espaços omissos deixados em aberto pela progressiva erosão dos laços de parentesco e de solidariedade tradicional. Radicalizando, e em última aná- lise, poder-se-ia declarar que os objectos e as marcas são empossadas de um valor de ligação social, comutador simbólico das relações interpessoais que permite ao indivíduo retomar contacto com os outros mas, de igual modo, consigo mesmo. As relações estabelecidas entre o indivíduo e o objecto de consumação podem ser explicadas como o substituto simbólico das relações pessoais nas sociedades estandardizadas de cultura material, ocupando o vazio ocorrido na passagem à Gesellschaft. Os consumidores não compram regular- mente aquela marca devido à sua superioridade funcional (seja em utilidade,

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Não seria irrelevante devotar uma reflexão sobre o grau de emergência do público em associações que se concentram em torno de um produto, marca ou ideal. Quanto à sociabilidade multitudinária ou de massa, parecem existir ilustrações que confirmam o seu aparecimento por intermédio da consumação. A questão de averiguar até que ponto a sociabilidade público, mesmo que em sentido fraco, pode nascer das relações totémicas e tribais da consumação permanece em aberto.

preço ou disponibilidade) mas porque se sentem comprometidos e implicados nos valores que essa marca encorpora e transmite; sentem-se consumadores.

O que está em causa é o restabelecimento do laço comunitário que a con- sumação pode gerar sabendo o indivíduo que naquele momento outros indiví- duos consumam o mesmo objecto, perfilhando todos o mesmo sentimento de integração. Partilhando-se o mesmo ethos, a experiência individual insere-se numa experiência colectiva de acordo com modos de socialização particulares. As marcas dos produtos criam comunidades que compreendem um complexo estruturado de relações sociais entre os utilizadores cuja afinidade, relaciona- mento e história de vida relevam da consumação dessa marca. Como tribo, os indivíduos apresentam algumas características fundamentais: a natureza hostil para com marcas concorrentes como forma de coesão, um comprometimento afectivo e uma disponibilidade horária para o apoio público à marca, e um conjunto de rituais (tal como a indumentária ou os sociolectos) que lembram a identidade de cada clã.

As tribos são refúgios para aqueles que tentam escapar da solidão do pri- vado (Bauman apud Lury, 1996: 253). Elas são a solução anónima, privada e formal de se chegar ao domínio do público por forma a estabelecer laços de sociabilidade recíproca. Os objectos e a consumação são o modo contempo- râneo, por excelência, de atingir a publicidade das relações intersubjectivas e comunitárias. São os media abstractos pelos quais o indivíduo, preservando a sua intimidade, dá a cara e se faz existir. Assim, o homem apenas dá a conhe- cer metonimicamente a sua faceta de consumidor (e consumador). Esta, sendo parte, dá-se como o todo. A intimidade é guardada do público e o indivíduo pode entrar em relações sociais (ainda que frágeis) sem entrar em conflito com o seu “interior”. Eis como a atomização do privado se observa nas práticas de consumação.

A relação de sociabilidade outrora delegada, por exclusivo, na publici- dade é contemporaneamente exercida na consumação, nomeadamente, nos processos relacionais entre consumidor e marca. Penetrando no mais pro- fundo âmago da sociabilidade, as marcas logram uma importância e influência decisivas na organização das relações interpessoais e da intersubjectividade, entrando em quezilenta concorrência com os modos tradicionais de regulação da vida social dos indivíduos. O objecto de consumação substitui-se ao ser humano, interpõe-se-lhe, copiando ou talvez mais exactamente simulando, a ligação comunitária. Porém, não é somente a relação social que a consuma-

ção vem influenciar. Os próprios processos da identidade individual sofrem completas remodelações.