• Nenhum resultado encontrado

2.1 A Procedência da Sociedade de Consumo

2.1.3 O Espírito do Capitalismo

A conexão entre a Reforma e o capitalismo moderno foi já sugerida por al- guns autores. Friedrich Engels, de acordo com a tradição marxista, derivava o protestantismo do reflexo ideológico das transformações económicas. A no- vidade da interpretação de Max Weber rejeita essa explicação. Ele destaca a complexidade das influências recíprocas entre as bases materiais, as formas de organização social e política e o conteúdo espiritual da Reforma (Weber, 2005: 63).

Resistindo à tentação de separar um “mundo material” do capitalismo de um “mundo não material” da religião, Weber, em 1905, em Die protestan- tische Ethik und der ’Geist’ des Kapitalismusfaz convergir o secular e o re- ligioso. O protestantismo, longe de se alhear das actividades materiais quo- tidianas, integra um elemento religioso em todos os aspectos do crente, em especial, nos aspectos materiais (Giddens, 2005:182).

O atributo característico do capitalismo ocidental moderno consiste na or- ganização racional do trabalho livre, uma espécie de alocação de recursos por intermédio, não da coacção mas da dissoluta pré-disposição do indivíduo que “encaixa” o espírito do capitalismo em si mesmo como dever moral. O es- pírito do capitalismo consagra o aumento do capital como objectivo em si, caracterizando-se por uma dedicação integral ao ganho económico e à activi- dade lucrativa que não passa por uma aplicação esbanjatória desse rendimento na prossecução de interesses individuais. Apenas no negócio deve ser apli-

cado já que é aí que o indivíduo pode provar a sua eficiência profissional e dignidade moral. A aquisição de cada vez mais dinheiro combinada com uma privação severa de todo o hedonismo é um fim em si. “O ganho é considerado como objectivo de vida do homem e já não como meio de satisfazer as suas necessidades materiais” (Weber, 2005: 38-39). Axiomas como “tempo é di- nheiro”, “o dinheiro tem uma natureza reprodutora e fecunda” ou “o crédito é dinheiro” (Weber, op.cit: 36) reproduzem explicitamente em que consiste o capitalismo moderno que se apoia num “dever do indivíduo” cuja não dedica- ção aos negócios pecuniários é sancionada.

Será o conceito protestante de vocação (Beruf ) a operar a assimilação dos negócios profanos ao domínio religioso. A vocação do indivíduo mais não significa do que o estabelecimento de uma relação com Deus em que a sua prova de respeito passa por se dedicar inteiramente à sua profissão (Beruf ) de forma pessoalmente desinteressada e ascética. O protestantismo substitui, desse modo, o ascetismo monástico católico, e à rejeição da vida temporal opõe o integral interesse pelos assuntos mundanos. Os deveres ascéticos pro- testantes ligam-se, não à rejeição da vida material mas à sua subordinação, não enquanto sumptuosidade mas enquanto humildade. Weber nota a frugalidade aparente dos capitalistas protestantes como entrega do seu sacrífico em prol da produção e da acumulação de riqueza. O sucesso e a prosperidade económica fundam-se religiosamente. A vocação é um chamamento para Deus, um cami- nho espiritual ao seu encontro que deve necessariamente passar pela acabada disponibilidade do indivíduo para o mundo carnal mundano. Ela é a qualifi- cação moral da actividade profissional. O dever para com Deus inscreve-se como acção moral somente se se desenvolver no quadro da actividade tempo- ral, enquanto tarefa. O acesso a Deus, sobretudo no Luteranismo, já não passa por um recolhimento das actividades quotidianas mas estas são mesmo a con- dição primordial do crente protestante estar entre os eleitos para a salvação. Para os protestantes ascéticos, o mercador não só agrada como é preferido por Deus. É que a direcção da relação alterou-se: já não se trata da existência de um Deus protector para o Homem, mas o Homem dedicado aos assuntos mundanos para Deus.

A ética protestante da “vocação” afigura-se-nos com alguns aspectos preg- nantes que merecem uma consideração adicional. A afinidade que o Protesta- nismo ascético estabelece entre a religião e a vida quotidiana desenvolveu-se historicamente como uma propensão à laicização. Na disseminação destas

crenças, a secularização apagou as suas origens religiosas experimentando uma gigante aceitação, por parte do tecido social, do vigor económico que é exigido a cada indivíduo. Independentemente dos seus motivos, este “espí- rito” do capitalismo foi paulatinamente sendo partilhado tornando-se no es- pírito de todos. Um dos interesses do trabalho de Weber é a tentativa de de- monstração da dimensão irracional da racionalização que acompanha a vida económica do capitalismo moderno. Trata-se do facto de ser a crematística a dirigir a conduta individual e social, e não o contrário. O negócio, a pro- fissão e a empresa ganham foros de objectivos de vida, puros fins apesar da sua qualidade de meios. Esta intuição antecipou, desde logo, o conflito entre a ética do dever e a ética da responsabilidade que eclodiria nas sociedades capitalistas.

A tese apresentada por Weber do espírito do capitalismo configura-se, em traço gerais, pela orientação crematística contrariamente ao pensamento grego e cristão. No entanto, não se deve opô-las sem aturada ponderação. O protes- tantismo não deixa de possuir uma elevada dose de ascetismo; não obstante a entrega aos negócios, os indivíduos inclinam-se a utilizar os seus ganhos em termos da sua vocação e não enquanto formas estratégicas de diferenciação de classe social ou de conspicuosidade. Eles não fazem a prédica do consumo, tal como hoje parece existir. Entregam-se ao trabalho e ao lucro mas o seu intento não passa por fazer do lucro uma forma de consumir. Pelo contrá- rio, o capital é conseguido pela limitação do consumo e pela poupança. Este facto leva-nos a assumir prudência na aplicação do espírito do capitalismo ao capitalismo hodierno que, como veremos, se recobre de formas díspares em relação às relatadas por Weber. Actualmente, o capitalismo reveste-se menos de um ethos religioso do que de uma forma de alcançar o prestígio social. Assim, esta incursão sumária só tem a ambição de expor a transição entre uma tradição anti-crematística, o capitalismo (com o seu foco no lucro) e a sociedade de consumo. Interessou-nos exprimir a influência deste espírito na transformação do capitalismo e, por conseguinte, na formatação das práticas de consumo. O protestantismo ascético deve, pois, ser compreendido como o modo de funcionamento do capitalismo ocidental, um catalisador de energias sociais que não resume por inteiro o capitalismo.