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2.3 A Lógica Social do Consumo – Radiografia do homo consumans

2.3.5 Consumação e Publicidade

Após a defesa de uma lógica social da consumação importa, à laia de epílogo, rematar a problematização da consumação justificando a sua cabal pertinência numa dissertação acerca da publicidade.

Arguimos que nas sociedades estandardizadas cujo carácter é alter-direc- cionado emerge uma configuração figurativa da publicidade como forma de manutenção (formal) das relações sociais e da sociabilidade. Do mesmo mes- mo, a consumação é uma prática eminentemente social que visa o engendra- mento horizontal do laço societal fundando uma reciprocidade de valores que permitem as estratégias sociais de diferenciação e de assimilação. Na publi- cidade figurativa, a consumação é o processo social e material a que se aliam os sujeitos para se fazer existir publicamente enquanto membros aceites e re- conhecidos de uma classe ou comunidade. A consumação parece ser o agen- ciador das alianças selando-as na simbolização que os indivíduos manipulam a favor do seu projecto de identidade. É participando, não no consumo, mas na consumação que os homens contemporâneos se declaram disponíveis para encetarem ligações de cooperação, empatia e reciprocidade.

A dimensão relacional da consumação poderá ser melhor entendida do ponto de vista da antropologia social. Tomemos de empréstimo as relações sociais que a dádiva instaura nas sociedades não-literárias estudadas como potlacht por Franz Boas e Marcel Mauss, e como kula por Bronislaw Mali- nowski, para estabelecermos uma analogia entre uma “teoria geral da obriga- ção” da dádiva e uma “teoria da obrigação social” da consumação, ela própria envolvendo uma vertente incontornável de ofertas e trocas de bens.

Nas sociedades chamadas “primitivas”, a troca de objectos é um convé- nio baseado na obrigatoriedade de oferecer, receber e retribuir presentes, que se dá como “facto social total” (Mauss, 2001: 114), isto é, como fenómenos materiais sobre os quais convergem todas as dimensões institucionais das so- ciedades, possuindo encargos políticos, morais, económicos ou religiosos. A tripla obrigação de dar, receber e retribuir encerra o paradoxo que consiste no carácter voluntário, aparentemente livre e gratuito, mas ao mesmo tempo, necessário e forçoso das prestações sociais de troca. A resolução dada por Mauss passa por considerar o hau, o espírito dos objectos, como o motivo que, legitimando a tripla obrigação, implica a circularidade da troca. O indi- víduo ou tribo que recebe deve devolver o hau através de outro presente, ao

mesmo tempo que deve receber a oferenda como acto conativo que preserva a relação social. “Tudo se passa como se houvesse troca constante de uma matéria espiritual” (Mauss, op.cit: 69). Recusar uma oferta seria rejeitar a ligação e a comunhão, o equivalente a cerrar os laços relacionais entre tribos abrindo caminho às hostilidades e à beligerância. “As sociedades progrediram na medida em que elas próprias, os seus sub-grupos e, enfim, os seus indiví- duos, souberam estabilizar as suas relações, dar, receber, finalmente retribuir. Para comerciar era necessário saber depor as lanças. Foi então que teve êxito a troca dos bens e das pessoas (. . . )” (Mauss, op.cit: 196). Na verdade, o hau é o espírito ou símbolo de uma solidariedade e uma sociabilidade partilhadas que para subsistirem devem ser renovadas, actualizadas e reparadas perma- nentemente pela dádiva individualmente livre mas socialmente obrigatória. A dádiva é por nós interpretada como um símbolo da relação social que institui e mantém significativas as estruturas sociais. Dá-se não para receber, mas para que o outro dê também. Dá-se, assim, para que, participando no colectivo, o outro contribua também com a sua subjectividade. “Aquilo que obriga a dar é que dar obriga” (Godelier, 2000: 25).

A consumação é um tipo social de dádiva. Não só envolve a oferta e a troca de bens, como ela própria é, em si, uma dádiva social, um modo pecu- liar de exprimir uma relação social aí gerada, reproduzida e desenvolvida. Se fizermos o exercício heurístico de pensar a consumação como dádiva social, percebemos que, tal como a dádiva antropológica, a consumação, institui mu- tuamente uma dupla relação entre quem dá e quem recebe: uma relação de solidariedade em que se comunga dos mesmos objectos, e uma relação de dí- vida entre quem dá e quem recebeu. Quando consuma o indivíduo enceta uma relação para si mas sobretudo alter-direccionada, para os outros. Estes ficam livremente obrigados de lhe corresponder aceitando-o na sua consumação e reconhecendo-lhe ou não, a classe social e a pertença social materialmente reclamada.

A consumação como dádiva social não só aproxima os actores sociais enquanto repartição de uma relação, como os aproxima numa relação de dí- vida positiva que os “obriga” a manter laços de sociabilidade que poderão ser aprofundados. Ao consumar, o homem coloca o seu par no jogo inte- raccional encetando uma “obrigação” de receber e retribuir essa solicitação, não apenas respondendo à interpelação, como, mais tarde, interpelando ele mesmo. O príncipio tutelar da consumação não é o interesse (individual) mas

a reciprocidade (social). O indivíduo é racional mas não detém apenas uma racionalidade económica; frui de uma racionalidade cultural e simbólica que o vincula aos processos societais que procuram retirá-lo do isolamento ato- místico para o inserir em colectividades onde a confiança (Malinowski, 2002: 85-86) e a cooperação é perpassada pelas relações materiais que medeiam os laços inter-pessoais. A moral da dádiva concorda com a moral da consumação: a reprodução das relações sociais29por intermédio dos objectos, trocando-os e oferecendo-os, ou, no caso da consumação, adquirindo-os e utilizando-os. Possuir é dar (Malinowski, op.cit: 97). Consumar é oferecer-se. “Se damos as coisas e as retribuímos é porque nos damos e nos retribuímos “respeitos” – dizemos ainda “delicadezas”. Mas também é que damos a nós mesmos ao dar- mos aos outros, e, se damos a nós mesmos, é porque “devemos” a nós mesmos – nós e o nosso bem – aos outros” (Mauss, 2001: 140). O desejo comunitá- rio é aquele que move ainda o indivíduo a manusear os objectos como uma linguagem que classifica e diferencia, que o insere em relações neo-tribais e totémicas, e que funciona como uma escrita biográfica.

A consumação (tal como a dádiva) produz e reproduz as relações sociais tornando-se um assunto público na medida em que tomou para si as funções de sociabilidade e de identificação social que a esfera pública detinha para si no séc. XVIII. Consuma-se para mostrar, para ver, para partilhar, para mani- festar. A consumação não é um assunto exclusivamente privado mas público. Em termos privados e individuais só existe consumo. Quando subimos o de- grau para a consumação, é a sociedade que se exibe. A consumação é um processo objectivo societal de cariz circulatório e ininterrupto que ultrapassa a esfera privada do consumo para alcançar a esfera pública do reconhecimento individual pela sociedade. Assim, a publicidade figurativa e a consumação re- partem a mesma lógica social de reconhecimento identitário e inscrição das subjectividades. A existência social que depende da visibilidade (publicidade figurativa) subordina-se, igualmente, à materialidade (consumação).

Todavia, a publicidade figurativa que “sucede” à publicidade demonstra- tiva carece de um espaço público. A mediatização da esfera pública oferece um lugar de publicidade mas não preenche todos os requisitos para o reconhe- cimento identitário do indivíduo. Mais rigorosamente, os dispositivos tecnoló-

29Uma relação que é social mas que, como vimos, passa também por assumir contornos

gicos de mediação simbólica não permitem a participação cabal, por parte do indivíduo, nos processos de consumação. Esta encontra, na modernidade, um espaço, físico e social, exclusivo à comunhão material: o centro-comercial. Fruto da erosão da sociabilidade face-a-face, da aridez urbana despoletada pela necessidade de usufruir da funcionalidade circulatória dos espaços ci- tadinos, e da concentração empresarial, os centros comerciais oferecem ao indivíduo o local de prática da consumação. É aí que o homem se dota de recursos materiais que lhe permitem afirmar-se e onde ele compõe e pautua a sua relação com os objectos de forma a construir reflexivamente a sua identi- dade. A consumação operada nos centros-comerciais diz respeito a relações sociais mútuas: se foca o indivíduo envolve a sociedade; se foca a sociedade implica o indivíduo (Miller et all, 2005: 17).

O centro-comercial reúne as condições para que se possa identificá-lo como o espaço físico predominante da consumação. No entanto, a sua im- portância é mais abrangente. Na medida em que a consumação é um assunto de cariz público, de tecelagem das relações sociais por intermédio de uma cultura material, o centro-comercial configura-se como um sério pretendente ao estatuto de espaço público. Não um espaço público que serve de suporte a uma publicidade crítica mas certamente um espaço público que serve de sustentáculo a uma publicidade figurativa alter orientada assente na urdidura material da identidade. Os caminhos para chegar à própria identidade, para ocupar um lugar na sociedade humana e viver uma vida reconhecida como significativa, exigem visitas diárias ao centro-comercial (Bauman, 2000: 48). Na modernidade tardia, o centro-comercial não é um lugar asséptico de estrito e exclusivo consumo passivo, mas o lugar de um assenhoreamento ac- tivo dos seus espaços com a consequente significância a ele atribuído. Quando se introduzem num centro comercial, os sujeitos não entram num mero espaço arquitectónico, numa simples engenharia, mas penetram num outro tipo de es- paço onde as motivações não são apenas privadas, como passam por um acon- dicionamento daquele espaço ao desfrute individual de uma forma muito se- melhante àquela utilizada nos espaço públicos “convencionais”. Num centro- comercial as pessoas passeiam, cirandam, figuram, vagueiam erraticamente, distraem-se, marcam encontros, namoram, discutem, reflectem, aprendem, conhecem et caetera. Exposições artísticas invadem os centros comerciais, bem como espectáculos, actividades lúdicas, manifestações, demonstrações, colectas de sangue ou acções públicas de sensibilização. Aí compram-se pro-

dutos mas, de igual modo, desenvolvem-se acções que fundamentam aquilo que podemos entender por “experiência pública”. Os quadros de sentido do centro comercial deslocaram-se do conceito de mercado alargado para o de espaço público concentrado. A forma como os indivíduos se posicionam, pensam e fazem uso do centro comercial ilustra o deslizamento que ocorreu na sua apreensão. Publicidade e consumação são experiências indelevelmente societais, e na contemporaneidade, convergiram. No último capítulo da parte II, ao aproximar essas duas esferas, procuraremos explorar a hipótese de ver no centro comercial um tipo especial de espaço público.