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O Princípio do Fim: a Disputa entre Rosseau e Smith

2.1 A Procedência da Sociedade de Consumo

2.1.2 O Princípio do Fim: a Disputa entre Rosseau e Smith

Poder-se-ia afirmar que até ao séc. XVIII a concepção helénica e cristã acerca do dinheiro perdurou. Isto não significa que não tenha existido actividade co-

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mercial intensa com fins de riqueza. A tendência à reprodução do dinheiro como meio equiparou-se com a propensão a ver o dinheiro como fim, ambas degladiando-se num equilíbrio instável mas sempre renovado. Foi com o Re- nascimento, o Iluminismo e depois com a Industrialização, que esse equilíbrio se perdeu dando início à orientação crematística que hodiernamente impera.

Jean-Jacques Rosseau notou a precariedade desta igualdade de forças e defendia, em 1755, no Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, no seguimento das suas leituras de Platão, Aristóteles, Epictecto, Séneca e Plutarco, uma visão do mundo desprovida da avareza ma- terial e egoísta. Ela consistia num ideal de civilização que mesmo sendo já impossível de atingir completamente deveria constituir uma referência da con- duta do homem nos assuntos económicos. De acordo com Rosseau, existem dois tipos de desigualdade: uma desigualdade natural ou física estabelecida pela natureza e que consiste nas dissimilitudes da aparência (idade, altura, vigor, qualidades do espírito et caetera); e uma desigualdade moral ou polí- tica que depende de uma espécie de convenção e do consentimento colectivo (Rosseau, 1995). Somente a desigualdade moral, ou seja, social, se opõe à igualdade pois a desigualdade natural acaba por auto-anular-se5 (a diferença de alturas pode ser compensada ou invalidada pela diferença de agilidade). A degradação moral do homem que Rosseau observa na civilização advém das desigualdades sociais e encontra na propriedade um importante fundamento. A propriedade privada permitiu ao homem reunir mais do que o necessário, fê- lo comparar-se com o seu vizinho, tendo como efeito o desejo de o suplantar em riqueza. Glosando Aristóteles, o filósofo suíço identifica na acumulação de riquezas uma fonte de desigualdade e de violência contra a natureza, pre- ferindo tomar como modelo de civilização aquela onde o estado de natureza é mais vincado e onde, alega, existe a paridade. A figura do “bom selvagem”6 encarna um estado de natureza onde as necessidades e a sua satisfação vão de par em par, e onde a felicidade reina porque o homem utiliza a natureza em seu proveito sem que precise de possuir alguma coisa. Foi o desenvolvi-

5O ponto de vista defendido por Rosseau é naturalmente simplista. No entanto, por questões

de pertinência, conservamo-lo intacto abstendo-nos de considerações críticas.

6As sucessivas formulações do “bom selvagem” são ilustradas pelo Robinson Crusoé

(1717) de Daniel Defoe, Lettres Persanes (1721) de Montesquieu, Candide (1752) de Vol- taire, Le Supplément au voyage de Bougainville (1772) de Denis Diderot e Émile (1762) de Jean-Jacques Rosseau.

mento da procura de luxo, da propriedade e do poder que atiraram o homem primitivo para a civilização, o arrancaram à natureza e o enclausuraram num espaço social que se caracteriza por um pacto de associação a favor dos prós- peros. A prevaricação da civilização é um vício que corrói o homem e o faz ansiar por mais posses que o impedem de estar em harmonia consigo e com a natureza. É contra este pacto ilegítimo que Rosseau irá, mais tarde, defender um “Contrato Social” (1966) onde cada um pode exercer directamente a sua soberania.

Insurgindo-se contra a perspectiva “ingénua” de Rosseau, Adam Smith irá em The Theory of Moral Sentiments (2000) argumentar a favor dos be- nefícios da multiplicação das necessidades e da reunião de posses, porque é esse desejo o motor da invenção humana que permitirá melhorar o bem-estar individual. Na obra mais influente do professor escocês de Moral, Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations(1981), é desenvolvida uma linha de argumentação que advoga o princípio que, para servir os inte- resses individuais, se deve procurar produzir bens mais baratos e eficientes do que aqueles existentes. A posse de bens e produtos, bem como o comércio monetário são vistos como formas socialmente úteis de atingir o bem-estar, contribuindo para a paz e a harmonia sociais. A produção económica torna- se, deste modo, não um factor de desigualdade social mas um instrumento a favor da melhoria das condições de vida, providenciando não só os produtos que beneficiam a vida do indivíduo, como também oferecendo milhares de empregos que possibilitarão aos indivíduos obter o seu sustento.

Em nome do interesse público, a crematística alcança o mais elevado re- conhecimento tornando-se num fundamento basilar do funcionamento das so- ciedades modernas. O desenvolvimento económico gerado concilia-se com o mote bíblico: “sede fecundos e multiplicai-vos, enchei e submetei a terra; dominai os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam na terra”7. Com Smith, descobre-se o filão da economia de livre iniciativa abrindo a caixa de Pandora dos desejos e das necessidades humanos aos im- perativos da felicidade. Riqueza, produção, eficiência e rentabilidade entram no vocabulário quotidiano à medida que coincidem com o objectivo social do bem comum. Adam Smith é, assim, o primeiro a fazer uma inversão da atitude anti-crematística ao mesmo tempo que enceta o processo de alargamento da

economia às estruturas da sociedade. Foi o professor de Moral e não Rosseau quem foi ouvido. Smith forneceu a primeira grande matriz do capitalismo que culmina no que chamamos hoje “sociedade de consumo”. Começa aí o princípio do fim da influência dos ensinamentos helénicos e da religião cristã. A história subsequente indica-nos uma radical viragem de direcção ironi- camente também consubstanciada por uma religião. A “sede de ganho” ou o “instinto de lucro” sempre existiu. A questão acerca da atitude crematística e do capitalismo é “reconhecer o carácter específico do racionalismo ocidental e, dentro deste, as formas do racionalismo ocidental moderno, assim como ex- plicar o seu aparecimento” (Weber, 2005: 20). A originalidade do capitalismo ocidental caracterizou-se pela incidência em crenças religiosas singulares que determinaram o aparecimento de um ethos económico.