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A Estrutura Socio-Económica do Capitalismo

2.1 A Procedência da Sociedade de Consumo

2.1.4 A Estrutura Socio-Económica do Capitalismo

Identificado o impulso basilar que a convergência do religioso e do secular deram origem, convém descrever com propriedade a passagem lenta e gradual das formas do capitalismo como método de introduzir a sociedade aquisitiva contemporânea. Tal não deixará de enfatizar as consequências ao nível indi- vidual e social.

Nos séc. XVII e XVIII, a indústria e a técnica não existiam de forma acabada, e as ideias medievais, embebidas dos ensinamentos clássicos, ainda detinham assinalável influência. Tal como Rosseau advertia, a prédica mer- cantil do lucro ainda era tida por um engodo, uma actividade sem ética e não- cristã. Por outro lado, o olhar sobre a mecanização era ainda céptico. Mesmo Montesquieu era incapaz de deixar de crer que as máquinas, cujo efeito é a di- minuição do número de trabalhadores, eram perniciosas (Montesquieu, 1979: 115). O progresso económico seria benéfico e enriquecedor desde que não violentasse o equilíbrio social e não ameaçasse o homem.

A partir do séc. XIX, é exactamente o indivíduo que será colocado no cen- tro do sistema económico à medida que a mecanização se generaliza. Um cada vez maior número de produtos chega às classes médias urbanas animando, com o seu consumo, os processos de produção em larga escala. Com o for- talecimento da produção e do consumo, o indivíduo deixa de ser o critério de todas as medidas para se tornar mais um recurso ou instrumento de pro- dução, operando-se a transmutação de trabalhador (labor manual e natural) em operário (labor mecanizado, artificial e tendencialmente urbano). O sis- tema económico capitalista neste século, aquele que Weber descreveu como uma “ética da vocação”, caracteriza-se pelo recrudescimento industrial e pela intensa exploração operária já que o detentor de capital supunha agir moral- mente bem na perseguição do lucro, mesmo que tal implicasse a abstração da humanidade dos operários. O princípio de que se cada um procurar o lucro contribuirá para o bem-estar de todos, enunciado por Adam Smith, torna-se o axioma por excelência da atitude capitalista.

O mercado erige-se como instância mediadora da distribuição do produto social. A “lei do mercado” passa a dominar a vida económica e social como meio de conciliar as necessidades e os produtos. Como as necessidades são sempre maiores que a soma total da satisfação dos produtos, é necessária uma estrutura que regule a procura e a oferta sob a forma de distribuição dessa

relação entre necessidade e satisfação. Ao contrário das sociedades tradicio- nais onde era o poder nobiliárquico, coercitivo, a distribuir e a apropriar-se do produto do trabalho social, na modernidade o mercado assume funções seme- lhantes mas mais democráticas (toda a gente lhe pode aceder). “O moderno mercado é o mecanismo auto-regulado de distribuição que torna desnecessário dividir o produto social de acordo com um plano tradicional e premeditado, e que, assim, bane o constrangimento do uso da força na sociedade” (Fromm, 1991: 88).

A lei do mercado apesar de seduzir o indivíduo com uma maior liberdade aquisitiva não deixa de ter uma liberdade ilusória uma vez que ele é obrigado a submeter-se às leis do mercado e às coagentes procura e oferta. Estas não só limitam a escolha e a decisão individual como incentivam uma extrema com- petitividade à medida que a compra e a venda se efectuam diferencialmente, a partir da existência ou não, de produtos mais atractivos. A competitividade económica estendeu-se à sociedade onde cada um ensaia ultrapassar o outro com vista à sua própria satisfação. Conforme a luta pelo sucesso económico se imiscui na sociedade, as regras morais da solidariedade humana corroem- se a expensas do lucro e do auto-provimento das necessidades que fazem do dinheiro um atributo pessoal. É a quantidade de dinheiro alcançado à custa do esforço específico de cada um que determina a qualidade moral do carácter do indivíduo. E ele não olha a meios para se revestir dessa aura pecuniária que, crê, o transforma numa pessoa melhor, respeitada e reconhecida pela socie- dade. Não admira por isso que a propensão à propriedade privada tenha re- gistado níveis elevados. O carácter do homem tende à acumulação (hoarding orientation), o que traduz um ser metódico, económico, prático, obsessional e possessivo (Fromm, 1971: 66).

A corrupção dos laços de solidariedade social teve, também, importantes consequências ao nível da relação entre o indivíduo e o trabalho. O traba- lho e a exploração feudais do indivíduo eram regidos segundo um sistema de obrigações mútuas que incluíam a protecção pessoal e a garantia de um nível de vida mínimo. No décimo nono centénio, a exploração adquire tonalida- des outras a par com a transformação do operário num recurso de mercado ou mercadoria. Não há nenhum sentido de reciprocídade entre empregador e trabalhador. As obrigações despersonalizam-se, tornam-se contratuais e for- mais e a exploração laboral sofreu um efeito de anonimização. O operário é usado abstractamente como uma máquina produtiva que se pode (e deve) uti-

lizar com vista ao lucro. O indivíduo não é avaliado em si mas como móbil, torna-se não um fim em si mesmo mas um meio de satisfação de interesses privados. A máquina económica ostracizou a moral e relegou o imperativo categórico kanteano para o quadro das curiosidades filosóficas. O detentor de capital maneja o operário na sua produtividade, energia física e psíquica, vitalidade e creatividade para fazer das “coisas” e dos objectos aspectos mais importantes do que o homem. O sistema económico capitalista, surgido pro- priamente no séc XIX, foi motivado pela melhoria das condições materiais do homem oferecendo-lhe mais comodidade, mais poder de compra ou mais domínio sobre as forças naturais. No entanto, tal implicou uma sujeição do social à economia, do homem às coisas, do parecer ao fazer, do ser ao ter.

Na passagem de século, a direcção cumulativa e explorativa deflecte em direcção a uma maior exterioridade e à partilha e exibição de riqueza que re- querem uma maior capacidade de ajustamento social e aprovação (Fromm, 1991: 99). A obstinação da posse (a que corresponde a colonização europeia de África no séc. XIX) e a repressão das ideias e dos pensamentos (como o tabu da vida sexual que Freud viria a romper) com vista à concentração nos processos de produção, sofreram uma transformação que tornou a sociedade mais permeável e aberta (open-minded) a par e passo com o crescente impe- rativo de escoamento da produção e da insistência nos processos de consumo. No decurso, regista-se a concentração empresarial e de capital com o cresci- mento tecnológico (motor de combustão, electricidade, energia atómica) e a redução dos trabalhadores que se vêem substituídos por uma cada vez maior prolixidade de máquinas que comutam a inteligência humana pela inteligência artificial sob a justificação de um maior controlo do processo produtivo.

O que está em causa, no séc. XX, é a rematada conclusão dos métodos de abstractificação e quantificação principiados no centénio anterior. O dinheiro torna-se o símbolo desta sociedade e com ele emerge a urgência da “aquisição produtiva”, isto é, do consumo como resposta económica à produção e da pro- fusão de objectos que juntos garantem a subsistência do sistema económico, tanto no plano da produção como no do consumo.

No fundo, o que se observa com a chegada do capitalismo é a transfor- mação da vida social que passou de um predomínio da Gemeinschaft à Ge- sellshaft. A vida social deixou de se caracterizar como uma comunidade unitá- ria ou agregado de consciências aglutinadas em torno dos mesmos valores. Já não se funda no consenso (Verständnis) e nas vozes uníssonas. Com o cresci-

mento demográfico, a sociedade vai pesando menos sobre o indivíduo, e este torna-se-lhe lasso, emancipa-se, individualiza-se8. À Wertrationalität (von- tade natural) da Gemeinschaft opõe-se uma Zweckrationalität (vontade racio- nal) da Gesellschaft, uma racionalidade de fins, solidariedade já não mecânica mas orgânica onde os homens vivem separados e procuram individualistica- mente o seu próprio bem sem consideração do próximo9(Tönnies, 2002: 77). A estrutura socio-económica do capitalismo que ensaiamos expor permite compreender a realidade contemporânea. Ela forma o pavimento sobre o qual se construíu o edifício do consumo, e traduz um facto essencial: a abstracti- ficação das relações sociais (a produtividade, o trabalhador como mercadoria, a acumulação e a propriedade) e o concomitante predomínio das relações ma- teriais que o homem leva a cabo em si e entre si.

Os objectos sobre os quais o consumo existe passam a formar um modo de relação ao mundo que funciona a nível psicológico (reforço ou gratificação individual) e a nível sociológico (como relação totémica de solidariedade). É este duplo movimento – intra e inter-pessoal – que é fundamental reter. Eis a hipótese que nos guiará no restante percurso. O consumo começa por ser um fenómeno da teoria económica mas rapidamente alastra à teoria so- cial por força da sua influência no tecido societal. No entanto, a maioria das abordagens da prática do consumo fica-se pela interpretação económica de suprimento das necessidades e justifica-o pela teoria económica do valor, en- tranhada pelo conceito de utilidade.

A contaminação entre os processos da prática económica e da sociedade, tal como explicada pela teoria económica, não leva a conclusões que permitam compreender os paradoxos que hoje vivenciamos: se o indivíduo compra com vista a satisfazer as suas necessidades, como aceitar a múltipla redundância do consumo? Se o homem económico é racional, porque escolhe produtos que apresentam os mesmos atributos tangíveis? Se não existem outras motivações para além das económico-racionais como se pode escolher? Ou seja, se a compra se define pela satisfação da necessidade porquê continuar a produzir? Se vivemos numa “sociedade de abundância” como afirma Kenneth Gallbraith

8A sociedade pesa menos mas não deixa de se fazer notar. A progressiva racionalização da

vida humana arremessa o indivíduo para uma “jaula de ferro” na terminologia de Max Weber. A jaula não “pesa” no indivíduo mas condiciona-o, constrange-o e inibe-o.

9

A distinção entre Gemeinschaft e Gesellshaft recobre um tipo de sociedade semelhante respectivamente à sociedade hegeliana e à sociedade benthamniana.

(1976), porque continua o trabalho a dominar os nossos dias, porquê produzir mais?