• Nenhum resultado encontrado

A Organização Dramática da Experiência

1.2 Prolegómenos de uma Publicidade como Estética da Figuração

1.2.7 A Organização Dramática da Experiência

Como forma de aprofundar a dimensão simbólica da experiência humana, bem como a sua relação com a publicidade e a privacidade contemporâneas, parti- remos do pressuposto de que um método pregnante de compreender a esfera pública hodierna passa por perspectivá-la de um ponto de vista dramatúrgico analisando o modo como é representada a experiência social nas interacções interindividuais.

Ninguém duvida da pertinência do campo semântico da expressão e re- presentação dramática para descrever a experiência colectiva. Vários auto- res socorreram-se das metáforas cénicas para analisarem e descreverem as interacções sociais. O próprio conceito de “expressão dramática” (play) de Mead é nesse ponto eloquente não deixando dúvidas quanto á sua relevância e aplicabilidade à sociologia. Com efeito, a dramatização com que os agen- tes sociais se revestem leva-nos a pensar que vivemos no seio de um “drama público” (Chaney, 1993: 2). As relações do desempenho dramático podem ser utilizadas como ferramentas de descrição e de caracterização das formas interaccionais. Elas são um modo de falarmos sobre nós mesmos, deriva- ção de um comentário meta-social, instrumento analítico que mostra a forma como nos vemos a nós próprios. É pela moldura do drama que a experiên-

cia quotidiana pode ser melhor enquadrada e compreendida. Mas também a experiência pública o pode ser se a ela aplicarmos a sua natureza fenoménica que tudo torna visível. “Os eventos públicos assentam na possibilidade de se construírem papéis como algo para os quais existe identificação pelos actores e pela audiência. A exposição (display) do carácter e da identidade social é parte integrante à empresa dramática” (Chaney, op.cit: 18). O drama opera pela e por causa da exposição e da manifestação porque envolve um distan- ciamento da observação. A sociedade dá-se a “ver” pela visualização através da dramatização.

O filão mais proficiente para explorar a natureza fenoménica da publi- cidade, como lugar do aparecer, do óptico e das aparências, prende-se jus- tamente com as artes cénicas e com a compreensão dramática da publici- dade. No Séc XVIII, a sociedade deu sentido ao mundo do teatro e da vida quotidiana por intermédio dos mesmos códigos interpretativos, restaurando a crença rosseuaniana de que o tipo de vida urbano forçava os homens a portarem-se como actores com vista a serem sociáveis entre si (Sennett, 1974: 64). Esta tradição do theatrum mundi que fazia coincidir a realidade quoti- diana com a representação dramática já havia tido o seu início quando o impe- rador Augusto pronunciou as derradeiras palavras no leito de morte: “Acta est fabula, plaudite” (a peça de teatro terminou, aplaudi) ou quando Shakespeare colocou na boca de Hammlet: “All the world’s a stage” (O mundo inteiro é um palco). O que está aqui implícito tem enormes consequências nos assuntos que temos vindo a dissertar, em especial sobre os conceitos de esfera pública e esfera privada. A analogia entre encenação e vida quotidiana tem por suposto o seguinte raciocínio: tal como o actor esconde a sua vida interior quando interpreta um papel, também o indivíduo urbano oculta a sua personalidade quando está em público por forma a se tornar mais sociável e a conservar o sentimento de si. Com a metáfora do theatrum mundi – que corresponde a uma psico-morfologização do mundo (Sennett, 1974: 259) – faz-se a distin- ção entre a privacidade, alheia aos olhares, e a publicidade, a esfera onde o indivíduo encena um papel especialmente dotado a ser avaliado e julgado pu- blicamente. Esta “ponte estrutural” entre a crença na similitude entre teatro e realidade foi conseguida através de dois princípios concordantes: o corpo passa a ser interpretado como manequim; o discurso como símbolo. No Séc. XVIII, as pessoas passaram a produzir pela indumentária um corpo endere- çado a ser visto mas não a ser conhecido, vestindo-o sumptuosamente mas

impedindo a expressão individual. Com as perucas, pinturas, folhados e laços a indumentária servia como sinal da ascendência e excelência do indivíduo e tinha o propósito de distinguir claramente, e por convenção, a classe social a que pertencia (Chaney, op.cit: 69). A face tornou-se mero pano de fundo onde se desenhavam caracteres pictóricos abstractos. A indumentária era muito pa- recida com aquela utilizada nos palcos pois estabelecia essa ponte entre palco e vida, entre ficção e realidade. Esta objectivação do corpo correspondia à necessidade de atrair a atenção para as roupas insinuantes ao mesmo tempo que tornava discretas as singularidades do indivíduo, numa nítida demarcação entre o que deve ser conhecido e o que deve permanecer na ignorância, no fundo, entre aquilo que pode ser público e o que não o pode ser, o privado. Em síntese, o corpo como manequim pretendia marcar a dimensão pública do indivíduo tornando-o soberbamente parecido com os outros indivíduos de modo a disfarçar as idiossincracias, relegadas para a privacidade.

Por outro lado, o discurso tornou-se símbolo17, isto é, apontava para a existência de uma realidade além de uma dada expressão verbal e reproduzia a crença de que as aparências eram um manto que cobria o verdadeiro indiví- duo escondido na sua interioridade, só alcançável na privacidade. Ao colocar à frente de si um símbolo, o indivíduo fazia da sua aparência um modo de aparecer publicamente, de se mostrar, ou seja, de se representar.

Estas transformações ocorridas no Séc. XVIII obtiveram grandes e notá- veis consequências no Séc. XIX e XX inspirando as teses do individualismo e corroborando o exarcebamento da esfera privada face à esfera pública. Não obstante, e por outro lado, estes factos permitem-nos perceber melhor a di- mensão dramática e figurativa da publicidade contemporânea. Invadida pela mediatização, a intimidade tornou-se pública e com ela acresceu o imperativo do indivíduo se fazer representar publicamente – mesmo na esfera privada –, de construir um papel que pela manipulação simbólica o coloque perante os seus pares de um modo positivo e socialmente concordante (e conforme) com o fim de que a sua identidade possa ser reconhecida. Reparamos que, ao tornar-se um manequim, o corpo do séc. XVIII acentuou o regime de

17

Neste ponto diferimos terminologicamente de Sennett embora concordemos integralmente com a sua posição. O autor discute a passagem do discurso de símbolo a signo mas fá-lo expli- cando o seu argumento em moldes muito parecidos àqueles pelos quais entendemos símbolo (Sennett, 1974: 73-87). Por isso, até por uma questão de congruência teórica com o que temos vindo a assertar, optamos por manter o termo “símbolo”.

visibilidade da publicidade atraindo sobre o indivíduo o foco das atenções imputando-lhe a necessidade de se revestir e de se figurar. Em público a ex- pressão individual não é tão individual quanto colectiva, baseia-se mais no “Me” do que no “I”, é mais conformista do que inovadora. A expressão não é tanto de sentimentos quanto de manifestações de sentimentos aceites. Na- turalmente a mediatização trouxe à luz a parte sentimental e íntima dos indi- víduos mas isso não significa que eles não tendam a dissimulá-la construindo e agindo em torno de papéis simbólicos socialmente definidos de acordo com quadros públicos de interacção societalmente consensuais.