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3. Fundamentação teórica

3.4 A Educação Bilíngue

Em relação ao conceito de Educação bilíngue, práticas de ensino que podem ser consideradas como Educação Bilíngue não são um privilégio dos dias atuais. Suas primeiras manifestações remontam a eras antes de Cristo (GARCÍA, 2009).

No ano de 1977, foram descobertas na Síria tábuas que eram usadas para o ensino de línguas faladas na antiga Mesopotâmia. A idade dessas relíquias, e, por conseguinte, da primeira documentação de ensino bilíngue, é de aproximadamente 4.000 anos.

Muitos séculos depois, a concepção e os objetivos da educação bilíngue se modificaram, especialmente por dois fatores: o primeiro é a formação dos estados-nações na Europa, o que configura a ideia de língua intimamente relacionada com uma nação, um povo, um território.

As questões políticas que envolviam “povo dominador” e “povo dominado” fizeram com que os cidadãos de uma nação que falavam línguas

12 Optamos por fazer referência ao documento elaborado pela Associação francesa para o Desenvolvimento do Ensino Bi/plurilíngue (ADEB) por ser esta uma respeitável instituição na área.

diferentes daquela de prestígio se sentissem obrigados a abandonar suas línguas em favor da língua do dominador e a educação passou a ser feita somente no idioma considerado oficial do Estado.

Essa situação foi intensificada após as duas grandes guerras mundiais. Em meados da década de 1970, a preocupação com a alteridade começa a crescer e a atingir o campo dos idiomas. O mesmo respeito merecido às diferenças de etnia, sexo, classe ou idade é também exigido às línguas, e os falantes dos idiomas minoritários passam a considerar a diferença linguística como um direito a ser negociado.

O segundo fator é o gradual e exponencial processo de globalização que vem ocorrendo há tempos, o qual encurtou as distâncias e aproximou línguas e culturas umas das outras, aliado às revoluções nas comunicações e no meio digital.

Na atualidade, o acesso a meios culturais expressos em diversos códigos linguísticos é facilitado à grande parcela da população por meio da internet; a mobilidade – tanto física como virtual – está se tornando uma realidade cada vez mais presente e intensa. Ao mesmo tempo em que há uma demanda linguística muito maior para a vida no mundo de hoje, o campo de acesso a outras línguas se expande igualmente: “o mundo está se tornando rapidamente um vilarejo global misto” (MEHISTO ET AL., 2008, p. 10).

Hoje em dia, as regiões e países que possuem um contexto bilíngue frequentemente optam por uma educação condizente com a realidade linguística, a fim de valorizar os idiomas envolvidos. Decisões acerca das línguas envolvidas na educação são, não apenas pedagógicas, mas também políticas, como já discutimos no subcapítulo anterior.

Em outras regiões, além dos métodos que visam a contemplar o contexto bilíngue já existente, há instituições que se propõem a oferecer uma educação bilíngue em comunidades consideradas monolíngues. Todos esses elementos dinâmicos e a situação de crescente intercâmbio cultural e linguístico incitam a afirmação de que a educação bilíngue é “o único modo de educar crianças no século XXI ” (GARCIA, 2009a, p.5)

O prisma que a educação bilíngue pode tomar é extremamente amplo e varia de acordo com cada contexto social, cultural, político e linguístico. Quando pensamos em educação bilíngue, corremos o risco de sermos muito

reducionistas ou muito vagos. Como bem perceberam Cazden & Snow (1990, p.28), “educação bilíngue é um rótulo simples para um fenômeno complexo”.

Mackey (1972) alerta para o fato de:

Escolas no Reino Unido, nas quais metade das matérias escolares é ensinada em inglês são denominadas escolas bilíngues. Escolas no Canadá em que todas as matérias são ensinadas em inglês para crianças franco-canadenses são denominadas bilíngues. Escolas na União Soviética em que todas as matérias, exceto o Russo são ensinadas em inglês são escolas bilíngues, assim como escolas nas quais algumas matérias são ensinadas em georgiano e o restante em russo. Escolas nos Estados Unidos nas quais o inglês é ensinado como segunda língua são chamadas escolas bilíngues, assim como escolas paroquiais e até mesmo escolas étnicas de final de semana... [Consequentemente] o conceito de escola bilíngue tem sido utilizado sem qualificação para cobrir tamanha variedade de usos de duas línguas na educação. (MACKEY, 1972, apud GROSJEAN, F. 1982, p.213)

Para evitar dissensões, seguiremos, como referencial teórico, as definições, principalmente, de três pesquisadores, Mejía (2002) , Cummins (1996) e García (2009), que são complementares.

Anne Marie de Mejía (2002) divide os programas de educação bilíngue usando como critério seus objetivos: o primeiro tipo de educação bilíngue seria o de transição. O objetivo desse programa, na maioria das vezes voltado para imigrantes que chegam a determinado país ou para grupos dominados por outros com poder político superior, é oferecer educação na língua de casa dos estudantes e na língua-alvo inicialmente, para que, progressivamente, o ensino da língua de casa seja preterido em favor do outro idioma.

Tais programas visam de fato a uma transição na língua utilizada pelos estudantes e não valorizam a sua língua primeira, utilizando-a apenas durante o tempo necessário para que a mudança se processe. É o caso, por exemplo, de muitas escolas norte-americanas, que se utilizam do espanhol com crianças hispanofalantes nos primeiros anos escolares para a transição para o inglês nos seguintes anos.

O segundo programa é chamado por Mejía de manutenção: tal programa respeita a língua original do falante e acrescenta o ensino em uma língua adicional, de modo que o objetivo é ensinar-lhe o outro idioma, mas sem ignorar a língua de casa do aluno, de modo que ele tenha sua diversidade linguística respeitada.

Finalmente, o último tipo de programa, de enriquecimento, é considerado o mais indicado: seu objetivo não é apenas promover educação em uma língua adicional e respeitar o uso da língua de casa do aluno, mas sim potencializar tanto a língua original quanto a língua-alvo a ser aprendida.

Tal programa não apenas respeita, mas também valoriza a diversidade linguística e permite que o aluno possa se desenvolver em ambas as línguas e comunicar-se melhor através das culturas.13 O Quadro abaixo mostra um resumo dos modelos de educação bilíngue:14

Transicional De Manutenção De Enriquecimento

Perda da língua 1 Manutenção da língua 1 Desenvolvimento das

línguas Assimilação cultural Reforço da identidade

cultural

Pluralismo cultural

Incorporação social Afirmação dos direitos civis Autonomia social

Quadro 3: Modelos de educação bilíngue, adaptado de Homberger (1991)

Tomando como parâmetro a população-alvo, Cummins (1996) relaciona quatro tipos de programas de educação bilíngue. Os programas do Tipo I são aqueles destinados às populações indígenas – que foram conquistadas ou colonizadas em algum momento no passado – para reavivar ou resgatar o prestígio das línguas indígenas, a maioria delas sob ameaça de extinção. A exemplo do que ocorreu no Brasil e em muitos outros países, a maioria desses programas, no passado, tinha por objetivo ensinar a língua do colonizador e, dessa forma, promover a assimilação dos indígenas à sociedade dominante.

Os programas do Tipo II visam à manutenção e revitalização de uma língua minoritária nacional, a exemplo do que ocorre no Canadá. A língua minoritária, nesse caso, tem – ou já teve – algum prestígio social ou é oficialmente reconhecida. A maioria desses programas é do tipo de imersão na língua-alvo ou de duas línguas.

13

Vale dizer que, neste trabalho, vamos tratar da Educação Bilíngue sob o prisma deste programa de enriquecimento, também conhecido por bilinguismo de elite (CAVALCANTI, 1999).

14

Adaptado de Hornberger (1991, p.223) disponível em:

Os programas do Tipo III envolvem as línguas minoritárias internacionais, geralmente aquelas usadas por imigrantes no país que os recebeu. A maioria dos programas bilíngues dos Estados Unidos se enquadra nessa categoria e tem como população-alvo as crianças que falam em casa uma língua diferente da língua da escola. Muitos são do tipo transicional e se propõem a facilitar a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento acadêmico dos alunos.

Os programas do Tipo IV, destinados ao grupo linguístico majoritário, têm por objetivo adicionar uma segunda língua ao repertório linguístico dos alunos. É o caso, por exemplo, tanto dos programas de duas línguas no Canadá quanto dos de imersão na língua-alvo oferecidos pelas escolas internacionais no Brasil, estes últimos referidos como programas bilíngues de elite ou bilinguismo de escolha (CAVALCANTI, 1999). É a este último tipo de programa que vamos nos ater neste estudo.

Tipo I Tipo II Tipo III Tipo IV

Populações indígenas Populações que falam uma língua minoritária nacional

Populações que falam uma língua minoritária internacional Populações que falam a língua majoritária Modelos transicionais e/ou de manutenção Modelos de manutenção ou de enriquecimento Modelos transicionais, de manutenção ou de enriquecimento Modelos de enriquecimento Língua indígena e língua majoritária Língua minoritária nacional e língua majoritária Língua minoritária internacional e língua majoritária Geralmente uma língua de prestígio internacional ou uma língua nacional.

Quadro 4:Tipos de programas bilíngues (elaborado com base em Cummins (1996)15

Em uma perspectiva mais geral, García (2009) pontua duas características básicas da educação bilíngue: é qualquer instrução realizada

em mais de uma língua e ela sempre integra ensino de conteúdo e ensino da

língua. Isso significa dizer que ela não é caracterizada pelo ensino de uma língua como disciplina, mas pelo ensino de quaisquer conteúdos através de duas ou mais línguas como meio de comunicação, com o propósito de desenvolver nos alunos tanto o conhecimento do conteúdo quanto a capacidade comunicativa na(s) língua(s). E é este o conceito de educação bilíngue que iremos focar neste trabalho.

Vale ressaltar que a Educação Bilíngue se foca não só na aquisição de línguas adicionais, mas também em ajudar os alunos a se tornarem cidadãos globais e responsáveis, uma vez que aprendem a lidar entre culturas e mundos, fazendo da prática acadêmica algo pleno de significado e compreensível para milhões de crianças cujas línguas domésticas são diferentes da língua dominante da escola ou da sociedade em que vivem.

Muitas abordagens foram propostas para a educação bilíngue. Entre elas, damos especial atenção à abordagem CLIL (Content Language Integrated Learning - Aprendizado de Língua Integrado ao Conteúdo) , por considerarmos que ela cumpre, de fato, os objetivos da educação bilíngue da maneira como a compreendemos aqui.

Além disso, percebemos que tal abordagem poderia fornecer bases para uma melhor preparação das aulas de línguas adicionais em escolas regulares brasileiras, pois seria uma maneira de adaptar o ensino linguístico à realidade do aluno, como veremos mais detalhadamente a posteriori.

Discutidos esses quatro conceitos relevantes para nosso trabalho, vale agora uma análise da expansão da língua inglesa e do seu status atual.