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CAPÍTULO 1. Educação Escolar e a Educação de Jovens e Adultos

1.2. A Educação de Jovens e Adultos no Brasil: realidade, sujeitos, trajetória e

Tomada a decisão de estudar a EJA, é necessário entender que esta modalidade de ensino existe em decorrência de muitas pessoas, por motivos diversos22

Por isso é importante discutirmos a EJA, de um lado como uma modalidade de ensino desvalorizada por grande parte da sociedade brasileira e negligenciada pelo poder público e, portanto, necessitando da efetivação de múltiplas ações que vão desde o campo das políticas públicas até o dos métodos educacionais voltados aos jovens e adultos. De outro lado, mesmo neste contexto tão desfavorável, a EJA também é campo frutífero de experiências e por isso acredito que as pesquisas que a envolvem devem indicar caminhos e possibilidades, por meio da sistematização e análise de experiências positivas e bem sucedidas, que contribuam para a escolarização de pessoas em contextos diversos. Acredito no papel da produção de conhecimento acadêmico como importante meio para validar a EJA como essencial à inclusão social e econômica, pois contribui para que a sociedade compreenda que as pessoas jovens e adultas têm os mesmos direitos que as crianças e os adolescentes à educação escolar.

, não acessaram a educação escolar, ou tiveram a trajetória escolar interrompida. Para mim, estudar a EJA é contribuir, por meio da produção de conhecimento científico, para que mais pessoas jovens e adultas possam ter acesso ao direito de escolarizar-se.

No Brasil a EJA existe para que milhares de mulheres e homens tenham a oportunidade de aprender os conhecimentos escolares, direito esse que lhes foi negado ao longo de várias gerações. São pessoas adultas ou jovens, às vezes adolescentes, que nunca tiveram a oportunidade de estudar ou são recém-excluídas do sistema de ensino regular e aquelas que tiveram uma passagem pela escola marcada por interrupções (KAWAKAMI, 2007). Os sujeitos da EJA pertencem à

22 Entendo que estes motivos diversos estão intrinsecamente relacionados à forma como as sociedades vêm historicamente se organizando em função do acúmulo de capital que traz como consequência o fato de algumas pessoas se beneficiarem da exploração, principalmente do trabalho, de milhares de outras.

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camada da sociedade que historicamente vem tendo diversos direitos negados (FLECHA & MELLO, 2012), sendo um deles a educação. Essas pessoas são, principalmente, homens e mulheres de camadas populares, negras(os), indígenas, pessoas com algum tipo de deficiência, adolescentes infratores(as). As interrupções na vida escolar ou a não frequência se devem, em grande parte: à necessidade de ingressar precocemente no mundo do trabalho ou, na vida adulta, em cuidados domésticos; à inexistência de escolas no território onde as pessoas vivem; ao fato da escola não conseguir atender às necessidades especiais de algumas delas; à ausência de condições para que as pessoas privadas de liberdade possam estudar. Em todas essas (e outras) situações, o que sustenta o fato desta grande parcela da população brasileira por anos ser mantida fora da escola – ou a sua permanência não ser facilitada – diz respeito à ideologia hegemônica de que a escolarização não é importante e necessária para todas as pessoas; portanto, o investimento na educação, por ser considerado oneroso para os cofres públicos, é invariavelmente, menor do que o necessário.

Em artigo escrito por Di Pierro (2010), utilizando dados do censo demográfico do IBGE de 2007, a autora mostra que o Brasil23

Di Pierro et al (2003) apontam que a maioria dos jovens e adultos que frequentaram a escola por um curto período é composta de analfabetos funcionais, e que apenas as pessoas que passaram mais de oito anos na escola conseguem realizar atividades mais elaboradas de leitura e utilizar habilidades e conhecimentos escolares em suas vidas. O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf, 2011) aponta que o Nível Pleno de Habilidades

ainda possuía 10% de sua população, com mais de 15 anos, que não sabia ler e escrever (o equivalente a 14,1 milhões de pessoas). Dados do documento preparatório da VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA) indicavam que no Brasil existiam 67 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não haviam concluído o Ensino Fundamental (BRASIL, 2009), significando que quase 1/3 da população não concluiu o segmento da educação que deveria ser universalizado.

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23 Haddad e Di Pierro (2000) afirmam que na década de 1960 o Brasil possuía quase metade da população com mais de 5 anos analfabeta absoluta e que no ano de 1993 o Brasil se encontrava na “condição de um dos nove países que mais contribuem para o elevado número de analfabetos no planeta” (HADDAD e DI PIERRO, 2000)

seria esperado, em princípio, daquelas pessoas

24 “O Inaf define quatro níveis de alfabetismo: Analfabetismo: corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas simples que envolvem a leitura de palavras e frases ainda que uma parcela destes consiga ler números familiares (números de telefone, preços, etc.).

Nível rudimentar: corresponde à capacidade de localizar uma informação explícita em textos curtos e

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que completaram os nove anos do ensino fundamental. Ainda este mesmo relatório indica que os dados que foram analisados por este indicador nos últimos dez anos (2001 à 2011)

demonstram que o Brasil já avançou principalmente nos níveis iniciais da alfabetização, mas não conseguiu progressos visíveis no alcance de níveis mais altos, que são hoje condição para inserção plena na cultura letrada e direito de todos os cidadãos, a quem se assegura o acesso pelo menos ao ensino fundamental completo (INAF, 2011, p.23).

O fato de o Brasil possuir uma parcela bastante significativa de pessoas analfabetas e quase um terço de sua população pouco escolarizada pode ser compreendido a partir da história da educação pública de nosso país. Somente a partir da constituição de 1934 é que se promulga o Plano Nacional de Educação e a escolarização de pessoas jovens e adultas passa a ser reconhecida na forma de lei (HADDAD e DI PIERRO, 2000). Porém, apenas na década de 1940 é que são criadas ações governamentais voltadas principalmente para a erradicação do analfabetismo (Ibid., 2000; FLECHA; MELLO, 2012).

Flecha e Mello (2012) dividem as ações governamentais brasileiras para a promoção da EJA em quatro períodos: o primeiro de 1946 a 58; o segundo de 1958 a 64; o terceiro de 1964 a 85 e o quarto de 1985 até os dias atuais. Haddad e Di Pierro (2000), embora não sistematizem a história das políticas públicas para a EJA desta maneira, fazem menção a ações para cada um destes períodos que sintetizei a seguir utilizando ambas as referências:

• No primeiro período, que vai de 1946 a 58, o governo brasileiro identifica (pressionado pela UNESCO) que o analfabetismo é um problema que impede o desenvolvimento do país (HADADD; DI PIERRO, 2000);

operações simples, como manusear dinheiro para o pagamento de pequenas quantias ou fazer medidas de comprimento usando a fita métrica.

Nível básico: as pessoas classificadas neste nível podem ser consideradas funcionalmente alfabetizadas,

pois já leem e compreendem textos de média extensão, localizam informações mesmo que seja necessário realizar pequenas inferências, leem números na casa dos milhões, resolvem problemas envolvendo uma sequência simples de operações e têm noção de proporcionalidade. Mostram, no entanto, limitações quando as operações requeridas envolvem maior número de elementos, etapas ou relações.

Nível pleno: classificadas neste nível estão as pessoas cujas habilidades não mais impõem restrições para

compreender e interpretar textos em situações usuais: leem textos mais longos, analisando e relacionando suas partes, comparam e avaliam informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem maior planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de área, além de interpretar tabelas de dupla entrada, mapas e gráficos. (INAF, 2011, p.5)”

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• O segundo período de 1958 a 64, marcado pela difusão do método de alfabetização de Paulo Freire, antecedeu a ditadura e é considerada por Haddad e Di Pierro (2000) como um momento de extrema importância para a EJA. Esta modalidade de ensino passa a ser considerada como meio para as pessoas acessarem conhecimentos universais, ao mesmo tempo em que era instrumento de ação política, em que houve o encontro entre ações governamentais e de movimentos sociais criando uma educação que possibilitava a valorização do saber popular na escolarização;

• No terceiro período, que abrange toda a ditadura militar, de 1964 a 85, destaca- se a criação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) que, embora com fortes funções de contribuir com objetivos políticos do próprio governo militar, juntamente com a implementação do Supletivo, podem ser consideradas como ações que ampliaram as ofertas de EJA no território brasileiro;

• O quarto período, que vai de 1985 até os dias atuais, é marcado pelo processo de redemocratização e pela Constituição de 1988, considera que a educação é um direito universal e o Ensino Fundamental deve ser público e gratuito para todas as idades (HADADD; DI PIERRO, 2000). Este período é marcado, inicialmente, por governos neoliberais que pouco investiram na EJA, e também por uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIl, 1996), na qual a EJA é incorporada à Educação Básica. O ano de 2007 é um importante marco das políticas públicas para a EJA com a inclusão desta modalidade no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) que possibilitou que cada município recebesse recursos para cada estudante matriculado na EJA.

Haddad e Di Pierro (2000) e Flecha e Mello (2012) destacam que, independentemente de ações governamentais e políticas públicas específicas para a EJA, ao longo da história do Brasil os movimentos sociais desempenharam papel muito importante para a educação de jovens e adultos, principalmente no que diz respeito à alfabetização. As pessoas se reuniam em igrejas e outras organizações religiosas e comunitárias, em casas, sindicatos, espaços de trabalho para ensinar pessoas jovens e adultas a ler e escrever (HADDAD; DI PIERRO, 2000; FLECHA; MELLO, 2012).

Di Pierro (2010), em um balanço que fez sobre as políticas públicas para a EJA, argumenta que, embora esta modalidade ainda seja uma preocupação secundária no

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investimento na educação em geral, houve avanços principalmente no que diz respeito à

institucionalização da modalidade no sistema de ensino básico, com sua inclusão na política de financiamento (FUNDEB) e nos programas de assistência aos estudantes (alimentação, transporte escolar e livro didático) (Ibid., p.29).

Ainda segundo esta autora, no período em que ela realizou este balanço que abrangeu as administrações federais do presidente Luís Inácio Lula da Silva, embora muitas ações tenham sido empreendidas, principalmente para erradicar o analfabetismo, não havia um projeto coerente e consensual para a EJA na política social e educacional desta administração, “um projeto que seja coerente com as necessidades desta modalidade” (DI PIERRO, 2010, p.29). Segundo Di Pierro (2010), o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja) se mostrava como uma proposta bastante promissora. O PROEJA propõe a elevação de escolaridade de jovens e adultos em conjunto com a qualificação profissional, utilizando, para tanto, a rede de escolas técnicas federais já existentes e, outro mérito segundo a autora, diz respeito à possibilidade de grupos sociais que não tinham acesso a este tipo de escola poderem estudar nestas instituições (Ibid., 2010).

Muitos são os desafios que a EJA precisa enfrentar, dentre eles destaco a análise feita por Siqueira J. (2007) a respeito da relação intrínseca que deveria existir entre a EJA e o mundo do trabalho, pois, sendo os jovens e adultos, em sua maioria, já trabalhadores, é essencial que as propostas da EJA levem em consideração essa condição. Saviani (1997) discute que na elaboração da LDB, o “Substitutivo Jorge Hage” procurou inserir na lei uma adequação a respeito das jornadas de trabalho e a criação de salas de EJA nos locais de trabalho para os jovens e adultos que nunca frequentaram a escola ou não têm completos os seus estudos. Ainda segundo este autor, apesar de a proposta ter sido aprovada pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados,

[...] medidas como estas não tinham chance mesmo de figurar no texto legal nestes tempos neoliberais em que os direitos dos trabalhadores tendem a ser comprimidos, senão eliminados, jamais expandidos. (SAVIANI, 1997, p. 215).

Portanto, para que seja possível o estudante trabalhador frequentar a escola de forma plena, será ainda preciso lutar para que estas pessoas consigam ter assegurado o direito de que o mundo do trabalho não seja apenas considerado nas práticas

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educativas, mas nas jornadas adequadas e diferenciadas, de forma que seja possível conciliar estas duas atividades de forma satisfatória para ambas.

Outro desafio a ser superado para que as pessoas jovens e adultas permaneçam e concluam os seus estudos é o de que haja docentes com formação específica para atuarem nesta modalidade de ensino. Em geral, os professores tiveram apenas a formação para ensinar crianças e adolescentes, e as práticas educativas que desenvolvem muitas vezes não levam em consideração as especificidades da juventude e da vida adulta e, na melhor das hipóteses, são realizadas adaptações metodológicas para este público. Estudos apontam que poucos são os cursos de Pedagogia que formam professores específicos para EJA, e que nas licenciaturas este quadro é ainda mais preocupante, pois em muitas delas sequer existe uma disciplina, seja obrigatória ou optativa, específica para esta modalidade de ensino (DI PIERRO et

al, 2003; DI PIERRO, 2010).

Di Pierro (2010), ao analisar os egressos do programa Brasil Alfabetizado25,

aponta dois grandes problemas: o primeiro deles diz respeito à apropriação de habilidades de leitura e escrita estarem aquém do esperado, o que indica a ineficiência do programa que tem curta duração; outro problema destacado foi o número de matrículas26 no ensino fundamental que caiu a partir de 2003, o que indica que os

estudantes deste programa ou não se sentiram preparados suficientemente ou não encontraram oportunidades para darem continuidade aos estudos. A autora parte da hipótese de que

existe uma distância separando as necessidades educativas dos jovens e adultos das camadas populares, as condições de que dispõem para desenvolver seus processos de aprendizagem e o ensino que lhes é oferecido. (DI PIERRO, 2012, p.35).

Di Pierro (2012) ainda sugere que sejam feitas pesquisas em diversos campos para compreender em profundidade a realidade da Educação de Jovens e Adultos no país e, a partir disso, construir propostas de maior qualidade. A autora indica dois caminhos investigativos, um voltado para a análise de políticas públicas e o outro para

25 O programa foi criado em 2003 e tem por finalidade “capacitar alfabetizadores e alfabetizar cidadãos com 15 anos ou mais que não tiveram oportunidade ou foram excluídos da escola antes de aprender a ler e escrever”; o período estipulado para e alfabetização é de até oito meses, com uma carga horária estimada entre 240 e 320h. (Rummert e Ventura, 2007; http://portal.mec.gov.br)

26 Este dado chama a atenção, mas requer estudos mais aprofundados para conhecer em números a queda destas matrículas. Contudo mantive nesta pesquisa, pois, durante a realização dela, estive presente em escolas que oferecem EJA neste município, onde foi constante ouvir dirigentes se remeterem ao fato de haver queda no número de matrículas para esta modalidade. Novamente reitero a necessidade de serem realizadas pesquisas para verificar o significado destas informações.

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as características dos jovens e adultos e para o que pode influenciar as suas motivações para se escolarizarem.

O projeto de EJA no qual se desenvolveu a presente pesquisa mostra que, embora a universidade tenha garantido aos seus funcionários um período do trabalho para que pudessem frequentar as aulas, e que para muitos deles, com a certificação, haveria aumento salarial, muitas pessoas decidiram não aderir ao projeto. Ao ouvir os estudantes que participaram da pesquisa, compreendi que alguns motivos eram subjetivos como, por exemplo, o medo de retornar à escola depois de décadas distantes dela; a possibilidade do fracasso escolar; o medo de realizar avaliações, a desconfiança do trabalho realizado no projeto e a ideia de que na idade adulta não se aprende mais nada. Estes sentimentos são reforçados por uma sociedade que não acredita no direito à escolarização de jovens e adultos, por isso defendo que, em conjunto com todos os elementos escritos anteriormente, se fazem necessárias grandes mobilizações que estimulem as pessoas a se inserirem na EJA e, claro, que seja também fortalecida uma educação para as pessoas jovens a adultas.

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