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CAPÍTULO 1. Educação Escolar e a Educação de Jovens e Adultos

1.1. Educação Escolar

Esta pesquisa é dedicada a estudar a educação escolar. Compreendo a escola como lugar que as pessoas buscam para aprender determinados conhecimentos e que sofre influência do tempo e do contexto sociocultural no qual está inserida. Neste sentido, o que se ensina e aprende na escola sofre tais influências.

Mello, Braga e Gabassa (2012) afirmam que a escola, a partir do final do século XX, vem sendo palco de conflitos e de “altos índices de não aprendizagem dos conteúdos escolares” (Ibid., p.19) e indicam que esta instituição não tem respondido às demandas e aos anseios nela depositados. Diante disso, as autoras argumentam que “é preciso transformar a escola” (Ibid.) e os desafios que esta deve enfrentar para se transformar precisam ser focados nas mudanças sociais e culturais da contemporaneidade em escala global, pois estas influenciam de diferentes maneiras as localidades (MELLO; BRAGA; GABASSA, 2012).

O primeiro desafio diz respeito ao valor atribuído ao conhecimento e à informação, por isso a escola precisa se assumir como “difusora de instrumentos intelectuais básicos” (Ibid., p.29), de forma que as pessoas e seus grupos estejam preparados e protegidos para poderem ter acesso digno e equitativo ao trabalho e a direitos diversos (Ibid.). Neste sentido, as autoras afirmam que se faz necessário, a partir das bases de uma educação crítica, dialógica que dê condições para a autonomia das pessoas, a aprendizagem da leitura, da escrita e da matemática, “com alto grau de domínio técnico”20

20 Embora as autoras não mencionem diretamente os outros conteúdos de ensino, entre eles as Ciências, a compreensão que tenho desta referência é que a aprendizagem destes conteúdos está inclusa quando o que se pretende é a preparação das pessoas para enfrentarem os novos desafios impostos pela contemporaneidade.

, a aprendizagem de outros idiomas e o manejo das tecnologias da comunicação e da informação (Ibid.).

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Outro desafio destacado por Mello, Braga e Gabassa (2012) refere-se à diversidade cultural e à necessidade de garantia de igualdade de direitos aos grupos e pessoas. A escola, então, precisa ser considerada como o espaço de encontro, contato, conflitos e diálogos entre as diferentes culturas. As autoras argumentam que a escola é o único espaço onde isso acontece e em que, ao mesmo tempo, se tem o objetivo de formar as pessoas para que todas tenham uma vida melhor (Ibid.). Por isso, a escola precisa assumir o papel na “construção de uma sociedade em que a diversidade seja valor positivo” (Ibid., p.36). Nesta construção, elas defendem a necessidade do diálogo e da comunicação entre a escola21, os familiares e os

membros da comunidade local tendo em vista

transformar o contato, entre diferentes grupos e pessoas, em convívio, para construirmos conjuntamente possibilidades de igualdade, aprendizagem mútua. Precisamos nos educar na diversidade para a igualdade (MELLO; BRABA; GABASSA, 2012, p.36).

Destaco que as autoras, ao escreverem sobre os desafios colocados à escola diante das mudanças sociais e culturais contemporâneas, argumentam sobre a importância e a necessidade do diálogo para que a transformação da escola ocorra. Mello, Braga e Gabassa (2012) enfatizam que, na contemporaneidade, estamos vivendo o que elas chamam de “giro dialógico nas relações e instituições” (p.37). Explicam que isso pode ser percebido nas relações familiares, em que não somente o pai é a pessoa que toma as decisões da família, e também na escola, instituição em que os professores não representam mais a “autoridade incondicional”, ou seja, os estudantes também reivindicam espaços de decisão (Ibid.). Assim, na escola, as práticas dialógicas contribuiriam tanto para “superação de suas tradições de relações hierárquicas, inquestionáveis e monoculturais, como para a efetividade de aprendizagem, por todos, com qualidade” (MELLO; BRAGA; GABASSA, 2012 p.40).

Em meio à crescente crise pela qual passa a escola e aos desafios que ela deve enfrentar, esta Tese vem em defesa desta instituição. Diante dos problemas que a escola vem enfrentando, é importante a realização (também) de trabalhos acadêmicos que contribuam para que ela seja espaço de aprendizagem e se aproprie de sua característica democrática, criadora, potencializadora de inteligências; espaço de encontro e convívio de culturas diversas, que no diálogo possam se perpetuar e se transformar ao longo do tempo, contribuindo com o fortalecimento das comunidades

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das quais faz parte, e para a construção de uma sociedade que aprenda a viver sua diversidade.

Embora estes desafios para a transformação da escola estejam postos para todas as modalidades de ensino, nesta pesquisa procurei olhar especificamente para a EJA. Os dados analisados ao longo desta tese contribuem para compreender melhor as especificidades desta modalidade de ensino, mas para realizar os estudos, neste capítulo, parti de alguns pressupostos que orientaram toda a pesquisa e que se são base para a educação escolar não somente da EJA, mas de todas as modalidades de ensino.

Pensar na educação escolar remete à ideia de que conhecer faz parte da natureza das mulheres e dos homens, pois assim nos fazemos humanos. Paulo Freire em sua obra, em especial no livro Extensão ou Comunicação? (FREIRE, 1977), defende que as pessoas são seres que conhecem e por isso

não há absolutização da ignorância nem absolutização do saber. Ninguém sabe tudo, assim como ninguém ignora tudo. O saber começa com a consciência do saber pouco (enquanto alguém atua). É sabendo que sabe pouco que uma pessoa se prepara para saber mais (FREIRE, 1977, p.47).

Quanto mais nos aproximamos e nos apropriamos do conhecimento, mais potencializamos o nosso ser, podemos “Ser Mais”, como defendeu Paulo Freire em sua obra. Daí a importância da escolarização das pessoas jovens e adultas, pois elas chegam à escola repletas de saberes dos quais se apropriaram ao longo de suas vidas, mas vão em busca, principalmente, de aprender mais e com qualidade. Dado o valor que a atual sociedade atribui ao conhecimento e às pessoas que o detêm, a EJA torna-se uma forma possibilitadora do acesso ao conhecimento escolar que contribui também para a superação de situações de exclusão social.

As pessoas chegam à EJA cheias de conhecimento que a escola não pode ignorar, e o meio pelo qual estes conhecimentos podem estar presentes nas práticas educativas de forma explícita e intencional é o diálogo.

Explicarei a concepção de diálogo que utilizei nesta pesquisa a partir da experiência vivenciada com um estudante da EJA relatada a seguir. Em uma determinada aula de Língua Portuguesa em que as professoras explicavam o conteúdo “diálogo”, e para isso trabalhavam um texto onde duas pessoas conversavam, o estudante não conseguiu identificar no texto o diálogo entre as personagens. Embora as professoras insistissem em mostrar-lhe todos os símbolos que indicavam tal ação, ele dizia que no texto não havia um diálogo, pois as pessoas normalmente não conseguem dialogar. A primeira análise feita foi a de que o

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estudante não entendeu o conteúdo, e por isso não conseguiu identificar o diálogo, apesar de todo o esforço das professoras em explicar que aquilo que estava sendo mostrado relacionava-se a um determinado conteúdo da Língua Portuguesa.

Esta situação me fez refletir o que levou o estudante a dizer que não havia um diálogo naquela situação apresentada pelas professoras. E pensei na possibilidade do estudante não estar se referindo à representação textual de uma conversa entre duas pessoas, mas do diálogo como a interação de diferentes formas de entender o mundo. Neste sentido, o diálogo pode ser entendido como possibilidade de diferentes pessoas terem as mesmas oportunidades de apresentar o que sabem sobre um determinado tema; que possibilite que a apresentação de diferentes conhecimentos tenha como horizonte aprofundar a compreensão sobre o mundo.

O diálogo, na presente pesquisa, é entendido como o encontro entre as diferentes formas de ver, entender e explicar o mundo. Nas relações humanas em geral, e particularmente na escola, muitas vezes não existe diálogo, em geral, o que prevalece é aquele conhecimento legitimado por uma porção dominante da sociedade e não todos os conhecimentos. Seria então essa a razão pela qual o estudante não conseguiu compreender o conteúdo? Não é possível obter uma resposta para esta situação que exemplifiquei. Contudo, possibilitar que o diálogo aconteça na escola é dar oportunidade para que ocorra o exercício pleno da democracia, pois todos podem falar e ser ouvidos; podem apresentar o que sabem e, mesmo sendo uma fala diferente do que se costuma ouvir, todos podem ser respeitados; as ideias precisam não apenas ser respeitadas, mas podem, mesmo que diferentes, fazer parte das decisões não apenas de um grupo que representa falsamente o todo, mas todos poderem falar e tomar verdadeiramente as decisões.

O conhecimento que os estudantes trazem para a escola faz muito sentido para eles e, sendo uma visão tida como certa ou errada da sociedade ou dos fenômenos naturais, nunca pode ser ignorado, mas sim, dialogado com o conhecimento que a escola traz de novo para esse estudante. Este movimento aprofunda entendimentos sobre as coisas que nos cercam, e assim se aprende mais.

Tal concepção, aqui assumida, apoia-se em Freire (1991) ao entender que:

A priorização da “relação dialógica” no ensino que permite o respeito à cultura do aluno, à valorização do conhecimento que o educando traz, enfim, um trabalho a partir da visão do mundo do educando é sem dúvida um dos eixos fundamentais sobre os quais deve se apoiar a prática pedagógica de professoras e professores. Esta proposta é muito séria e muito profunda porque a participação do aluno não deve ser entendida de forma simplista. O que proponho é um trabalho pedagógico que, a partir do conhecimento que o aluno traz, que é uma expressão da classe social à qual os educandos

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pertencem, haja uma superação do mesmo, não no sentido de anular esse conhecimento ou de sobrepor um conhecimento ao outro. O que se propõe é que o conhecimento com o qual se trabalha na escola seja relevante e significativo para a formação do educando. (FREIRE, 1991, p. 83).

O diálogo proporciona o movimento de encontro e interação dos diferentes conhecimentos e as práticas educativas nele baseadas proporcionam que os estudantes aprendam mais. Porém, o diálogo não se dá em qualquer perspectiva de educação, mas apenas na que se propõe a ser problematizadora e libertadora. Problematizadora porque, a partir da abordagem de diferentes conhecimentos, apreendidos de forma crítica, é possível aprender com profundidade as relações sociais e os fenômenos naturais. Libertadora porque quanto mais a pessoa conhece, de forma crítica, a realidade, mais autônoma, ética e solidária ela será; melhor se movimentará no mundo, de forma a ser parte da história, e mais poderá agir sobre ele de forma a transformá-lo, ao invés de apenas ser levada pela vida, alheia ao que acontece a sua volta. Freire (2007) parte do pressuposto de que:

[...] se os homens são estes seres da busca e sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a ‘educação bancária’ pretende mantê-los e engajar-se na luta pela sua libertação” (FREIRE, 2007, p.71).

Isso significa que mulheres e homens são seres que carregam em sua natureza o desejo e a capacidade de deter as rédeas de suas vidas, o acesso aos seus direitos; por isso a importância de uma educação que possibilite problematizar diferentes conhecimentos – das coisas da vida ao conhecimento científico – e, consequentemente, sua compreensão mais profunda, pois aumentam as possibilidades de ter vida mais plena.

Não é uma educação qualquer que possibilita isso acontecer. A educação bancária, que Freire tanto questionou, certamente não possibilitaria isso, pois nela o educador se apresenta como autoritário, detentor do conhecimento e cerceador de liberdade ou, ao contrário, como conivente com a libertinagem, como o único sujeito do processo de ensino e aprendizagem, enquanto o educando é o objeto, passivo diante de tudo aquilo que lhe é imposto (FREIRE, 2007; 2011). Esse tipo de educação certamente não é a que defendo, pois ela precisa superar a relação educador- detentor-do-conhecimento e educando-objeto-passivo, aquele que não tem luz própria. Se somos seres que naturalmente buscam saber, é necessário pensarmos em uma educação que potencialize a aprendizagem. A superação desta contradição entre educador e educando se faz por meio da “relação dialógica enquanto prática

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fundamental, de um lado à natureza humana e à democracia; de outro, como exigência epistemológica (FREIRE, 2010 p.74).”

Paulo Freire tem um papel fundamental para a educação em geral e, em especial, para a educação popular e de jovens e adultos. Em sua obra ele se dedicou a argumentar a favor de uma educação que contribua para o processo de transformação das pessoas da condição de sujeitos oprimidos para a de sujeitos que se entendam como condicionados ao contexto histórico, porém com condições de serem críticos da realidade, atuantes na sociedade, que lutem contra toda e qualquer situação que exclua seus direitos. Para isso, o autor propõe uma educação que possibilite a compreensão das pessoas como seres que estão, na sua ontologia, preparados para aprender, para conhecer, para criar (FREIRE, 1991; 2000; 2001; 2007; 2011).

Neste sentido, para Freire, existe uma relação íntima entre a educação e a política. Em sua obra, inúmeras vezes ele questiona: a favor de quem estamos? Contra quem lutamos? E, nesta perspectiva, deixa explícito que a educação não é neutra e tem intencionalidade, sem que com isso se perca a dimensão ética:

O que sobretudo me move a ser ético é saber que, sendo a educação, por sua própria natureza diretiva e política, devo, sem jamais negar meu sonho ou minha utopia aos educandos, respeitá- los. Defender com seriedade, rigorosamente, mas também apaixonadamente, uma tese, uma posição, uma preferência, estimulando e respeitando, ao mesmo tempo, o direito ao discurso contrário, é a melhor forma de ensinar, de um lado o direito de termos o dever de ‘brigar’ por nossas ideias, por nossos sonhos e não apenas de aprender a sintaxe do verbo haver, de outro o respeito mútuo. (FREIRE, 2011, p. 78).

A educação, que não é neutra e que tem intencionalidade, torna explícito seu papel, e no contexto da superação das desigualdades, precisa estar a favor da camada da sociedade que historicamente vem sofrendo e luta por melhores condições de vida em muitas dimensões. A dimensão ética explicita compromisso de promovermos práticas educativas escolares que privilegiam o acesso a conhecimentos legitimados pela sociedade de forma geral e, ao mesmo tempo, as opções, as escolhas, o encontro entre as diferentes formas de compreender o mundo.

Embora esta concepção de educação não seja válida exclusivamente para a EJA, esta modalidade de ensino clama por uma educação que dê condições para que as pessoas aprendam de uma maneira que elas se entendam e se vejam como parte do mundo, que insiste em tentar excluí-las e explorá-las. Uma educação que contribua com a luta de mulheres e homens para alcançarem dias melhores, para serem

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respeitadas(os) e terem seus direitos garantidos. Sobretudo, que contribua para que estas pessoas possam vivenciar de forma mais objetiva o sentido do aprender para o ser humano.

A próxima seção versa sobre a realidade a situação da EJA no Brasil.

1.2. A Educação de Jovens e Adultos no Brasil: realidade, sujeitos,