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AS MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS DO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: TENDÊNCIAS PARA UM DIREITO JUSTO

5.1 A NOVA HERMENÊUTICA JURÍDICA

5.1.4 A emergência da dimensão semiótica da interpretação jurídica

Qualquer indagação sobre a hermenêutica, a interpretação e a correlata decisão jurídica passa, inelutavelmente, pelo estudo das relações comunicativas em sociedade e pela investigação do papel desempenhado pela linguagem, nos quadros da existência humana. Isto porque todo objeto hermenêutico é uma mensagem promanada de um emissor para um conjunto de receptores ou destinatários.

Tratando das relações entre a linguagem e os saberes, destaca Ricardo Guibourg12 que, para indagar acerca do conhecimento científico e dos métodos com que opera a ciência, deve-se começar a estabelecer, com certa precisão o que é uma linguagem e qual é a relação entre a linguagem e as distintas formas de comunicação e de linguagem científica.

Despontou assim, no cenário intelectual, uma plêiade de ilustres pensadores, voltados para a pesquisa dos problemas da linguagem cotidiana e científica. Na transição do século XIX ao século XX, foram lançadas as bases para uma nova espécie de saber – a semiótica – incumbida de problematizar a linguagem. Nos Estados Unidos, destacam-se os estudos de Charles Sanders Peirce, preocupado com o amparo lingüístico às ciências aplicadas. Na Europa, aparece a contribuição estruturalista de Ferdinand Saussure, sublinhando a linguagem como uma convenção social. Merece registro também a figura de Ludwig Wittgenstein, com a investigação dos jogos de linguagem. Trabalhos posteriores relacionam a semiótica com outras ciências sociais, tais como a Antropologia (Claude Lévi- Strauss), a Psicologia (Jacques Lacan) e a Literatura (Roland Barthes).

Atentando para as conexões entre o fenômeno jurídico e a linguagem, leciona Edvaldo Brito13 que a realidade do Direito é, em si, linguagem, uma vez que se expressa por proposições prescritivas no ato intelectual em que a fonte normativa afirma ou nega algo ao pensar a conduta humana em sua interferência

12GUIBOURG, Ricardo A. et al. Introduccion al conocimiento científico. Buenos Aires: Editoria

Universitaria de Buenos Aires, 1996, p. 18.

intersubjetiva; bem assim, é linguagem, uma vez que, para falar dessas proposições, outras são enunciadas mediante formas descritivas. É, ainda, linguagem, porque há um discurso típico recheado de elementos que constituem o repertório específico que caracteriza o comportamental da fonte que emite a mensagem normativa e de organização que se incumbe de tipificar na sua facti

specie a conduta dos demais destinatários (receptores da mensagem) quando na

sua interferência intersubjetiva.

Por força do exposto, o referencial lingüístico é indispensável para o desenvolvimento dos processos decisórios. Especialmente no sistema romano- germânico, em que se valoriza o jus scriptum, a ordem jurídica se manifesta através de textos, que conformam enunciados lingüísticos. Sucede que a plurivocidade é uma nota característica da comunicação humana, defluindo das palavras inúmeros significados. Dentre os sentidos possíveis do texto jurídico, o intérprete haverá de eleger a significação normativa mais adequada para as peculiaridades fáticas e valorativas de uma dada situação social.

A prática decisória desemboca na concretização dos enunciados lingüísticos inscritos no sistema jurídico, com o que o hermeneuta opera a mediação entre o direito positivo e a realidade circundante, manifestando-se o significado da norma jurídica. Todo modelo normativo comporta sentidos, mas o significado não constitui um dado prévio – é o próprio resultado da tarefa interpretativa. O significado da norma é produzido pelo intérprete. As normas jurídicas nada dizem, somente passando a dizer algo quando são exprimidas pelo hermeneuta.

O reconhecimento do caráter lingüístico está, pois, vinculado ao exercício da interpretação e decisão jurídicas. Conforme assinala Lenio Streck14, o intérprete,

deste modo, perceberá o “objeto” (jurídico) como (enquanto) algo, que, somente é apropriável lingüisticamente. Já a compreensão deste “objeto” somente pode ser feita mediante as condições proporcionadas pelo seu horizonte de sentido, ou seja, esse algo somente pode ser compreendido como linguagem, a qual ele já tem e nela

14 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da

está mergulhado. A linguagem não é, pois, um objeto, um instrumento, enfim, uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto. Quando o jurista interpreta, ele não se coloca diante de um objeto, separado deste por “esta terceira coisa” que é a linguagem; na verdade, ele está desde sempre jogado na lingüisticidade deste mundo do qual ao mesmo tempo fazem parte o sujeito e o objeto.

Partindo desta premissa, a semiótica geral e jurídica pretende, inicialmente, abordar a dialética entre a linguagem corrente (onomasiologia) e a linguagem técnico-científica (semasiologia). De acordo com sua origem, a linguagem pode ser natural ou corrente, quando formada espontaneamente pela evolução social, bem como, artificial ou técnico-científica, quando formalizada para a sistematização dos saberes humanos. A depender, portanto, da origem lingüística, uma mesma palavra enseja significados diversos.

No campo semiótico, torna-se imprescindível perquirir a tridimensionalidade dos signos lingüísticos, desenvolvendo as análises sintática, semântica e a pragmática do discurso.

A sintática, do grego "syntaktikós", estuda as relações estruturais e a concatenação dos signos entre si. Os signos lingüísticos não são utilizados ao acaso e de acordo com a conveniência do emissor, mas devem ser obedecidas as regras gramaticais convencionalmente estabelecidas para que seja possível não só ao emissor formular sua mensagem, como também, ao receptor apreender seu conteúdo. A análise sintática desmembra os elementos componentes de uma "frase", examinando sua estrutura, dividindo "período" em "orações", e estas nos seus termos essenciais, integrantes e acessórios. Assim, toda frase deve conter uma correta justaposição de vocábulos e uma perfeita congruência interna de palavras.

A seu turno, a semântica, do grego "semainô", estuda a relação entre o signo e o objeto que ele refere. A semântica é, pois, o estudo das significações das palavras. A semântica encara a relação dos signos com os objetos extralingüísticos. Na análise semântica, o campo de estudo é o vínculo do signo com a realidade, destacando o significado correto dos signos, de modo a extrair a

imprecisão natural dos termos. Estas imprecisões naturais podem estar relacionadas à denotação (vagueza) e à conotação (ambigüidade). As imprecisões denotativas denominam-se vaguezas. A vagueza se verifica quando ocorre dúvida acerca da inclusão ou não de um ou mais objetos dentro da classe de objetos aos quais um determinado termo se aplica. As imprecisões conotativas são denominadas ambigüidades. A ambigüidade se verifica quando não é possível desde logo precisar quais são as propriedades em função das quais um termo deve ser aplicado a um determinado conjunto de objetos.

Por sua vez, a pragmática, cujo termo deriva da expressão grega pragmatikós, significa a relação existente entre os signos com os emissores e destinatários. Com efeito, a pragmática ocupa-se da relação dos signos com os usuários, nos termos de uma lingüística do diálogo, por tomar por suporte a intersubjetividade comunicativa. Deste modo, tanto as unidades sintáticas como o sentido do texto estão vinculados à situação de uso, sujeitando-se às variações temporais e espaciais de cada cultura humana. Sob o aspecto pragmático, interessam, portanto, os efeitos interacionais que o uso da linguagem produz entre os membros de uma comunidade lingüística.

Sob o prisma ainda da semiótica jurídica, ao decodificar a linguagem estampada no modelo normativo, o intérprete opera verdadeira paráfrase. Decidir, neste sentido, consiste em remodelar o discurso do direito positivo.

Neste diapasão, afirma Tércio Sampaio15 que, ao se utilizar de seus métodos, a

hermenêutica identifica o sentido da norma, dizendo como ele deve-ser (dever – ser ideal). Ao fazê-lo, porém, não cria um sinônimo, para o símbolo normativo, mas realiza uma paráfrase, isto é, uma reformulação de um texto cujo resultado é um substituto mais persuasivo, pois exarado em termos mais convenientes. Assim, a paráfrase interpretativa não elimina o texto, pondo outro em seu lugar, mas o mantém de uma forma mais conveniente.

15 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e

Como a ordem jurídica não fala por si só, o hermeneuta exterioriza os seus significados, através de uma atividade compreensiva e, pois, aberta aos valores comunitários. São estas pautas axiológicas que modulam a amplitude da paráfrase interpretativa, possibilitando ao intérprete a eleição do sentido normativo mais adequado e justo para as circunstâncias do caso concreto. Somente assim, a decisão garante a persuasão da comunidade jurídica e a correlata decidibilidade dos conflitos sociais.

Diante do exposto, interpretar é, do ponto de vista semiótico, descobrir o sentido e o alcance dos signos normativos, procurando a significação dos signos jurídicos. O operador do direito, ao aplicar a norma ao caso sub judice, a interpreta, pesquisando o seu significante. Isto porque a letra da norma permanece, mas seu sentido se adapta a mudanças operadas na vida social.

Neste contexto, como toda obra, enquanto objeto hermenêutico, é uma mensagem promanada de um emissor para um conjunto de receptores ou destinatários, cabe ao intérprete do direito selecionar as possibilidades comunicativas, mormente quando se depara com a plurivocidade ou polissemia inerente às estruturas lingüísticas da norma jurídica. Fixar um sentido, dentro do horizonte de significações possíveis, é a ingente tarefa do hermeneuta, a exigir um profundo conhecimento sobre a estrutura e os limites da linguagem através da qual se exprime o fenômeno jurídico.

Como bem refere Maria Helena Diniz16, no campo da Ciência Jurídica, a

instrumentalidade da Semiótica se robustece à medida que se constata muitos pontos de interface entre o Direito e a Linguagem. Considerando os postulados da Semiótica, a Ciência Jurídica encontra na linguagem sua possibilidade de existir, devido a várias razões: a) não pode produzir o seu objeto numa dimensão exterior à linguagem; b) onde não há rigor lingüístico não há ciência; c) sua linguagem fala sobre algo que já é linguagem anteriormente a esta fala, por ter por objeto as proposicões normativas (prescritivas), que, do ângulo lingüístico, são enunciados

16 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva,

expressos na linguagem do legislador; d) o elemento lingüístico entra em questão como elemento de interpretação, porquanto as normas jurídicas são mensagens que devem ser decodificadas pelo hermeneuta; e) se a linguagem legal for incompleta, deverá o jurista indicar os meios para completá-la, mediante o estudo dos mecanismos de integração; f) o elemento lingüístico pode ser considerado como instrumento de construção científica, visto que se a linguagem não é ordenada, o jurista deve reduzi-la a um sistema.

Sendo assim, o fenômeno jurídico, por condição de existência, deve ser formulável numa linguagem, ante o postulado da alteridade. O Direito elaborado pelo órgão competente é fator de controle social, visto que prescreve condutas (obrigadas, permitidas e proibidas), formulando a linguagem em que a norma se objetiva. O Direito positivo oferta a linguagem-objeto, pois não fala sobre si. A linguagem legal é a utilizada pelos órgãos que têm poder normativo e inclui a linguagem normativa e não normativa, que consiste nas definições de expressões contidas em proposições normativas. A linguagem não normativa é a metalinguagem da linguagem normativa, contida na linguagem legal.

Como salienta Tércio Sampaio17, a norma, do ângulo pragmático, é vislumbrada

como um discurso decisório, que impede a continuidade de um embate de interesses, solucionando-o, pondo-lhe um fim. Neste discurso decisório, o editor controla as reações do endereçado. A norma contém um relato (a informação transmitida) e o cometimento (a informação sobre a informação). Os operadores normativos (obrigatório, proibido e permitido) têm uma dimensão sintática e pragmática, pelas quais não só é dado um caráter prescritivo ao discurso ao qualificar-se uma conduta qualquer, mas também lhe é dado um caráter metacomplementar ao qualificar a relação entre o emissor e o receptor.

Ademais, a ação lingüística do jurista, na discussão-com, busca a adesão da outra parte, procurando convencê-la da veracidade de suas assertivas. O discurso científico do direito polariza uma relação entre oradores e ouvintes, tendo em vista a persuasão social. Nasce também de uma situação comunicativa indecisa, onde

se misturam caracteres da discussão-com científica com elementos da discussão- contra, conglomerando atores homólogos com intenções partidárias, questões de pesquisa jurídica desinteressada e ponderações conflitivas que pedem uma decisão, através do Poder Judiciário.

Na redação de um texto científico-jurídico, o jurista expõe suas conclusões numa seqüência de proposições descritivas, com o escopo de obter o convencimento. O leitor do texto, concentrando-se na sistemacidade textual, procurará apreendê- lo para enveredar no campo da ciência jurídica, atendo-se à verdade sobre o objeto em questão. Logo, o Direito pode ser estudado como um sistema de signos lingüísticos. Isto porque a próprio conhecimento jurídico se estrutura através de uma linguagem (metalinguagem) ao buscar a sistematização e interpretação das fontes do direito, as quais são também exteriorizadas em fórmulas lingüísticas (linguagem-objeto).

A prática interpretativa desemboca na concretização dos enunciados lingüísticos inscritos no sistema jurídico, com o que o hermeneuta opera a mediação entre o direito positivo e a realidade circundante, manifestando-se o significado da norma jurídica. Todo modelo normativo comporta sentidos, mas o significado não constitui um dado prévio – é o próprio resultado da tarefa interpretativa. O significado da norma é produzido pelo intérprete. As normas jurídicas nada dizem, somente passando a dizer algo quando são exprimidas pelo hermeneuta.

Sendo assim, as normas jurídicas veiculam mensagens, notadamente polissêmicas, visto que comportam diversos significados. Esta polissemia das fontes do direito deve ser resolvida, mediante o reconhecimento das diferenças entre linguagem comum e linguagem técnico-científica e o emprego das análises sintática, semântica e pragmática sobre o discurso do ordenamento jurídico.

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