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AS MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS DO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: TENDÊNCIAS PARA UM DIREITO JUSTO

5.2 A TRANSIÇÃO DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO AO PENSAMENTO PROBLEMÁTICO

Uma das mais importantes transformações paradigmáticas resultantes da emergência do pós-positivismo jurídico consiste na transição do pensamento sistemático de base lógico-dedutiva para um pensamento problemático, ancorado na idéia da realização da justiça à luz das singularidades do caso concreto. Nesse campo pós-positivista, destaca-se a tópica redescoberta pelo jurista germânico Theodor Viehweg.

Não há como negar a associação entre tópica e justiça, pois como observa Edvaldo Brito33, ao criticar os limites do raciocínio jurídico lógico-dedutivo (silogismo), adquire prestígio a tópica, que sugere evitar-se técnica que inviabilize a decisão justa, pois esta somente se conseguiria a partir dos dados materiais, buscados nos problemas, ainda que a deliberação não encontre apoio em norma

33 BRITO, Edvaldo. Teoria da decisão. Revista do Magistrado. Salvador: Tribunal de Justiça, n. 2,

legal. A teoria da justiça passa a ser entendida como uma teoria da práxis, de aplicabilidade tópica, com o que se afasta, no enfrentamento do problema de um direito justo, a pretensão jusnaturalista de aplicação lógico-dedutiva de um padrão absoluto e imutável de justiça, bem como o condenável alheamento do positivismo jurídico aos problemas de valor.

A tópica pode ser entendida como uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica. Ela se distingue nas menores particularidades de outra de tipo sistemático-dedutivo. As tentativas da era moderna de desligá-la da jurisprudência, através da sistematização dedutiva de uma ciência jurídica, tiveram um êxito muito restrito, visto que a tópica vem sendo encontrada ao longo de toda a tradição ocidental, desde a antigüidade greco-latina. Se Aristóteles entendeu a tópica como uma teoria da dialética, entendida como a arte da discussão, Cícero a concebeu como uma práxis da argumentação, baseada no uso flexível de catálogos de topoi (lugares-comuns).

Como bem salienta Theodor Viehweg34, o ponto mais importante do exame da tópica constitui a afirmação de que ela se trata de uma techne do pensamento que se orienta para o problema. Esta distinção, já cunhada por Aristóteles em sua Ética a Nicômaco, entre techne e episteme implica em considerar a primeira como o hábito de produzir por reflexão razoável, enquanto a segunda seria o hábito de demonstrar a partir das causas necessárias e últimas, e, portanto, uma ciência. Afigura-se como uma técnica do pensamento problemático, que opera sobre aporias – questões estimulantes e iniludíveis que designam situações problemáticas insuscetíveis de eliminação.

Chama-se de problema ou aporia toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução. Ao colocar o acento no sistema, os problemas seriam agrupados, de acordo com cada sistema, em solúveis e

34 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Brasília-DF: Departamento de Imprensa

insolúveis, e estes últimos seriam desprezados como problemas aparentes. A ênfase no sistema opera, deste modo, uma seleção de problemas. Ao contrário, se priorizar acento no problema, este busca, por assim dizer, um sistema que sirva de ajuda para encontrar a solução. A ênfase no problema opera uma seleção de sistemas.

Buscam-se, deste modo, premissas que sejam objetivamente adequadas e fecundas que possam levar a conseqüências que iluminem. Tal procedimento é a tópica de primeiro grau. Entretanto, sua insegurança salta à vista, o que explica que se trate de buscar um apoio que se apresenta, na sua forma mais simples, em um repertório de pontos de vista preparados de antemão. Dessa maneira, produzem-se catálogos de topoi, tais como: “o direito não socorre os desidiosos”, “o direito não tutela a má-fé a própria torpeza”; “o direito não tolera o enriquecimento sem causa” ou “o direito deve conferir tratamento isonômico aos iguais”. A função dos topoi, tanto gerais como universais, consiste em servir a uma discussão de problemas. Quando se produzem mudanças de situações e em casos particulares, é preciso encontrar novos dados para resolver o problema.

Para Viehweg35, restam comprovados os limites do sistema jurídico lógico-

dedutivo, visto que o centro de gravidade do raciocínio jurídico, longe de ser a subsunção, como a atividade de ordenação dentro de um sistema perfeito, reside predominantemente na interpretação em sentido amplo e, por isto, na invenção. Isto porque, para que o sistema jurídico fosse logicamente perfeito, seria necessário garantir uma rigorosa axiomatização de todo o direito; proibição de interpretação dentro do sistema, o que se alcançaria mais completamente através de um cálculo; alguns preceitos de interpretação dos fatos orientados rigorosa e exclusivamente para o sistema jurídico (cálculo jurídico); não-impedimento da admissibilidade das decisões non liquet; permanente intervenção do legislador, que trabalhe com uma exatidão sistemática (calculadora) para tornar solúveis os casos que surgem como insolúveis. Mesmo assim, a escolha dos axiomas continuariam sendo logicamente arbitrários, gerando um resíduo tópico.

Como a axiomatização do direito não é suficiente para captar plenamente a estrutura da argumentação, os axiomas também não oferecem uma resposta adequada ao problema da justiça. O procedimento que isto supõe já não é de busca do direito, senão de aplicação do direito justo. Daí deflui o segundo tipo de ciência mencionado, em que não se tenta modificar a essência da techne jurídica. Concebe-a, conseqüentemente, como uma forma de aparição da incessante busca do justo.

Sendo assim, o direito positivo emana desta busca pelo justo, a qual continua com base neste mesmo direito positivo, num movimento de circularidade dinamizado pela utilização das fórmulas persuasivas dos topoi, lugares-comuns da argumentação jurídica. Esta busca pelo justo seria o grande objeto de investigação da Ciência do Direito, cabendo à jurisprudência mostrar suas possibilidades, mediante o uso apropriado dos tópicos capazes de melhor atender as peculiaridades do caso concreto.

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