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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO JUSTO NO PÓS POSITIVISMO BRASILEIRO: O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA

6.6 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO CLÁUSULA PRINCIPIOLÓGICA INDETERMINADA

Um dos aspectos marcantes da interpretação do direito pós-moderno diz respeito à progressiva adoção das cláusulas gerais, como receptáculos normativos de princípios constitucionais, como a que consagra o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, previsto no citado art. 1º, III, da Carta Magna de 1988, base para a compreensão e a tutela do conjunto dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Os estudos sobre as cláusulas gerais vêm despertando na doutrina e na jurisprudência brasileiras, a exigir a construção de novos modelos cognitivos para a interpretação e aplicação do Direito. A adoção desta técnica legislativa, no âmbito

constitucional e infraconstitucional, reclama a configuração de um paradigma interpretativo desvinculado das matrizes positivistas da modernidade jurídica.

Seguindo o magistério de Alberto Jorge Júnior20, pode-se dizer que as cláusulas gerais funcionam no interior dos sistemas jurídicos, mormente os codificados, como elementos de conexão entre as normas rígidas (pontuais) e a necessidade de mudança de contéudo de determinados valores, em meio a um ambiente social em transformação, operando, dentro de certos limites, a adpatação dos sistema jurídico (aberto) às novas exigências na interpretação desses valores.

Decerto, o Direito moderno foi concebido como um sistema fechado e, portanto, impermeável ao mundo circundante e ao poder criador do hermeneuta. Acreditava- se que a perfeita construção teórica e o encadeamento lógico-dedutivo dos conceitos legais bastariam para a segura apreensão da realidade. Esta noção de um sistema hermético era dominada pelas pretensões de completude e coerência do diploma legislativo, ao prever soluções aos variados aspectos da vida social.

Outrossim, o Direito moderno foi marcado pela busca de uma linguagem precisa na exteriorização das regras jurídicas. Empregando a técnica da casuística ou tipificação taxativa, com a perfeita definição da fattispecie e de suas conseqüências jurídicas, a linguagem do legislador dispensaria a comunicação do sistema jurídico com fatores ideológicos, econômicos ou políticos. Deste modo, a disciplina dos novos problemas exigiria a sucessiva intervenção legislativa, a fim de resguardar a plenitude lógica da ordem jurídica.

Não é este, contudo, o modelo mais adequado aos sistemas jurídicos contemporâneos, cujas características passam a demandar a adoção de novos pressupostos metodológicos e técnicas legislativas mais compatíveis com a cultura pós-moderna. O delineamenro do Direito como um fenômeno plural, reflexivo, prospectivo e relativo exige que a ordem jurídica seja concebida como uma obra dinâmica, permitindo a constante solução e incoropração de novos problemas.

20 JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas gerais no novo código civil. São Paulo: Saraiva,

Sendo assim, utilizam-se modelos jurídicos abertos, que figuram como janelas para captar o trânsito da vida social, através das chamadas cláusulas gerais.

Neste sentido, a técnica legislativa das cláusulas gerais conforma o meio hábil para permitir o ingresso no Direito de elementos como valores, arquétipos comportamentais, deveres de conduta e usos sociais. Com as cláusulas gerais, a formulação da hipótese legal é processada mediante o emprego de uma linguagem eivada de significados intencionalmente vagos ou ambíguos, geralmente expressos em conceitos jurídicos indeterminados.

Não raro, o enunciado das cláusulas gerais, ao invés de descrever rigorosamente a hipótese e as suas conseqüências, é desenhado como uma vaga moldura, ensejando, pela abertura semântico-pragmática que caracteriza os seus termos, a inserção no diploma legal de pautas de valoração oriundas do substrato social.

Sendo assim, segundo Judith Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco21, erige- se uma opção metodológica por uma estrutura normativa concreta, destituída de qualquer apego a formalismos ou abstrações conceituais, abrindo margem para o trabalho do juiz e da doutrina, com freqüente apelo a conceitos integradores de compreensão ética ou conceitos amortecedores, quais sejam, os da boa-fé, dignidade, solidariedade, razoabilidade, probidade, eqüidade, interesse público, bem comum, bem estar, fim social e justiça.

Não pretendem as cláusulas gerais apresentar, previamente, resposta a todos os conflitos da realidade cambiante, visto que as opções hermenêuticas são progressivamente construídas pela jurisprudência e doutrina. Ao remeterem o intérprete a outros espaços do sistema normativo ou a dados latentes na sociedade, as cláusulas abertas apresentam, assim, a vantagem da mobilidade proporcionada pela imprecisão de seus termos, mitigando o risco do anacronismo jurídico, como a revolta dos fatos e valores contra a lei.

21 MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo Código

Decerto, o grande problema gerado pelas cláusulas gerais reside na sua formulação semanticamente imprecisa, ao veicular os chamados conceitos jurídicos indeterminados.

Entende-se por conceitos jurídicos aquelas idéias gerais, dotadas de pretensão universal, geralmente sintetizadas pelo doutrinador e passíveis de aplicação nos mais diversos ramos do conhecimento jurídico.

Como assinala Orlando Gomes22, a técnica jurídica figura como um conjunto de meios e processos intelectuais destinados a revelar o Direito, compreendendo conceitos, terminologias, classificações, construções e ficções. Dentre os mencionados instrumentos cognitivos, sobreleva o papel do conceito no plano do conhecimento jurídico.

Na sua maioria, os conceitos jurídicos são mutáveis, porque inferidos da observação das necessidades sociais pela mentalidade dominante. Não são unicamente aquelas construções do espírito destinadas a sintetizar as soluções do direito positivo, mas também abstrações que esquematizam a realidade emergente dos dados da vida social.

Para Eros Roberto Grau23, são tidos como indeterminados os conceitos cujos

termos são ambíguos ou imprecisos – especialmente imprecisos – razão pela qual necessitam ser complementados por quem os aplique. Neste sentido, são eles referidos como conceitos carentes de preenchimento com os dados extraídos da realidade. Segundo ele, a expressão “conceitos jurídicos indeterminados” não se revela adequada dentro de uma rigorosa teoria do conhecimento. Em verdade, não se trata de conceito jurídico indeterminado, mas sim de termo indeterminado, visto que a indeterminação referida não é dos conceitos jurídicos (idéias universais), mas de suas expressões, sendo, pois, mais adequado reportar-se a termos indeterminados de conceitos, e não a conceitos indeterminados.

22 GOMES, Orlando. A crise do direito. São Paulo: Max Limonad, 1955, p. 243.

23 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. São

Com efeito, do ponto de vista gnoseológico, conceito e termo correspondem, respectivamente, às noções de significado e significante. O conceito – significado – seria, pois, um elemento intermediário entre o termo – significante – e a realidade objetiva. Sucede, entretanto, que o uso da expressão já se tornou corrente, na doutrina e na jurisprudência, mormente na seara do direito administrativo.

Sendo assim, há dois tipos de conceitos expressos nas leis: os determinados, previamente delimitados ao âmbito da realidade a que se referem, e, por outro lado, os indeterminados, fundados nos valores da experiência social. Os conceitos legais indeterminados estão presentes em vários ramos do direito, sendo traduzidos por vocábulos vagos, imprecisos e genéricos. Eles entregam ao intérprete a missão de atuar no preenchimento do seu conteúdo, a fim de que se extraia da norma jurídica o seu real significado para um dado caso concreto. Ao juiz vai caber a responsabilidade de, influenciado por valores sociais, transformá-los em conceitos legais determinados, preenchendo a indeterminação proposital da lei.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello24, a estrutura do conceito jurídico indeterminado possui, assim, o núcleo fixo ou zona de certeza positiva, a zona intermediária ou de incerteza e a zona de certeza negativa. Dentro da zona de certeza positiva, ninguém duvidaria do cabimento da aplicação da palavra que os designa, diferentemente da zona de certeza negativa, em que seria certo que por ela não estaria abrigada. As dúvidas só teriam cabimento no intervalo entre ambas.

A construção teórica das zonas do conceito se processou a partir da metáfora, elaborada pelo jurista Philipp Heck, do conceito a um ponto de luz intenso que, ao iluminar objetos, revela alguns iluminados com menor ou maior intensidade, como também revela um rodeado de um halo, de cores pálidas, além de uma total obscuridade, onde não há incidência de feixes luminosos. Logo, sempre que se apresenta uma noção clara do conceito, situado dentro do núcleo conceitual, começando as dúvidas na região do halo conceitual.

24 MELLO, Celso Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo:

Por sua vez, na lição autorizada de Antônio Sousa25, a imprecisão do significado

das palavras empregues na lei conduz necessariamente a uma indeterminação dos seus comandos pelo que, só em casos muito excepcionais, todo o conceito deixa de ter vários sentidos. Os conceitos absolutamente determinados seriam muito raros no direito. A regra seria a de que o conceito contivesse um núcleo de interpretação segura e uma zona periférica que principia onde termina aquele e cujos limites externos não se encontram fixados com nitidez.

A discussão sobre a questão que envolve os conceitos indeterminados empregados pelo legislador teve o seu surgimento no século XIX, na Áustria, com a produção de duas correntes antagônicas: a Teoria da Univocidade, defendida principalmente por Tezner, e a Teoria da Multivalência de Bernatzik. Para primeira, no preenchimento dos conceitos indeterminados, excluir-se-ia qualquer possibilidade de atuação discricionária da Administração, visto só existir uma única solução correta, possível apenas de ser encontrada através da interpretação jurídica da lavra do poder jurisdicional (ato de cognição). Por sua vez, a segunda, defende sentido contrário, admitindo a possibilidade de várias decisões certas dentro dos conceitos indeterminados, que possibilitariam uma atuação discricionária, livre de controle jurisdicional (ato de volição).

É, contudo, mais apropriada a adoção de uma posição intermediária entre a Teoria da Univocidade e da Multivalência, visto que se revela viável a utilização da faculdade discricionária, em razão da constatação da presença inegável de um pluridimensionalismo nesses conceitos, o qual nem sempre é dissipado pelo processo de simples interpretação subsuntiva, já que a eleição de uma das opções válidas contida na norma, diante do caso concreto, pode vir a precisar de uma ação criadora do intérprete. De outro lado, contudo, não se deve admitir a concepção de discricionariedade como a liberdade livre das amarras da lei, tendo em vista a evolução da doutrina pátria no sentido de somente concebê-la dentro dos limites normativos, mormente principiológicos, do ordenamento jurídico.

25 SOUSA, Antônio Francisco de. Conceitos indeterminados no direito administrativo.

Com efeito, ocorre a transmudação dos conceitos legais indeterminados em conceitos determinados pela função que exercem em cada situação específica. Os conceitos legais indeterminados se convertem em conceitos determinados pela função que têm de exercer no caso concreto, ao garantir a aplicação mais correta e eqüitativa do preceito normativo. Não obstante a fluidez ou imprecisão que estão previstas in abstrato na norma, podendo ou não se dissipar quando verificada a hipótese in concreto, propiciam os conceitos jurídicos indeterminados uma limitação da discricionariedade, tendo em vista a busca da otimização da finalidade da norma jurídica.

Eis o desafio posto para o intérprete do sistema constitucional brasileiro: delimitar, à luz do caso concreto, o sentido e alcance da cláusula principiológica da dignidade da pessoa humana, estabelecida no art. 1º, III, da Carta Magna de 1988, atividade indispensável para a materialização dos direitos fundamentais e o exercício da cidadania.

6.7 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA PROPOSTA DE DELIMITAÇÃO

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