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III. Objecto de estudo e metodologia

3.5. Fase Intensiva

3.5.1. A entrevista de narrativa de vida

o passado introduz uma faixa larga de prática autenticada no futuro

Giddens, A. (1994)

A reflexão descritiva e narrativa dos percursos profissionais dos professores não se pode dissociar dos seus percursos pessoais. Esses percursos, são únicos pela singularidade dos contextos de vivência, mas acima de tudo pela percepção e impactos únicos nos professores. Numa sociedade massificada e em luta contra a globalização de pensamentos únicos, dos gostos e das visões estéticas, importa criar condições que façam emergir as singularidades no seu contexto, na linha de Giddens (1994) que afirma que a ideia de que cada pessoa tem um carácter único e potencialidades especiais que podem ou não ser realizadas é alheia à cultura pré-moderna (op. ct., 1994:67), e ainda porque considera que nós somos não o que somos mas sim aquilo o que fazemos de nós ... aquilo em que cada indivíduo se torna depende dos espaços reconstrutivos em que se empenha (idem). Para acentuar a importância desta visão do particular, do singular, do subjectivo, na construção de fontes de conhecimento, Giddens refere que:

a questão existencial liga-se à natureza frágil da biografia que o indivíduo “fornece” sobre si mesmo. A identidade de uma pessoa não se encontra no comportamento, nem – por muito importante que o sejam – nas reacções dos outros, mas na capacidade de manter a continuidade de uma narrativa (op cit, 1994:48).

Se inicialmente poderíamos afirmar que a história de vida é uma noção do senso comum que entrou no universo científico como contrabando (Bordieu, 1986), o seu entendimento, numa percepção de existência inseparável do conjunto de acontecimentos, traduz uma descrição de um caminho, um percurso, uma estrada

(op cit, 1986). Para sabermos quem somos e termos uma ideia sobre nós, temos de possuir uma noção de como nos tornámos no que somos e de para onde vamos (Taylor, apud Giddens, 1994). Nesta linha, para Bordieu a história de vida entendida como uma vida organizada, coerente e original, transcorre através de uma ordem cronológica mas também lógica. Esta questão coloca a ligação entre um relato biográfico ou auto-biográfico em que se perde o fio estrito da sucessão do calendário (op cit, 1986) e as sequências ordenadas segundo relações inteligíveis (op cit, 1986). Através delas será possível extrair razoabilidade, lógica e simultaneamente retrospectiva e prospectiva. Como sintetiza Bordieu, trata-se de o biografado se tornar o ideólogo da sua própria vida, em função do significado atribuído a acontecimentos determinados com ligação entre si.

Para Bordieu, produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direcção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica (op cit, 1986). O autor alerta para os perigos decorrentes de o relato de vida tender a aproximar-se do modelo oficial de apresentação de si, carteira de identidade, ficha de estado civil, curriculum vitae, biografia oficial, bem como da filosofia da identidade que o sustenta (op cit, 1986), acentuando a ideia de como a apresentação pública como representação da vida privada poder implicar um aumento de coacções e censuras específicas. Daí que seja importante, ao tentarmos compreender uma vida como uma série única e suficiente de acontecimentos sucessivos sem outras ligações que não o sujeito, ter presente que todos os acontecimentos biográficos se definem por colocação e deslocamento no espaço social (op cit, 1986), numa continuidade de série de passagens que integram o curso da vida (Giddens, 1994) em que o tempo marca a sequência. À partida, percebe-se como uma série de momentos separados, em que a narrativa contínua é impossível de estabelecer, pelo facto de cada um desses momentos separados contar e recontar experiências anteriores das subsequentes (Giddens, 1994).

Se o papel da escola se centra na socialização e no desenvolvimento das capacidades de cada um, a forma como isso se passa e acontece é deveras diferente e singular. Neste sentido, a análise das trajectórias de formação através das histórias de vida permite-nos aceder a fenómenos inacessíveis através de outras técnicas (Bertaux, 1997). Para Bertaux existem três funções nas histórias de vida numa lógica de pesquisa: uma função de exploração capaz de ajudar à descrição de uma realidade desconhecida; a função analítica de expressão de acontecimentos inseridos na sua contextualização; e a função expressiva na perspectiva da integral publicação da sua narrativa. Numa perspectiva de desenvolvimento da auto- identidade, da própria história das sociedades numa perspectiva de modernidade, o focar da atenção sobre o indivíduo, de o individualizar, decorre da própria diferenciação da divisão do trabalho emergente nas sociedades modernas (Giddens, 1994). Antes, o indivíduo não existia; a sua identidade e individualidade não existiam nas culturas tradicionais nem eram valorizadas (Giddens, 1994).

Esta metodologia de (re) construção de saberes e práticas carece de fortes auto-avaliações que podem assumir autenticidade com base no ser honesto consigo mesmo (op cit, 1994) e no crescimento

pessoal, que apenas surge em função da superação de bloqueios e tensões emocionais que por vezes nos impedem de reflectir como realmente somos (Giddens, 1994). Mesmo quando consideramos que a auto- biografia é uma intervenção correctiva sobre o passado e não uma mera crónica de factos e acontecimentos (Giddens, 1994), estamos perante processos de auto-avaliação capazes de, introspectivamente, e ainda que com uma forte carga de subjectividade, garantir ser honesto consigo mesmo. Porque mesmo falando de passado, falamos de futuro, uma vez que a reconstrução do passado acompanha a antecipação da provável trajectória de vida para o futuro (Giddens, 1994:65).

A pesquisa qualitativa tem uma relação com as fontes dos dados, sendo o investigador um elemento chave (Bogdan e Biklen, 1997), sendo descritiva numa base de recolha de dados narrados pelo sujeito entrevistado, já que tem preocupações com o processo e não simplesmente com os produtos ou resultados. Ela tende a analisar os seus dados de forma indutiva, na relação com o contexto da sua ocorrência (Bogdan e Biklen, 1997).

O pensamento é uma preocupação essencial na abordagem qualitativa, porque o sujeito descreve e reflecte em função da análise cognitiva pessoal que faz de cada situação vivida e da sua influência em si próprio.

A propósito da problemática abordagem metodológica pelas biografias Levi (1989) acentua o carácter autobiográfico na génese de uma personagem múltipla:

“em que cada momento particular tomado isoladamente, só pode ser uma deformação em relação à construção de personagens que não obedecem a um desenvolvimento linear e que não seguem um itinerário coerente e determinado” (Levi,1989)

Para Elbaz-Luwisch (1997), o conhecimento através da narrativa leva-nos a um conhecimento da subjectividade, implicando não só um caminho alternativo de aquisição de conhecimentos, mas uma alternativa de conceptualização da natureza humana. Com isto, Elbaz-Luwisch afirma mesmo que a pesquisa narrativa pode evidenciar uma nova conceptualização do conhecimento e da pesquisa. Ela permite aceder a uma nova compreensão de subjectividade, distinguindo entre o público e o privado. Elbaz-Luwisch (op cit) realiza uma demarcação entre a análise das narrativas e a análise narrativa.

Consideramos que a pesquisa narrativa tem permitido desenvolver com êxito estudos centrados na questão do género, na opção sexual ou nas questões étnico-culturais. A problemática da EF no 1º CEB, se para alguns reside numa mera questão de género – feminização da profissão docente –, não pode esquecer a vinculação a valores sócio-culturais que podem influenciar as opções educativas de cada professor. Em paralelo com a singularidade da docência no 1º CEB, caracterizada por percursos profissionais de isolamento pessoal e profissional, de carências de formação e da constante adaptação a contextos diversificados de intervenção pedagógica junto de classes cada vez mais heterogéneas, justificam esta abordagem centrada na narrativa, que permita evidenciar valores, crenças e princípios das opções educativas dos professores do 1º CEB sobre a EF neste nível de escolaridade. Desta forma, não visamos a generalização conclusiva da

pesquisa. Esta opção metodológica pela narrativa é uma opção, ainda que de complementaridade, não vinculada à generalização a partir de um fenómeno particular. Pelo contrário, importa contextualizar para analisar, conhecer e relacionar. Aspirando a uma verdadeira colaboração e a dar voz aos participantes (Elbaz-Luwisch, 1997), a narrativa e as suas circunstâncias permitem o confronto com os modos tradicionais de pesquisa, numa base de relação entre teoria e prática. A análise narrativa constitui um desfio para o predomínio da visão logística, de racionalidade técnica de investigação educativa. Na sua base de trabalho está implícita uma crítica ao desenvolvimento curricular e à investigação processo-produto no ensino (op cit). De acordo com Elbaz-Luwisch (op cit), ela encontra dificuldades centradas essencialmente na contextualização social e cultural. Muito do trabalho no âmbito do conhecimento pedagógico do conteúdo teve início neste «conhecimento interior», necessário para realmente compreender o processo de ensino (op cit), com a finalidade de mais tarde utilizar em conhecimento imprescindível para melhorar o ensino (Shulman, 1987). Para nós, é neste contexto que faz sentido que as narrativas do ensino poderão facultar histórias de professores expert, passíveis de ajudar os mais novos a aprender e os investigadores e formadores de professores a compreender como os professores desenvolvem o seu conhecimento (Elbaz- Luwisch, 1997).

Como refere Elbaz-Luwisch (1997), de facto a pesquisa narrativa pode evidenciar uma nova conceptualização do conhecimento e da própria pesquisa. A natureza pessoal e subjectiva decorrente da narrativa das vivências, das experiências e actividades profissionais, não só nos salienta uma dimensão sentida e instrospectiva dos professores, como nos pode fazer aceder aos seus processos e forma de concepção e decisão sobre a intervenção pedagógica, já que o conhecimento através da narrativa leva-nos a um conhecimento da subjectividade, não só implicando um caminho alternativo de aquisição de conhecimento, mas também uma alternativa de conceptualização da própria natureza humana (op cit, 1997). Como salientam Connely e Claudinni (1990), a pesquisa narrativa faz uso de dados pessoais enquanto história de vida, conversação e escrita pessoal, que necessariamente convidam à reflexividade crítica. Reforçando a importância da investigação narrativa, salientam que:

“a razão principal da utilização da narrativa na investigação educacional reside no facto de o homem ser um potencial contador de histórias que, individual ou socialmente, vivencia uma história de vida. O estudo da narrativa é, por assim dizer, o estudo do modo como o ser humano “sente” o mundo. Esta noção geral traduz a opinião de que a educação é a construção e a reconstrução de histórias pessoais e sociais : professores e alunos são os contadores de histórias e as personagens das suas próprias histórias e das histórias dos outros” (Connely e Claudinni, 1990:2).

É assim que Stenhouse (1979:6) considera a história como uma clarificação crítica de factos memorizados onde cada um recorda e reflecte subjectivamente sobre a natureza das suas vidas pessoais e profissionais.

As histórias de vida permitem evidenciar as transições entre o público e o privado, o pessoal e o profissional, numa configuração de unidade da identidade e experiências dos indivíduos num tempo e contexto social. As narrativas que traduzem o desenrolar reflectido das histórias de vida transportam não só o

rigor descritivo dos factos, mas essencialmente a percepção pessoal e subjectiva de quem foi intérprete de cada situação. Permite, assim, salientar o significado e impacto das experiências de cada um, na construção da sua profissionalidade docente. Ainda que centrada nas questões de género, Costa Araújo (2000) realça a importância de conhecer a construção do ensinar na escola primária como trabalho de mulheres (2000:275). Para Costa Araújo, a construção das vidas das professoras, de uma forma escrita, permite descobrir os percursos e subjectividades individualizadas (2000:276). Isto porque, aqui, importa utilizar as histórias de vida não como meros relatos, lembranças e reflexões, mas antes como documentos de vida (Plummer, 1983), analisados e interpretados no seu devido contexto. A natureza e expressão das histórias de vida não são ofuscadas pela visão unipessoal e redutora da construção do conhecimento profissional dos professores. Pelo contrário, importa tirar partido da real subjectividade explosiva das histórias de vida (Ferrarotti, 1983), naquilo que é salientado à luz da vivência pessoal e filtrado pelos valores e crenças de cada sujeito em cada momento do seu desenvolvimento profissional. Para Ferrarotti (1983), é o número de biografados que substitui o carácter de exemplaridade nas abordagens através das histórias de vida.