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II. Contextualização

2.2. A Escola do 1º CEB e seus professores

2.2.1. A feminização profissional no 1º CEB

Já em 1989 o relatório Braga da Cruz (Braga da Cruz et. al.,1989) constatava uma taxa de feminização do corpo docente do 1º CEB de 92.4%. Ressalta também desse estudo que a principal motivação para a escolha da profissão era gostar de crianças (80.2%), sendo uma primeira escolha para muitos dos professores (65.7%).

Para Araújo (1993), nos últimos oitenta anos o ensino primário tornou-se um nível de escolaridade de trabalho feminino, tanto do ponto de vista estatístico como da integração de atributos femininos. Nesta óptica, Araújo (1993) refere que, iniciando-se como uma actividade masculina nas instituições estatais no fim do século XVIII (1772), a incorporação das professoras inicia-se em 1815, ainda que ensinando apenas em escolas de raparigas. Na segunda metade do século, aumentou o número de professoras, com o crescimento do número de escolas. Segundo Araújo (1993), entre 1870 e 1890, as professoras aumentaram de um quinto para um terço do total de professores, representando em 1910 metade dos professores primários em actividade. Com a I República e o veicular do importante papel do professor primário centrado em imagens masculinas, o número de professoras aumentou, sendo no seu final dois terços dos professores primários (Araújo, 1993). Esta tendência acentuou-se até à actualidade, com 92,4% de professoras primárias em meados da década de oitenta (Araújo, 1993).

Numa análise às questões do corpo, no âmbito do Estado Novo, Gomes (1991) considera que na EF existia uma moralidade, em particular no apagamento do corpo feminino, como forma de assegurar à espécie uma melhor hereditariedade física e psicológica na óptica da própria condenação da ginástica rítmica quando

se afirma que pela concepção puramente estética que enforma à mesma ginástica, o que a arrasta a movimentos lascivos que amolecem a vontade e, como tal, diminuem a personalidade humana2.

Gomes, para reforçar esta visão da participação feminina nas AFD por parte do Estado Novo, cita Van Zeller que afirma:

...Quando assim procedermos, cuidando do corpo, sem prejuízo do espírito, a EF será humana, e contra ela nada terá a opor a moral. O que a moral condena são as maneiras usadas para lhe dar execução, tais como exemplo:

a) fazer ginástica, jogar ou praticar desportos com fatos que ofendem a modéstia e o pudor, quer pela nudez a que expõem quer pela sua transparência, quer ainda, o que é frequente, quando tidos esses requisitos, o fato é demasiado apertado e molda excessivamente as formas do corpo ; (...)

b) ginástica em comum para os dois sexos;

c) ginástica leccionada por professores de outro sexo;

d) são ainda a registar, e merecem reprovação, os exercícios em que se associam movimentos ou atitudes licenciosas, ou ainda o ritmo com que possam ser executados.

Esta concepção do corpo e das AFD levam mesmo a condenar outro tipo de iniciativas e práticas no âmbito da EF, como quando Van Zeller (1942:40-41) afirma que são reprovados pela moral cristã a não podem admitir-se num país como o nosso, em que a política do Estado Novo assenta sobre os seus preceitos e preconiza o regresso da mulher ao lar, como é o caso dos festivais públicos femininos e as exibições de ginástica e as competições atléticas públicas. Estas visões traduzem, de uma forma clara, o papel da mulher na sociedade da época e ainda como as práticas corporais lhe eram fortemente vedadas, em nome de valores marcadamente ideológicos dominantes durante o Estado Novo. Em 1937 o Regulamento Oficial da Mocidade Portuguesa Feminina3 é muito claro e preciso ao definir no seu artigo 4º:

A educação física, sempre associada à higiene, visará o fortalecimento racional, a correcção e a defesa do organismo, tanto como a disciplina da vontade, a confiança no esfôrço próprio, a lealdade e a alegria sã, mediante actividades rigorosamente adequadas ao sexo e à idade

acrescentando de forma breve e precisa no seu ponto único § que Serão excluídas as competições ou exibições de índole atlética, os desportos prejudiciais à missão natural da mulher e tudo o que possa ofender a delicadeza do pudor feminino.

O Estado Novo teve para com a EF um cuidado especial, já que a considerou um importante instrumento de afirmação ideológica e de atracção da juventude. Se desde os primeiros tempos a EF esteve presente nas práticas da Mocidade Portuguesa Feminina, através de uma Educação Física segundo os sexos, no Ensino Primário a Mocidade Portuguesa Feminina ministrou Jogos, Ginástica e Danças Rítmicas. Para podermos compreender a relação da mulher com as AFD devemos salientar que

2 VAN ZELLER, (1941), Boletim do INEF, nº 1, 2 e 3, 40-41.

em Março desse ano de 1957, continuava, porém, a ser defendida, na M & M, prática do desporto feminino em regime de "separação de sexos", sem exibicionismo e em consonância com "as regras da prudência e da sã moralidade", dado que os desportos violentos masculinizavam e esterilizavam as mulheres. Os desportos não cessarem, porém, de ser uma das actividades mais procuradas pelas jovens e foi mesmo através delas que a organização feminina se tornou mais atractiva, até porque algumas das modalidades de carácter elitista - como o ténis e a equitação - passaram a ser praticadas por filiadas da pequena burguesia "remediada", que, sem essa oportunidade facultada pela MPF, a elas nunca teriam tido acesso.(Almeida, 20044)

Para se perceber melhor a natureza das relações entre a Mocidade Portuguesa Feminina e a formação de educadores e professores primários, atente-se no facto de que:

Em Maio de 1942, Ingrid Ryberg apresentou um manual de Educação Física, ao qual se seguiu, um ano depois, o Manual

de Jogos Educativos, para as Escolas do Magistério Primário.

Um facto representativo da concepção dominante acerca da vinculação desportiva do sexo feminino é o de em 1967, trinta anos depois da polémica sobre a criação de um ginásio feminino propagandeado nas páginas do jornal República, e de Francisco Nobre Guedes, comissário nacional da MP, recusar a prática de qualquer tipo de desporto pelas raparigas, era a própria MPF a responsável pela difusão das modalidades desportivas nos liceus e nas escolas técnicas. Mas, ao contrário da ideia divulgada de que a MPF teria introduzido no seio da juventude feminina escolarizada os desportos, deve dizer-se que a organização feminina se limitou a preencher um espaço já anteriormente ocupado, para responder às necessidades das jovens, atenuando, por um lado, os aspectos considerados "pagãos", "imorais" e "exibicionistas" da educação física, e monopolizando, por outro lado, a sua prática, orientação e fiscalização nas escolas (Almeida, 2004)

Na análise realizada entre Cultura Física e Desporto – O Fascismo e a Mulher, Brito (1982:25) salienta que o acesso da mulher ao desporto foi em Portugal limitado por conceitos científicos, hoje ultrapassados, mas foi-o principalmente por concepções filosóficas, por barreiras sócio-culturais e pela prática política do fascismo que impediu durante largas dezenas de anos que a prática desportiva também fosse um direito da mulher.

Em termos mais precisos Brito refere que a Igreja Católica apenas em 1956 deu o primeiro passo formal no sentido da adesão às competições desportivas de alto nível ao doutrinar que sob o aspecto dogmático,... Não há qualquer oposição entre perfeição cristã e a perfeição desportiva (Campos, apud Brito, 1982:25).

Numa busca das razões que possam fundamentar a maior vinculação das práticas de AFD ao sexo masculino, com base em dados britânicos, Dunning (1992) considera mesmo o Desporto em geral como uma área masculina reservada, face ao seu papel na produção e reprodução da própria identidade masculina. Refere o autor que o desporto teve na sua evolução uma relação com o regime patriarcal, alicerçado nas características dos homens (de um modo geral mais altos e mais fortes do que as mulheres) e também a factores como a gravidez e o aleitamento que, de acordo com o autor, contribuem para diminuir as faculdades das mulheres. Dunning salienta que a evolução tecnológica moderna possui a capacidade de, no futuro, virem a anular essas vantagens do sexo masculino. Numa lógica do desenvolvimento dos desportos

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ALMEIDA, S. (2004). A Mocidade Portuguesa e a Prática da Educação Física. Acedido a 20 em Dezembro 2005 em:

modernos, Dunning (1992) centra a sua análise nos chamados desportos de confronto, caracterizados por práticas desportivas de representação da luta ou confronto simulado com os participantes em acções individuais de violência física mais ou menos controlada e socialmente aceitável. São estas as raízes dos desportos modernos em que as regras eram transmitidas oralmente e os espaços de jogo eram as ruas e os campos. Em síntese, Dunning caracteriza estes jogos populares como a clara expressão do regime patriarcal, com violência latente, reduzida regulamentação, ausência de controlo externo (árbitros ou juízes) e reproduzindo a estrutura social e as suas características de violência. Numa linha de modernização das escolas públicas, apenas no século XIX estas actividades desportivas tiveram o seu primeiro desenvolvimento significativo, com base em regulamentação que visava a eliminação de formas mais violentas de participação. Com toda esta dinâmica Dunning (1992:399) salienta que:

apesar de o desporto moderno continuar a estar inundado de valores patriarcais e apoiado em estruturas do mesmo tipo, o desporto emergiu como parte de uma mudança «civilizadora», da qual um dos aspectos foi um deslocamento no sentido de se equivalerem, embora de forma ténue, as situações verificadas no equilíbrio de poder existente entre os sexos.

Para Dunning, os séculos de domínio masculino e a estrutura social global que reflecte e reforça esse domínio é traduzível na existência de padrões de socialização que destinam as mulheres para as coisas domésticas, para a realização de papéis subordinados que limitam os seus horizontes profissionais mas também a natureza das suas ocupações em termos de lazer. O próprio Futebol, desporto dominante em muitas sociedades, é para Dunning a representação de um confronto baseado na expressão da masculinidade, embora de forma socialmente aprovada e controlada.

Por outro lado, a crescente feminização da profissão docente no 1º CEB, cruzada com uma mentalidade portuguesa que desde cedo associou as AFD em exclusivo ao sexo masculino5, permitiram desenvolver medos, receios e ansiedades com uma forte interpretação subjectiva de quem nunca teve, na infância, na juventude e muito menos no estado adulto, uma ligação às práticas das AFD. Estaremos perante um quadro de percursos de vida de professores, que sem qualquer racismo de género ou feminismo modernista, assenta no reduzido papel da mulher nas práticas das AFD. Como refere Feio (1981:278):

o atraso da mulher portuguesa (relacionar com as taxas de alfabetização e de frequência escolar), nos domínios da educação física e do desporto, sabendo que a maioria dos educadores da pré-escolaridade e da escolaridade primária pertencem ao sexo feminino; a idade avançada de muitos professores do ensino primário; o ambiente e a especificidade próprias, quer no âmbito dos conhecimentos, quer no que respeita à disciplina e organização das lições de educação física; a sobrecarga e insegurança sentidas pelos professores neste tipo de leccionação; a falta de instalações adequadas e motivadoras de uma maior facilitação do ensino programado e da livre recreação; a incapacidade de administração em meios materiais e humanos no que respeita à orientação e apoio pedagógico dos docentes, não obstante a abertura de muitos destes à problemática das disciplinas corporais, e aos esforços, sem continuidade devida, dos serviços responsáveis...

5 De acordo com Lima (1937:33), só em 1900 se funda na capital a primeira classe de gimnástica feminina. Mas é a “Grande Guerra” que, abalando

Procurando recuar um pouco mais, refira-se Honório (2003), num estudo centrado no pensamento pedagógico de Francisco Stockler, explanado nas suas diferentes propostas pedagógicas de reforma da instrução nacional em Portugal e no Brasil nos finais de setecentos e nas primeiras décadas do século seguinte. Na diferenciação dos conteúdos entre rapazes e raparigas, passa muito pela EF. Assim Honório salienta que:

As meninas de Stockler vão à escola para aprenderem, com os meninos, a ler, a escrever, a contar, para aprenderem os primeiros rudimentos de história natural, medicina e veterinária e se o terceiro ano desta formação inicial os separa, não é para a aprendizagem dos conteúdos femininos tradicionais, dos bordados, da música, ou do canto, mas para o desenvolvimento de conhecimentos ligados à educação física das crianças e à medicina domésticas (Honório, 2003:101).

Na contextualização das relações da mulher com o Desporto, repare-se que Esteves (1975) – vulto inquestionável da EF nacional -, aludindo às questões da promoção desportiva da mulher, ainda se lhe referia desta forma: A questão da inferioridade física e desportiva da mulher começa, agora, a ser posta em discussão. Efectivamente, já não se pode afirmar como se fazia até há poucos anos, que existe uma inferioridade irrecuperável, absoluta, de natureza física e desportiva, do sexo feminino (Esteves, 1975:375).

Esta visão da participação em AFD é caracterizada por Marivoet (2001) em termos de que a diferente adesão à prática desportiva nos universos masculino e feminino encontra-se ainda relacionada com os preconceitos existentes perante os hábitos masculinos/femininos, sobretudo nas gerações mais velhas, que tendem a apresentar maior resistência perante a prática desportiva das mulheres, salientando ainda que a discrepância entre os sexos relativamente à prática desportiva começa a aumentar a partir dos 20 anos (Marivoet, 2001:118).

Um facto evidenciado na caracterização da escola do 1º CEB é a já longa feminização deste nível de ensino. Tal facto no que à EF diz respeito pode influenciar as percepções da sua abordagem, por razões de natureza sócio-cultural, que identificam histórica e sociologicamente mais o sexo masculino com as práticas de AFD. Apesar de todas as mudanças de mentalidades, é nosso entendimento que, do ponto de vista geracional ainda não chegámos a uma situação de paridade ou igualdade sexual na vinculação às AFD. Isto mesmo é confirmado por Figueiredo (1996) quando constata relações negativas da feminização com a importância curricular e a defesa de níveis autónomos de abordagem da EF.

Marivoet (2005), na análise dos índices de participação desportiva em Portugal, salienta o facto de as assimetrias relativas ao género tenderem a atenuar-se nos países do Norte da Europa e a acentuarem-se nos países do Sul. Salienta Marivoet que, apesar da proximidade da realidade portuguesa com a espanhola e italiana, as portuguesas encontram-se ainda mais ausentes da prática desportiva (14%) e contrariamente a estes países, revelaram um decréscimo da sua participação em dois pontos percentuais entre as duas últimas décadas (Marivoet, 2005:10). Em síntese, para a autora as mulheres em Portugal apresentam diferentes experiências e oportunidades relativamente aos homens, que ainda se agravam mais quando se equaciona a sua participação ao nível do desporto de competição (1%).

Esta realidade sócio-cultural não pode deixar de ter a sua influência, quando esmagadoramente quem decide sobre a construção curricular da EF são professoras que, na sua maioria, têm reduzidas vivências e vinculação às AFD. Tal ainda é hoje visível nos mais recentes estudos comparativos realizados na Europa, onde os homens praticam mais exercício do que as mulheres: 41% dos homens interrogados referem ter uma AFD pelo menos uma vez por semana, sendo de 35% a proporção de mulheres (CE, 2004).