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I. Desígnios da Escola e processo de socialização escolar

2. A escola como instância socializadora

2.4. A escola disciplinadora e a indisciplina: entre a ordem e a “desordem”

Como nos dizem Correia e Matos (2003), a disciplina tem andado, desde sempre, associada à escola, a ponto de o léxico escolar se ter apropriado do vocábulo não apenas para designar a dimensão comportamental, mas também os saberes estruturados curricularmente (vulgo “disciplinas”). Fenómeno indissociável do processo de ensino-aprendizagem e da relação pedagógica, a disciplina foi alvo de reflexão por parte de sociólogos como Durkheim (2001) ou Bourdieu e Passeron (1974) que, em função das suas conceções ideológicas, societais e do projeto de escola defendido, ora assumiram abertamente a sua defesa ora a acusaram de ser um dos rostos da violência institucional. Na disciplina escolar reencontramos algumas das técnicas – sóbrias e suaves – que, segundo Foucault (2002), foram postas ao serviço da construção de uma sociedade disciplinadora. Apoiada numa arquitetura funcional, a escola pode, assim, cumprir a missão de “(…) máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar” (p.126). Nela e no seu funcionamento reconhecemos, ainda hoje, traços do modelo disciplinar analisado pelo autor, nomeadamente a nível do controlo das atividades, da arte das distribuições e dos recursos para o adestramento.

A “disciplinarização do espaço escolar” (Correia e Matos, 2003, p.27) tem como aliados não apenas a organização racional das atividades escolares e da componente espácio- temporal em que estas decorrem, mas também o recurso a uma “micro-física do poder” (Foucault, 2002, p.120) que permita o controlo do mais pequeno pormenor da vida do aluno. No plano das “distribuições dos indivíduos no espaço”, reencontramos nos muros e portões vigiados por seguranças a “cerca” que no modelo foucaulniano assegurava a manutenção do grupo num espaço fechado, isolado e vigiado e que agora, na escola, permite manter os alunos protegidos dos perigos exteriores “(…) enquanto não forem capazes de se controlarem

ele cumpre, simultaneamente, o objetivo da funcionalidade e da vigilância hierarquizada, através de elementos de natureza material (como o mobiliário), mas também ideal, como é o caso dos valores e dos princípios hierarquizantes que subjazem à organização espacial. Verificamos que o espaço da sala de aula, “estruturado e hierarquizado” (Estrela, 1986, p.43), propicia uma sociofobia (Hall, 1986) entre pares facilitadora da manutenção da disciplina – dimensão considerada fundamental para uma profícua relação pedagógica. Em nome deste desígnio, a estruturação da sala de aula obedece a uma lógica normativa: por um lado, a exiguidade do espaço restringe a mobilidade dos alunos (Sacristán, 2003) e a disposição das carteiras em fila dificulta eventuais conversas paralelas entre eles, facilitando a vigilância do docente; por outro lado, a generalizada eliminação do estrado – símbolo por excelência da relação vertical professor-aluno – não impede os docentes de assegurar, através de uma localização estratégica no centro da sala de aula, “(…) as condições materiais e simbólicas que lhe permitem manter os estudantes à distância e em respeito (…)” (Bourdieu e Passeron, 1974, p.146), controlando-os disciplinarmente, quando necessário. Ao alargar o campo de visão do professor e ao levar cada aluno a sentir-se sob permanente observação, como acontecia no modelo de prisão Benthoniano, este posicionamento facilita o cumprimento dos objetivos comportamentais e instrutivos. A organização simétrica do espaço da sala de aula – corporização da supremacia da lógica racional e funcional sobre a afetividade –, por sua vez, obedece a uma técnica similar à do chamado quadriculamento (Foucault, 2002, p.123). O seu objetivo – fixar para cada lugar um indivíduo e para cada indivíduo um lugar determinado – é assegurado através da existência de uma “planta” da sala, garante do cumprimento da regra das localizações funcionais. Através da construção de um espaço analítico que facilita a constante monitorização dos insubordinados, obstaculiza-se a formação e a ação de agrupamentos disruptores e quebram-se as redes de comunicação paralelas.

Quanto ao tempo de permanência na escola, ele continua, à semelhança do sucedido nas instituições analisadas por Foucault (2002), controlado e segmentado, com a campainha a marcar essa impositiva fragmentação temporal que baliza o tempo destinado não apenas aos intervalos entre as aulas ou às pausas, mais longas, para as refeições, mas também às diferentes disciplinas e à realização das tarefas escolares. Também Sacristán (2003) equaciona o impacto do tempo, agora nos conteúdos curriculares e no processo de ensino- aprendizagem. Indiferente ao “tempo” de cada aluno, a escola impõe um tempo-padrão de aquisição de saberes e destrezas e é em função do grau de (des)sincronização entre esse

ritmo-padrão e o ritmo individual que os alunos surgem categorizados como “normais”, “atrasados” ou “adiantados”. Outro traço disciplinador da ordem escolar diz respeito ao controlo da hexis corporal dos alunos, a quem é exigida uma postura correta que, simultaneamente, reflita e sirva a construção de um clima de trabalho, de ordem e de responsabilidade. Os resistentes à “docilização” do corpo enfrentam repreensões de ordem vária. A sanção dos comportamentos inadequados e a gratificação – materializada, por exemplo, em elevadas classificações ou na obtenção de prémios – são, assim, as duas faces da função normalizadora do sistema disciplinar escolar. Também o exame constitui, como nos diz Foucault (2002), um dos mais importantes mecanismos de normalização dos indivíduos. Floro (1996), ciente das desvantagens que advêm da realização do exame, acredita que o processo de avaliação constitui um indicador de violência do sistema escolar, não só porque significa, para o aluno mal sucedido no exame, fracasso escolar e, consequentemente, estigmatização, mas também porque os critérios de avaliação se estruturam “(…) em normas que lhe escapam, de que ele não vê o sentido (…)” (p.157). Sem as disposições que facilitam a integração escolar dos herdeiros (Bordieu e Passeron, 1964) são os “bastardos” do sistema que engrossam o contingente dos vitimados pela violência avaliativa.

É neste universo de disciplina e regulação (Correia e Matos, 2003) que emergem os comportamentos obstaculizadores do processo pedagógico, cujas causas têm centrado a atenção não apenas de psicólogos, mas também de pedagogos e sociólogos. Para Barroso (2003b), a indisciplina surge como o contraponto da disciplina, ambas comungando do mesmo traço violentador: a “(…) primeira (disciplina) por imperativo da imposição, a segunda (indisciplina) por necessidade de contestação” (p.67). Lembrando que a indisciplina ora é percecionada como “«mal» em si mesmo” (p.69) ora como um “sintoma” (p.70) de desajustamento entre a “ordem escolar formal” e as diferentes “ordens informais” (p.70) que os alunos vão construindo, este investigador preconiza a reconceptualização do atual modelo escolar. Fazendo eco das novas achegas teóricas que identificam na sala de aula um espaço não apenas de reprodução mas também de produção de culturas, Santomé (1995) vê nos atos de indisciplina a expressão da resistência à normatividade escolar por parte de quem se apercebe “(…) de que o seu mundo, a sua cultura não têm lugar facilmente dentro das salas de aula, e muito menos dentro das avaliações positivas que o professorado realiza” (p.134).

configurariam, neste ponto de vista, atos de rebelião contra a violência simbólica exercida pela ordem escolar (Bourdieu e Passeron, 1964). A contracultura de oposição à escola dos jovens lads (Willis, 1978) exemplifica a capacidade de os jovens do mundo operário responderem deliberadamente à imposição de uma cultura escolar na qual não se reveem e à qual opõem, ostensivamente, a sua cultura de classe. Através desta afirmação da sua idiossincrasia, os jovens sobrevivem, com menos sofrimento, às imposições da cultura “oficial”.

Os incidentes perturbadores do funcionamento das aulas são também objeto de reflexão de Woods (1990), que os concebe não como resultado de características psicológicas ou de determinismos estruturais, mas antes como produto da construção de sentidos por parte dos atores envolvidos, cujos pontos de vista se propõe captar. Depois de observar que a definição de um ato como perturbador varia em função do docente, o investigador correlaciona essa plasticidade do conceito – também identificada por Delamont (1987) – com as diferentes conceções docentes sobre a natureza da criança, do saber e do ensino. Assim, se, numa linha fenomenológica, o professor conceber a criança como um agente ativo na aprendizagem e defender o ensino centrado no aluno, verá na docilidade e passividade deste um comportamento desadequado, ou seja, um fator de perturbação à conduta desejada. Estas mesmas características serão “virtudes” para o professor que vê no aluno um ser naturalmente antissocial que carece de normas e sanções. Partindo das perspetivas dos alunos sobre os atos perturbadores do funcionamento da aula, Woods (1990) conclui estar perante comportamentos racionais e de reciprocidade através dos quais os jovens respondem ao que sentem como agressões docentes – a altivez, a impessoalidade, a tibieza, a injustiça. Van Zanten (2000a), por sua vez, vê na indisciplina menos um ato de consciente e deliberada rebelião do que o resultado de um “sentimento de irresponsabilidade e de impotência” (p.389) por parte de alunos que, na sua maioria, admitem “deixar-se arrastar” pela “deriva” anómica que se instala, com alguma impunidade, em certas turmas. Lopes (1997a) salienta, aliás, “(….) a forma não estruturada, sem tradução ao nível da formação de grupos de interesses ou de movimentos sociais (…)” (p.119) destas dinâmicas de resistência, consideradas por Santomé (1995) “erráticas e desorganizadas” (p.121) na linha do “escapismo individual” que hoje tende a substituir o envolvimento em formas de ação coletiva (Abrantes, 2003, p.79).

À luz das teorias interaccionistas sobre o desvio, a indisciplina é concebida como o resultado do processo de etiquetagem (Estrela, 1986). Nesta perspetiva, os atos

indisciplinados seriam conceptualizados como uma forma de “desvio” na medida em que constituem “(…) comportamentos que transgridem normas aceites por determinado grupo social ou por determinada instituição (…)” (Becker, 1985, p.9) que as criou e que detém o poder para as tornar obrigatórias, como é o caso da escola ou de quem a representa, como o professor. Deste modo, o desvio à norma não é perspetivado como uma qualidade intrínseca do comportamento do aluno, mas antes como resultado da existência de um código normativo que permite a rotulação de desviante aos comportamentos que o transgridem.

Entrando no âmbito da definição de comportamento indisciplinado, Estrela (2002) começa por chamar a atenção para a necessidade de distinguir a indisciplina da violência – conceitos indevidamente amalgamados por uma “generalização abusiva e infundamentada” (p.132) que não tem em conta o caráter excecional dos atos de indisciplina atentatórios da ordem social. Na sua perspetiva, a indisciplina traduz-se, frequentemente, numa infração às normas escolares que, quando respeitadas, garantem o normal funcionamento do processo de ensino- aprendizagem. Esta conceção funcional é retomada por Jesus (1991) quando define a indisciplina dos alunos como “(…) todos os comportamentos e atitudes que estes apresentam como perturbadoras e inviabilizadoras do trabalho que o professor pretende realizar” (p.31). Tendo em conta a diversidade de manifestações que a indisciplina pode assumir, nomeadamente em termos de gravidade, Amado (2001) propõe o uso do vocábulo no plural. Fala, assim, de “indisciplinas” escalonáveis em três níveis de gravidade inversamente proporcional à sua frequência. No primeiro nível – mais recorrente e menos grave –, o investigador inclui os desvios às normas da sala de aula que introduzem “ruído” na prática pedagógica e obstaculizam a concretização das metas de ensino-aprendizagem. Tais atos disruptores – de que são exemplo o desrespeito pelas regras relativas à comunicação verbal e não verbal, à mobilidade na sala e ao cumprimento das tarefas escolares – desempenham, essencialmente, segundo Estrela (1986), funções de proposição, evitamento e obstrução. No segundo nível da indisciplina – mais raro, mas já com uma gravidade acrescida face ao anterior –, Amado (2001) integra a conflitualidade interpares, visível nas agressões verbais e/ou físicas ou nos danos morais e patrimoniais. Perspetivadas como fonte de deterioração do clima relacional da turma, estas condutas – que têm por meta a obstrução das aulas – ocorrem frequentemente quando o professor peca por falta de assertividade. No último nível de indisciplina – o menos frequente de todos, mas o mais gravoso –, o autor integra as

“simples” réplica a chamadas de atenção do professor, a atitudes de insubordinação e ao uso de linguagem insultuosa e obscena até à violência física. Estes comportamentos dos discentes “(…) desempenham essencialmente a função pedagógica de contestação mas também funções psicossociais de retaliação ou de reequilíbrio do prestígio junto de colegas” (Estrela, 2002, p.133).

A reflexão sobre a temática da (in)disciplina é, pois, temperada por divergências, como procurámos evidenciar. Parece-nos, no entanto, consensual estarmos perante um fenómeno que constitui um desafio central da escola de hoje. Vencê-lo, é uma das condições para o cumprimento das missões instrutivas e educativas da escola.

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