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VI. Sucesso educativo de “banda larga”: entre a legitimação pelo discurso e a

1. A pluridimensionalidade do sucesso educativo: reivindicando uma educação integral e

Como diz Hutmacher (1995), “(…) cada estabelecimento de ensino tem as suas características específicas, uma identidade própria” (p.57). Os colégios em análise são, de facto, dotados de uma especificidade que faz deles organizações singulares. Partilham, no entanto, alguns traços identitários que os Projetos Educativos documentam e que os discursos dos diferentes agentes educativos refletem. Uma dessas linhas de força comum aos dois colégios é a conceção de sucesso, entendida por ambos não numa aceção circunscrita à dimensão académica, mas numa perspetiva ampla que alia a esta vertente a dimensão social (relativa às redes de sociabilidade tecidas), a cultural (associada à educação para cultura) e a cívica (relacionada com a educação para a reflexividade e autonomia e para a participação cidadã). Estas quatro dimensões do êxito foram selecionadas enquanto eixos estruturantes da nossa reflexão quer dedutivamente através da leitura das teorizações sociológicas explanadas oportunamente, quer indutivamente depois de concluída a fase exploratória do trabalho de terreno (consulta dos Projetos Educativos e realização das entrevistas aos principais representantes dos colégios). Deste diálogo entre teoria e empiria nasceu o conceito de sucesso educativo que nos propomos desenvolver e que, nestes colégios, surge identificado com a “formação do homem integral”. Orientadas por uma conceção de sucesso de banda larga, estas escolas pretendem educar o jovem em todas as dimensões constitutivas do ser humano, como especificaremos. E embora não possamos, de modo algum, identificar nestes colégios a instituição total na aceção de um espaço de “(…) residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (Goffman, 2001, p.11), podemos ler na sua ação educativa um propósito socializador de cariz totalizante. Aliás, como observa Tedesco (1999), ao incumbir-se da missão de formar não apenas “o núcleo básico do desenvolvimento cognitivo mas também o núcleo básico da personalidade” (p.40), a escola dos nossos dias – ou, como prefere dizer, as “formas mais institucionalizadas da educação” (p 40) – tende a “assumir características de uma instituição total” (p.40). No caso específico destes colégios, estas características são mais vincadas, até

porque estamos perante projetos educativos que assumem, de forma explícita, a meta da formação da “pessoa inteira”. Como vimos na abordagem teórica, nesta formação holística reside uma marca de distintividade da educação burguesa destinada à preparação de uma elite intelectual e moral que se considera destinada a grandes missões (Pinçon e Pinçon-Charlot, 2007). Nesse sentido, os pais procuram uma educação que consideram de “excelência” e que acreditam assegurar através da frequência de colégios onde os filhos recebem instrução mas também educação e onde encontram um prolongamento e um reforço da socialização familiar, como nos dizem os mesmos autores. De acordo com um dos alunos, “esta escola [tem] o papel de formar uma elite e eu acho que isto é um nível de sucesso educativo que já ultrapassa muito as outras escolas, porque nós vamos ser as pessoas que vão, de certa forma, estar à frente do país” (aluno434, colégio laico, PBIC, 17 anos). Explicitando o conceito de “alunos de elite”, um dos professores admite mesmo sentir-se orgulhoso por ter um papel na formação de um escol e por integrar um corpo docente de que fizeram parte professores de “excelência”: “Alunos de elite não são pessoas superiores às outras, têm é uma responsabilidade futura que não lhes vai ser negada, vai-lhes ser exigida. E, portanto, o orgulho de ser professor desta Casa até vem daí e do facto de, nesta Casa, terem dado aulas personalidades da cultura portuguesa muito importantes” (colégio laico, 34 anos).

Mediante uma socialização desenvolvida no quadro das atividades letivas e não letivas mas também, se os pais assim o desejarem, das atividades extraescolares formais dentro do próprio colégio – o que evita a “deslocalização das suas redes sociais” (Faguer, 1991, p.35) – e mediante uma seletividade no acesso que se traduz na homogeneidade social e disposicional dos alunos, estes colégios visam uma “conversão”, que esperam duradoura, dos alunos aos objetivos dos respetivos Projetos Educativos: um desejo, afinal, tão expectável quanto “educar” significa, do ponto de vista etimológico, “guiar” ou “conduzir” e que quem “educa” o faz, necessariamente, nos princípios que são os seus e que acredita serem os bons. Como diz Postic (2007), “Qualquer opção educativa é um ato de fé em valores e, por isso, desperta o desejo de transformar os outros” (p.26). E se é verdade que os alunos destes colégios estão sob influência de outros agentes de socialização (Lahire, 2003) e mantêm, além disso, margens de ação, não é menos verdade que estes colégios têm uma ação “forma(ta)dora” cuja eficácia tende a ser assegurada, como acabámos de referir, por uma

diversidade de fatores a que não falta sequer a precocidade da imersão da maior parte dos seus alunos no contexto escolar socializador.

Os depoimentos de docentes, alunos e pais são reveladores da internalização dessa multidimensionalidade de sucesso plasmada, como vimos, nos Projetos Educativos e verbalizada nos discursos dos responsáveis colegiais. A Diretora do colégio laico, ainda que não dissociando o sucesso educativo da construção plena da identidade discente, começa por identificar nele a dimensão académica, associando-o à preparação para os exames finais e para o ingresso na universidade. Já o Diretor da escola religiosa remete, de forma mais inequívoca, para a pluralidade dimensional do êxito, distinguindo sucesso académico de sucesso educativo: o “(…) sucesso académico será (…) o objetivo de levar os alunos a adquirirem o máximo de conhecimentos e pô-los em prática e saber manuseá-los, etc. O sucesso educativo tem que ver com a pessoa toda, humana, e a pessoa humana é aquela que, de facto, desperta para o serviço dos outros”. Esta multidimensionalidade surge sintetizada na expressão “binómio entre prestação académica e prestação humana” (professora, colégio religioso, 59 anos).

Efetivamente, os agentes educativos reconhecem que o sucesso contempla, incontornavelmente, a componente cognitiva e a qualidade da formação académica, consideradas indispensáveis para “(…) que o aluno cumpra e realize o desejo que tem do curso que quer seguir, etc., adquirindo o máximo de competências possíveis e que são transmitidas através de nós, professores” (professora, colégio laico, 36 anos) – preocupação que atravessa, também, o discurso dos pais: “Claro que nós hoje estamos todos muito preocupados com a questão do sucesso académico e do ter boas classificações para se manterem, o mais possível em aberto, as possibilidades de os miúdos acederem aos cursos que gostariam de tirar. E com certeza que isso é uma dimensão muito importante e é uma fonte de pressão constante para os miúdos e para as famílias” (mãe, colégio laico, PBIC, 46 anos). A importância “dessa parte de instrução, da parte académica” (aluno3, colégio religioso, BDP, 17 anos) e de “(…) termos o pleno conhecimento daquela matéria que estamos a tratar (…)” (aluna, colégio religioso, BEP, 17 anos) é relevada pelos alunos entrevistados, que compreendem o enfoque dado pelos respetivos colégios às classificações e às performances escolares obtidas nos rankings de seriação dos estabelecimentos de ensino, como teremos oportunidade de ver.

No entanto, confirmando que “(…) tem sentido reclamar que a escola, mais do que um armazém onde se vendem conhecimentos, seja uma escola de vida que promova a integralidade da pessoa” (Rosa, 1997), é também unânime entre os entrevistados dos dois colégios a ideia de que ser um aluno bem sucedido não se esgota na vertente instrutiva. Restringir o sucesso às classificações pode mesmo, como nos diz um dos pais, ser penalizador para a criança, que vê toda a sua multidimensionalidade humana reduzida à performance académica: “a nota pode ser não só redutora como até pode ser penalizadora, porque um miúdo que só trabalha para ser muito bom e ser o melhor da turma e para ter tudo melhor cria, depois, um modelo de egoísmo e um modelo de… sobretudo, às vezes não olhar a meios para atingir os fins e em que perde a noção de que o homem tem de ser um todo, não é?” (colégio religioso, BDP, 45 anos). O sucesso pressupõe, pois, igualmente e necessariamente o desenvolvimento pessoal dos jovens: na vertente social, cultural e cívica mas também, no caso específico do colégio confessional, na parte religiosa. Os mais veementes na defesa de que o sucesso passa por uma formação integral são os pais do colégio religioso, para quem um aluno bem sucedido é o que “aproveita o colégio nas três vertentes [pessoal, social e religiosa]” e que “(…) está a aproveitar o colégio na sua máxima potencialidade, que seja na parte académica (…) que se relaciona bem com os outros, que brinca, que estuda, que tem boas notas, que aproveita a parte toda da Pastoral, vai aos Campinácios, vai aos Fins de Semanas dos CaFé [Cursos de aprofundamento da Fé], vai a isso tudo e, se possível, ainda faz parte de uma equipa do colégio e ajude e é voluntário e está na Festa das Famílias. É um aluno que aproveita o colégio na sua máxima potencialidade” (pai, PBIC, 39 anos). No mesmo sentido se pronuncia uma mãe do mesmo colégio: “(…) o sucesso educativo é uma criança sentir-se preenchida sobre essas três vertentes. É eu conseguir chegar ao final do processo educativo dos meus filhos e sentir que lhes proporcionei, durante estes doze anos, a melhor forma de eles crescerem como seres humanos e de serem capazes de serem pessoas úteis para a sociedade e serem boas pessoas no seio de uma comunidade, percebe? Para mim, o sucesso educativo não é só criar crânios e nem pessoas academicamente válidas, mas sim pessoas válidas para a sociedade” (BEP, 42 anos). Assim, diz um outro pai, “no final [da escolaridade], eu prefiro um miúdo que seja um miúdo mais humano, mais social, sobretudo mais responsável, socialmente, pela sua comunidade e, se calhar, seja um aluno de nota 12 ou 13 do que ser um aluno de nota 19 e só

outro e estar, no fundo, numa ótica de educar para poder servir, para… se todos nós servirmos uns aos outros, servimos todos melhor, portanto” (BDP, 45 anos). A dimensão formativa é tanto mais importante quanto ela “é, em muitos casos, um caminho paralelo. Não há desenvolvimento académico se não houver desenvolvimento da pessoa (…) Se as pessoas forem estruturadas, consistentes, com uma autoestima correta vão ser, com certeza, profissionais de qualidade, porque o caminho deles é esse” (professor, colégio laico, 62 anos).

A representação social de sucesso educativo dos entrevistados integra ainda outros “traços”, de que destacamos capacidades – “(…) de responsabilidade, de compromisso, de assumir o seu papel, de descobrir a sua vocação, descobrir os seus talentos e desenvolvê-los em função da comunidade, daqueles que estão à sua volta (…)” (professora, colégio religioso, 44 anos); de “saber-estar” (Diretor de Ciclo do Ensino Secundário, colégio religioso); de “(…) escolher, em consciência e em independência, um caminho para a sua vida” (professor, colégio laico, 34 anos), de “saber aprender” e “saber crescer com naturalidade, com gosto e, se possível, com paixão”, como lembra um outro docente do mesmo colégio (62 anos) –, mas também valores como o sentido crítico, a solidariedade e a tolerância. Um dos pais, alertando para a mais valia da “inteligência relacional” no mercado do trabalho, diz-nos: “uma das condições essenciais para nos irmos integrando neste mundo global é a maneira como estamos e como nos relacionamos. E, de facto, uma pessoa fechada, uma pessoa que tende a ser egoísta e que não valoriza a tal responsabilidade social começa a não ser bem aceite em termos de uma empresa. Aliás, é frequente, agora, quando se é posto perante uma oferta de emprego para determinado tipo de empresas fazer algumas perguntas viradas para isso, para ver como nós víamos a relação, enfim, de liderança, a relação com os outros. Começam a ser fatores importantes para arranjar ou não arranjar emprego” (colégio religioso, BDP, 47 anos). Pais e professores, em sintonia com os Projetos Educativos dos colégios, são unânimes na hora de definir o seu projeto socializador: fazer com que os jovens sejam “(…) boas pessoas, bons cidadãos! E depois, se possível, também – evidentemente que uma coisa também gera a outra – serem bons alunos”, como sintetiza uma docente (colégio religioso, 65 anos).

Em osmose com a visão de aluno bem sucedido partilhada pelos seus educadores, os alunos recusam também o monolitismo do conceito de sucesso, havendo mesmo uma maioria (77,6%) de respondentes ao inquérito a considerar que uma escola de sucesso deve preocupar-se tanto, ou ainda mais, com a formação pessoal e social dos alunos do que com a componente académica.

Tabela 2. Uma escola de sucesso preocupa-se mais com formação académica dos alunos do que com a sua formação pessoal e social

Concordo totalmente 11,1% Concordo 11,3% Discordo 57,0% Discordo totalmente 20,6% Total 100,0% (N=470)

Os depoimentos prestados nas entrevistas validam estes dados: “O sucesso educativo é não só ter boas notas e conseguirmos entrar na faculdade que queremos – e ter um futuro com o sucesso que desejamos –, mas também formarmo-nos como pessoas e, aqui no colégio, dentro dos ideais cristãos” (aluno, colégio religioso, PBIC, 16 anos). Um outro colega do colégio acrescenta: “O sucesso educativo passa por se ser capaz de ter uma grande formação académica mas complementada, também, com o saber estar e com os valores que serão úteis, depois, para a vida em sociedade” (aluno4, BDP, 17 anos). À semelhança dos alunos da escola confessional, os discentes do colégio laico acreditam que os jovens são bem sucedidos quando “(…) aprendem, de facto – ou não – e se eles, ao fim desses dezoito anos de escola, saem, de facto, mais cultos e se aprenderam mais alguma coisa, não só de áreas específicas – Física, Matemática – mas também de vida, se aprenderam algo que lhes será útil na sua vida futura, fora do colégio” (aluno1, PBIC, 17 anos). Desenvolvendo a ideia de que o sucesso envolve também aquilo “(…) que ganhamos para poder contactar, no nosso futuro, para lidarmos com diversas situações” (aluno2, PBIC, 17 anos), o primeiro jovem abrange na definição a “(…) maneira como abordamos, por exemplo, as pessoas, as reações que temos com elas, se somos mais recetivos a identificarmo-nos com outras pessoas, se gostamos de socializar mais ou se somos pessoas mais fechadas”.

Os discursos discentes sobre a multidimensionalidade do sucesso educativo são corroborados pela Análise de Correspondências Múltiplas – procedimento estatístico construído com base num conjunto diferenciado de variáveis que captam as quatro dimensões do sucesso: académico, social, cultural e cívico. Salientamos a existência de dois eixos estruturadores das respostas: o primeiro, composto por variáveis relacionadas com a vertente académica, profissional e instrumental (sobretudo ao nível das redes de relações sociais)35; o

35

Nesta dimensão, as respostas diferenciam-se entre: por um lado, a expressão duma concordância total com as variáveis “adere às expectativas da escola”, “relaciona-se com amigos bem sucedidos pessoal e profissionalmente”, “é feliz na escola”, “solidário” e “alcança, no futuro, uma confortável situação económica”;

segundo, integrando indicadores que espelham uma dimensão mais expressiva do sucesso, como o sentimento de felicidade e bem-estar na escola, o prazer de aprender, a participação cívica em prol da sociedade e a adoção de valores como a solidariedade36.

Gráfico 3. Representação social do sucesso educativo, com recurso à ACM

Variáveis suplementares: agrupamento científico, classe social de origem agrupada, colégio, índice de indisciplina e sexo

dos conhecimentos científicos” e “aprendizagem pelo prazer de saber” e a concordância parcial com a noção de sucesso enquanto capacidade de, no futuro, “alcançar um emprego estimulante”, “ obter altas classificações”, “estar preparado para o emprego” e “ser exigente consigo mesmo”.

36Esta dimensão surge polarizada entre os que não integram na sua representação de sucesso a aprendizagem

pelo prazer de aprender, a felicidade na escola, a solidariedade e participação cívica para melhorar a sociedade, por oposição aos que concordam parcialmente com a associação entre sucesso e estas três últimas variáveis.

Como se depreende pela leitura do gráfico, a estruturação “tricotomizada” das respostas leva-nos a afastar a hipótese da existência de perfis diferenciados de representações sobre o sucesso, validando a ideia de multidimensionalidade, uma vez que os items de “concordância total” com todas as dimensões do sucesso ocupam, graficamente, posições próximas, o mesmo acontecendo nos items “concordo” e “não concordo”37. O facto de os colégios não se “posicionarem” expressivamente, no gráfico, em nenhuma das duas dimensões – encontrando-se próximos da origem – é revelador da similitude de perceções dos alunos de ambas as escolas sobre o sucesso, que perspetivam numa aceção de pluridimensionalidade.

2. Entre a difusão e a objetivação do mérito: instrumentos de distinção e de consagração

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