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III. Da representação de “crise” da escola pública à opção pelo colégio privado

1. O ensino público e os dilemas de uma escola para todos

1.1. A homogeneidade perdida: da heterogeneidade da juventude à pluralidade de sentidos

Concebida para lidar com uma população escolar numericamente restrita e sócio- culturalmente homogénea (Benavente, 2001), a escola viu-se a braços, na sequência da democratização do ensino, com o desafio de integrar a diversidade sócio-cultural da juventude estudantil (Lopes, 1997a) que a ela passa a ter acesso. O repto, a que as escolas estatais procuram dar resposta através da implementação de um conjunto de políticas públicas adaptadas às especificidades sociais e territoriais, tem fraca ou mesmo nula expressão nas escolas privadas frequentadas pelas classes dominantes, onde a seletividade social permite assegurar a “homogeneidade perdida” pela escola pública. Porque falar de escola implica, necessariamente, falar de jovens, refletir sobre ela pressupõe, inevitavelmente, refletir sobre a juventude – uma “(…) realidade social historicamente recente, criada pelas modernas sociedades industrializadas e escolarizadas”, segundo Cruz et al. (1984, p.285). A problematização deste conceito estrutura-se, segundo Pais (2003), em torno de duas correntes teóricas: a geracional e a classista. A primeira concebe a juventude como uma realidade homogénea, baseada no critério etário e na partilha de uma cultura própria. A segunda refuta a homogeneidade juvenil alegada pela corrente geracional e, na linha bourdieusiana – para quem “(…) o facto de se falar dos jovens como de uma unidade social, de um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e de se referir esses interesses a uma idade definida biologicamente, constitui já uma evidente manipulação” (Bourdieu, 2003, p.153) –, advoga a necessidade de substituir o termo “juventude” pelo plural “juventudes”, de modo a abarcar a heterogeneidade de uma realidade constituída por múltiplas pertenças de classe condicionantes de diferentes normas, valores e atitudes.

Cruz et al. (1984) referem-se também à juventude não como “(…) uma realidade biológica ou natural, nem algo que se afira por meros critérios etários, mas uma condição social que se constitui histórica e socialmente” (p.285). Quanto a Pais (2003), defende a existência de alguns traços transversais ao universo juvenil, caso da importância da integração no grupo, da sociabilidade interpares – baseada não na autoridade e na

instrumentalidade, mas sim no igualitarismo e na expressividade –, do hedonismo convivialista e do narcisismo (Pais, 1998), a que Bellah acrescenta o “individualismo expressivo” (Ferreira, 1998, p.131). Contudo, embora aceitando que “(…) se possam reconhecer traços comuns associados a essa fase do ciclo de vida, tanto no plano do estatuto social como no plano simbólico-cultural (…)” (Machado e Almeida, 1996, p.34), Pais (2003) defende que não se deve falar em juventude, mas sim em juventudes – categoria social heterogénea que a democratização do ensino trouxe até à escola e que esta é solicitada a acolher e a integrar. Desígnio difícil de cumprir quando um sistema escolar tenta, por via de uma “pedagogia coletiva” (Barroso, 2003b, p.68), superar as heterogeneidades sociais, culturais, linguísticas e disposicionais dos jovens, socializando-os como se eles constituíssem um corpus homogéneo. Ora, para além da sua condição juvenil, cada jovem transporta “(…) uma determinada conceção da escola, das suas funções, bem como uma visão própria do que significa ser aluno, que pode ou não ser coincidente com a escola” (Dayrell, 2007, p.217). Isto significa, nas palavras de Abrantes (2003), que os jovens atribuem diferentes sentidos à escola, premissa que vem abalar o esquematismo de algumas conceptualizações. Perrenoud (1995), por exemplo, perspetiva a relação jovem-escola em termos de uma generalizada conflitualidade latente que só é escamoteada pelo pragmatismo da obtenção de diplomas e pelo acionar de “estratégias de sobrevivência”. Por sua vez, Bourdieu e Passeron (1974) identificam duas disposições distintas perante a escola, cujas raízes assentam na estrutura classista: atitudes de conformismo à cultura escolar por parte de quem recebeu da família os instrumentos necessários à sua apropriação e atitudes de rejeição por parte de quem, destituído desses instrumentos, não encontra sentido no projeto escolar. Também as teorias culturalistas das classes sociais apontam para esta dicotomização quando referenciam a existência de duas subculturas distintas, uma que caracterizaria a classe média e outra as classes populares. Se até à entrada na escola as crianças de uma e de outra classe são sujeitas a uma socialização coerente e em harmonia, o ingresso na vida escolar introduz a diferença entre elas: enquanto as da classe média encontram na escola a confirmação da sua educação familiar, “(…) às crianças das classes populares é solicitado que renunciem à sua cultura original para adotarem os modelos da classe média” (Herpin, 1982, p.120). O choque que nelas provoca o confronto entre as duas culturas leva a uma inadaptação escolar que culmina, em muitos casos, com a adesão às subculturas de delinquência. Um dos mais significativos

sobre a contracultura escolar dos jovens das subculturas operárias – os lads –, uma cultura de classe através da qual procuram afirmar a sua identidade e idiossincrasia, minimizando o impacto doloroso da submissão à cultura escolar institucionalizada. É pela reconstituição das diferenças com os “integrados” no sistema e pelo seu evitamento mas, sobretudo, pelo comportamento indisciplinado que estes jovens afirmam a sua oposição e resistência à cultura dominante.

As achegas da nova Sociologia da Educação trouxeram à colação o simplismo quer das conceptualizações monolíticas de alunos enquanto meros “internalizadores passivos” (Apple, 2001) ou meros “resistentes”, quer do determinismo social destas polarizações. Como observa Abrantes (2003), a estruturação em torno não apenas do eixo estrutural mas também dos vetores “(…) longitudinal e interaccional – em constante movimento e articulação” (p.84) confere matizes variados às disposições dos alunos face à escola. É assim que, por exemplo, a “resistência” pode assumir uma paleta tão ampla de formas quanto a “fuga” às atividades letivas – ora no seu sentido denotativo de faltas presenciais ora no sentido conotativo de evasão mental ou intelectual – ou os comportamentos disruptores visando a obstrução do processo de ensino-aprendizagem (Lopes, 1997a). A própria variabilidade comportamental do mesmo aluno em contextos diferentes – outro docente, outro grupo de integração, outras atividades – configura a tal plasticidade evocada por Abrantes (2003) quando fala de disposições não cristalizadas e não homogéneas.

Na mesma linha vão os estudos de Pais (2003). Apesar de o insucesso escolar atingir maioritariamente as classes sociais mais desfavorecidas logo desde a escola primária (Benavente e Correia, 1981), o autor mostra que há alunos das classes populares suficientemente “maleáveis” para se ajustarem à cultura escolar (Pais, 2003), apoiando-se “(…) na escola para construir o seu percurso de vida e o seu projeto identitário” (Abrantes, 2003, p.33) num esforço de ascensão social. Por outro lado, há jovens das classes sociais capitalizadas que não encontram na escola um projeto de trajeto (Pais, 2003), aderindo ao que Lopes (1997a) considera ser o movimento generalizado de “(…) desinvestimento fortíssimo e transversal face às várias dimensões do espaço-tempo escolar (…)” (p.113). A dicotomização parece, pois, demasiado reducionista e empobrecedora para apreender uma realidade que, mesmo sendo passível de correlação com a pertença classista, apresenta contornos mais matizados, como se depreende pela paleta de perfis estudantis esboçada no estudo de Pais (2003). Ela abarca quatro tipos estudantis, categorizados com base nas

definições apresentadas pelos próprios adolescentes: os marrões, os graxas, os bacanas e os baldas. Enquanto os marrões, verdadeiros ou falsos, veem a escola como um espaço de aprendizagem, os graxas, provenientes de algumas franjas da classe média e do operariado, recorrem a “subterfúgios” (p.266) para cair nas boas graças dos professores e assegurarem bons resultados com o mínimo de esforço. Já os bacanas, originários sobretudo das classes superiores e médias, encaram a escola essencialmente como espaço de sociabilidade. Insatisfeitos com as práticas pedagógicas e os conteúdos disciplinares, eles não adotam, contudo, comportamentos de antinormatividade escolar, como os baldas, alunos de diferentes condições sociais que se envolvem em “(…) manifestações de rebelião contra um sistema relativamente ao qual (…) sentem que pouco ou nada tem para lhes oferecer” (p.278). Também Woods (1979) identifica cinco atitudes distintas face à escola: atitudes conformistas, intransigentes, de colonização, de retraimento e de rebelião. Por sua vez, partindo do cruzamento entre as variáveis “estratégias de adaptação”, “disposições culturais” e “origem social”, Dubet e Martuccelli (1996) distinguem quatro tipos de estudantes: verdadeiros alunos, oriundos das classes culturalmente capitalizadas e fortemente empenhados em concretizar as expectativas de excelência escolar de pais e professores; bons alunos, que, no equilíbrio entre a condição de estudantes e a de jovens, limitam o seu empenho escolar ao q.b. para obter um curso; novos alunos, para quem a escola representa uma trajetória socialmente ascendente se superarem o fosso entre o seu mundo social e o mundo escolar; futuros operários, jovens de origem popular que no ensino profissional encontram ou a antecâmara do desemprego ou a via de ingresso nas fileiras do operariado e dos técnicos.

Prisioneira de uma visão monolítica da juventude, a escola tende a reduzir toda a complexidade e diversidade da vida dos jovens à unicidade da vida de estudante, esquecendo “as pessoas que moram nos alunos”15. Urge, portanto, inventar uma escola que “transforme os alunos em pessoas” (Canário, 2005, p.88).

1.2. Os novos caminhos para a integração escolar e a projeção de uma imagem de “escola

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