• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I - DA COLÔNIA À ATUALIDADE: (DES)CONSTRUINDO CORPOS E

1.5 A escravidão e as feridas abertas que ainda não fecharam

A escravidão foi um mecanismo de atraso para toda a nação brasileira, principalmente em um país que buscava o seu desenvolvimento em meio a um processo de ruptura do maior e mais perverso sistema econômico que foi o uso de mão de obra escrava. Após a abolição da escravatura, o Brasil se viu no desafio de fazer o país crescer economicamente, visto que naquele momento existia “um país heterogêneo racialmente, com grande parte de sua população formada por negros, mestiços e indígenas e uma diminuta elite branca” (RESTIER, 2019, p.29) que precisava deixar esse marco histórico para atrás e “evoluir enquanto nação”.

Entretanto, essa virada não teve por objetivo a construção de um projeto de integração desses negros até então escravizados e de seus descendentes enquanto cidadãos de direito em nossa sociedade, isso porque muitos fatores deveriam ser pensados para além da assinatura da Lei Áurea, pois em decorrência disso:

14 Atualmente mais conhecida como sífilis, É uma doença infecciosa causada pela bactéria Treponema pallidum.

Pode se manifestar em três estágios. Os maiores sintomas ocorrem nas duas primeiras fases, período em que a doença é mais contagiosa. O terceiro estágio pode não apresentar sintoma e, por isso, dá a falsa impressão de cura. Outras informações podem ser verificadas em: <https://www.hospitalinfantilsabara.org.br/sintomas-

doencas-tratamentos/sifilis-ou-lues/#:~:text=%C3%89%20uma%20doen%C3%A7a%20infecciosa%20causada,a%20doen%C3%A7a%20%C3

%A9%20mais%20contagiosa.> Acesso 14 fev 2022.

15 Sobre a cultura do estupro, verificar:<https://www.socialistamorena.com.br/cultura-do-estupro-no-brasil-em-nosso-dna/> Acesso 13 fev 2022.

[...] os ex-escravos foram abandonados à própria sorte, sem educação ou recompensa. Muitos juntaram-se à corrente migratória dos pobres sem profissão que fugiam para as cidades, onde competiam em condições desfavoráveis por empregos com mais de um milhão e meio de imigrantes brancos que entraram no país entre 1890 e 1920. (STEPAN, 2004, p.336)

Neste novo cenário político-social o que se projetou foi uma tentativa sistematizada de extermínio por vias de exclusão social e branqueamento do povo brasileiro através de discursos favoráveis à miscigenação entre a população. Tais discursos, encabeçados pela elite brasileira, como o eugenista Sylvio Romero (1880), se ancoravam na esperança de se ter uma nação branca como a europeia, se baseando ainda na tese do aproveitamento do que seria “útil das outras duas raças”, e assim constituir pela “seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se puro e belo como no velho continente” (ROMERO, 1880, p. 53).

O discurso eugenista, caracterizado como racismo científico (ALMEIDA, 2020, p.

29), foi uma das formas discursivas e práticas cultivadas integradas por médicos, intelectuais e até escritores, que usavam uma suposta base científica para justificar ainda a inferiorização de negros e indígenas nas relações sociais e de poder.

O surgimento da eugenia brasileira foi condicionado pela situação racial do país, nação racialmente híbrida, resultado da fusão de indígenas, africanos e povos europeus. Desde a transferência da Coroa portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808, raça e relações raciais eram aspectos centrais da realidade social e dos debates ideológicos sobre a ‘capacidade’ brasileira e o destino nacional.

(STEPAN, 2004, p.338)

O médico e escritor, Nina Rodrigues, foi um dos estudiosos e precursores da eugenia no Brasil, e que tinham como objetivo central:

[...] um “melhoramento da raça humana” ou, como foi definida por um de seus seguidores, ao aprimoramento da raça humana pela seleção de genitores tendo como base o estudo da hereditariedade. Essa proposição teve grande sucesso e, mesmo após o seu questionamento como ciência, ainda se manteve por longo tempo como justificativa para práticas discriminatórias e racistas. (MACIEL, 1999, p.121)

Esse e tantos outros tipos de discursos dialogam com o que Foucault trata como regimes de verdade, ou seja, uma forma de pensar e se construir verdades absolutas, como verdades naturais. Daí podemos pensar na problemática da repetição de falas com bases racistas assistidas e reforçadas em todas as esferas sociais para hierarquizar e marginalizar grupos a ponto de se tornarem parte da nossa noção de moralidade.

Entendemos que a norma é compreendida como um dos dispositivos de exercício de poder, conforme o entendimento de Foucault (2003), para quem:

[...] a norma não se define absolutamente como uma lei natural, mas pelo papel de exigência e de coerção que ela é capaz de exercer em relação aos domínios a que se aplica. Por conseguinte, a norma é portadora de uma pretensão ao poder. A norma não é simplesmente um princípio, não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual certo exercício do poder se acha fundado e legitimado. Conceito polêmico – diz Canguilhem. Talvez pudéssemos dizer político. Em todo caso – e é a terceira ideia que acho ser importante – a norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção. A norma não tem por função excluir, rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder normativo. (p. 62)

Outro importante autor que também aborda a questão problemática da normalização e fixação de determinadas identidades é Silva (2011), a saber:

Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença.

(p.83)

Portanto, fixar determinada identidade acaba por reforçar as diferenças, hierarquizam e podem estabelecer diferentes formas de discriminação e tentativas de apagamento histórico dos povos africanos e afro-brasileiros, o chamado Colorismo (termo cunhado pela escritora estadunidense Alice Walker) é uma das dinâmicas racistas, que no sistema capitalista, ganha contornos que abarcam os estereótipos, o estigma social, o machismo, a misoginia, a homofobia, entre tantos outros meios preconceituosos de marcar as pessoas negras e provocar maiores dores físicas, mentais e emocionais.

O Colorismo é um braço do racismo e um ardiloso esquema ideológico de hierarquias sociais. Como afere Alessandra Devulsky (2021), esse sistema “é oriundo da implantação do projeto colonial português quando da invasão do território. Um sistema de valorização que avalia atributos subjetivos e objetivos, materiais e imateriais, segundo um critério fundamentalmente eurocêntrico” (p. 29), e que funciona de acordo com a dinâmica de como somos lidos e lemos socialmente uns aos outros. Dentre os seus mecanismos de leitura, mas também de opressão, está na distinção de pessoas negras por conta da cor de sua pele, quase um esquema de classificação. Esse sistema de discriminações, por sua vez, atua de forma a diferenciar negras e negros pela pigmentação de sua pele e características físicas, onde pessoas de pele mais clara e traços fenotípicos mais finos (leia-se aqui como mais próximos ao perfil branco europeu), teriam mais privilégios e acessos aos espaços e vivências em relação às pessoas de pele mais escura, retinta e de traços onde se evidenciariam sua africanidade.

Enquanto mecanismo classificatório ele até promove “privilégios”, mas nunca retira o fato de que a sociedade sempre irá ler o indivíduo como negro e fazer o possível para deixar evidente essa diferença. Nesse sentido, o Colorismo afeta a vida de pessoas negras até mesmo após a ascensão social, contemplando todos os requisitos e status que a sociedade elitista impõe, pois na relação raça e classe os negros de qualquer forma ainda não serão suficientes para a sua integração enquanto membros no mundo branco hegemônico, está ligada ao colonialismo e, indelevelmente, ao capitalismo” (DEVULSKY, 2021, p.30).Exemplo disso, são os casos de discriminação racial com jogadores brasileiros de grandes clubes de futebol na Europa, onde mesmo estando igualmente ou até superiores financeiramente em relação a outros jogadores brancos, a leitura desses indivíduos continua sendo a mesma: um homem negro.

O colorismo funciona como um sistema de favores, no qual a branquitude permite a presença de sujeitos negros com identificação maior de traços físicos mais próximos do europeu, mas não os eleva ao mesmo patamar dos brancos, ela tolera esses

“intrusos”, nos quais ela pode reconhecer-se em parte, e em cujo ato de imitar ela pode também reconhecer o domínio do seu ideal de humano no outro16. (DJUKIC, 2015)

Para muitos, chega um momento de sua própria trajetória que é a fase de reconhecimento de sua identidade enquanto indivíduo negro e o duro reflexo que ainda não havia sido feito até então sobre a condição de outros tantos homens e mulheres negros e negras ao seu redor que encontram-se presos no sistema de submissão que o racismo se mostra. É importante ressaltar que o processo de descoberta identitária caminha paralelo ao da diferença, não necessariamente são opostos, pelo contrário, há uma estreita dependência e relação destes conceitos e categorias, a saber:

[...] identidade e diferença estão em uma relação de estreita dependência. A forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder essa relação... Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identicidade, as afirmações de identidade não fariam sentido [...] as afirmações sobre diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade [...] As afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações negativas sobre (outras) identidades [...] Em geral, consideramos a diferença como um produto derivado da identidade. (SILVA, 2011. p. 74-75)

A identidade do povo brasileiro é construída de uma forma idealizada por uma norma branca que dificulta a sua noção de pertencimento, iniciando e reiniciando formas discriminatórias para sustentar os privilégios de uns e a inferioridade de tantos outros. Nessa

16 DJOKIC, Aline. Colorismo, o que é, como funciona. Blogueiras Negras. Disponível em

<http://blogueirasnegras.org/colorismo-o-que-e-como-funciona> Acesso em 4 fev. 2022

relação de divisão racial e referência, a chamada Branquitude que segundo Cida Bento17 (2022) está relacionada a um conjunto de práticas culturais que ocorrem de maneira silenciosa e oculta. Há um pacto para a manutenção de privilégios, bem como o reforço a prática de exclusão, concordamos com Bento que:

De fato, a branquitude, em sua essência, diz respeito a um conjunto de práticas culturais que são não nomeadas e não marcadas, ou seja, há silêncio e ocultação em torno dessas práticas culturais. Ruth Frankenberg chama atenção para a branquitude como um posicionamento de vantagens estruturais, de privilégios raciais. É um ponto de vista, um lugar do qual as pessoas brancas olham a si mesmas, aos outros e a sociedade. (BENTO, 2022, p.62)

Por ser um ponto de vista, um lugar onde o outro está, neste caso um outro branco, muito das práticas culturais não nomeadas, acabam por permanecer no campo da

“subjetividade”, e quando são confrontadas em geral acaba por cair na questão de: não foi isso que eu quis dizer, você entendeu errado, e isso acaba em outras situações evocando ao

“vitimismo”.

É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse: as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas. Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o “diferente” ameaçasse o “normal”, o “universal”. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele. (BENTO, 2022, p.18)

A branquitude, portanto, é sempre acionada para que as bases hegemônicas brancas nunca se desequilibrem, pois é nesse processo que:

[...] constrói-se uma apropriação simbólica formulada pelas elites que fortalece a autoestima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais. Essa apropriação acaba legitimando a supremacia econômica, política e social do grupo visto como branco no Brasil. Em contrapartida, constrói-se um imaginário extremamente negativo sobre o negro, que solapa a identidade racial, danifica sua autoestima, culpa-o pela discriminação que sofre e ainda justifica as desigualdades raciais. (GOMES, 2008, p.73)

Este momento de transição de tornar-se negro, tem para negros retintos um significado intenso e muitas vezes doloroso, assim como muitos outros categorizados de mulatos, mestiços e frutos da miscigenação, em um entrelugar dúbio para lidar, e que por um grande projeto de invisibilidade, limitação de acessos e extermínio de suas histórias e raízes, impossibilitam o reconhecimento de si e dos outros.

17 Psicóloga e pesquisadora, Cida Bento é autora do livro “O pacto da branquitude (2022)”, atua também como ativista, onde já se dedicou por anos aos estudos sobre a branquitude, o combate ao racismo, visando melhores condições nas relações de gêneros e das desigualdades raciais principalmente no ambiente corporativo e em organizações do terceiro setor.