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CAPÍTULO II - DAS MÍDIAS TRADICIONAIS AS AS REDES DIGITAIS: CORPOS

2.3 Representações negras nas mídias

2.3.3 Televisão

2.3.3.3 Cinema

O cinema enquanto produto cultural e expressão artística foi precursor das demais mídias como a televisão com suas novelas e séries. Ele carrega características próprias, mas com abordagens diferentes e que ao longo dos últimos 100 anos, pelo menos, tem se modificado e tentado se reinventar e atingir novos públicos, com novas tecnologias, novas histórias, novas narrativas e até mesmo uma diversidade em relação aos seus atores, produtores, diretores, enfim, com todos aqueles envolvidos na produção cinematográfica.

Talvez um dos filmes de maior impacto dos últimos tempos seja “Wakanda”, filme sobre super-heróis vindo dos quadrinhos da Marvel, mas após muitas barreiras chegou ao cinema e com protagonismo totalmente negro e que ao contrário do que muitos poderiam imaginar se tornou um marco não só cultural, mas financeiramente por estourar bilheterias ao redor do mundo. O filme ainda serviu para que outras produções neste mesmo segmento e narrativa pudessem ganhar aportes financeiros e incentivos para que pudessem assim serem produzidos e consumidos por todos os públicos. O cinema como o estadunidense, como vemos falando sempre, foi um cinema que se utilizou de recursos que poderiam fazer sentido na época, mas que ao mesmo tempo colocavam o estereótipo de pessoas, grupos e povos de uma maneira completamente extrema e vexatória, seja ao falar dos nativos americanos, ao falar dos imigrantes latinos, seja ao falar dos negros, e isso sem contar dos antigos filmes que faziam uso de black face, entre outros marcos do cinema internacional nesse sentido.

Entretanto, o cinema americano tem aprendido que falar para outros públicos pode ser

lucrativo e pode ser benéfico justamente para essas pessoas e para esses públicos invisibilizados até então. Exemplo disso temos o filme “Moonlight – Sob a Luz do Luar”

ganhador do Oscar. O filme, inclusive, é uma das boas referências que embasaram o nosso estudo e título por se tratar da história de um homem negro nas três fases da sua vida, com o bullying que sofreu na infância, das descobertas sexuais na adolescência e com a performatividade masculina ao extremo já na fase adulta, mostrando o percurso e a trajetória desse personagem negro que reflete muito a realidade não só dos afro-americanos, mas também de outros tantos negros ao redor do mundo.

No que diz respeito ao cinema nacional, que compreende curtas e longa-metragem27, me parece que temos três grandes momentos de compreensão do que é o cinema no Brasil.

Vou colocar como exemplo três filmes muito conhecidos para começarmos essa discussão e tentarmos entender o impacto que esses filmes tiveram e como eles representam a figura do homem negro e a sua realidade social, cultural, financeira, enfim, em todos os aspectos da sua vida. Partindo da noção que o cinema e os filmes têm geralmente uma duração limitada e para contar uma história é preciso minimizar ou resumir as suas histórias o máximo possível, deixando de fora muitas questões que poderiam ser abordadas e às vezes resumindo pessoas, situações e personagens de formas que possam com os estereótipos colocá-los como únicos representantes de sua raça, de sua classe ou mesmo de seu gênero. O primeiro exemplo que trago foi um dos filmes mais conhecidos nacional e internacionalmente chamado “Cidade de Deus”, filme de 2002, produzido pelo renomado diretor Fernando Meirelles que mostrava de forma praticamente nua e crua a história de um povo negro marginalizado entre aspectos culturais e o lado violento das favelas, algo que marca muito o que é o filme e se tornou um dos mais famosos e que se tem lembrança até hoje como representante do que é o cinema brasileiro que em teoria mostraria a realidade de um Brasil real.

O segundo exemplo é o filme “Carandiru”, do diretor Héctor Babenco, lançado em 2003, que é um filme baseado na obra do médico e escritor Drauzio Varella que narra a história do massacre de prisioneiros no presídio e que foi um marco não só para o caso em si mas para o cinema através da sua linguagem que exprimia, talvez na intenção de mostrar a veracidade do ocorrido, e conseguiu transmitir todo o medo, pânico e repulsa daquele caso real. Neste ponto especificamente agora falando enquanto já um homem negro, me recordo que ainda novo tive acesso ao filme e me recordo de todos esses sentimentos que me apavoraram muito não por compreender de fato a história mas por ver tão explicitamente

27 Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=Ll8EYEygU0o&ab_channel=pretaportefilmes> Acesso 10 jan 2022

cenas de violência, brutalidade, sangue, frieza, situações conflitantes que o filme buscava passar propositalmente, enfim, foi uma experiência que enquanto o homem negro hoje consigo perceber que era um filme que eu não precisaria e provavelmente não deveria ter tido acesso com aquela idade que tinha. A questão do racismo e da violência para uma criança não acontece da mesma forma que para um adulto e isso traz consequências e traumas que talvez fiquem por toda uma vida, afinal, são imagens que ficam nas nossas cabeças e representações que ficam enraizadas daquilo que é certo ou errado e daquilo que você talvez possa estar sendo alvo ou não.

Com alguns anos de diferença temos também um outro marco no cinema nacional, o chamado “Tropa de Elite”, produzido por José Padilha no ano de 2007 e que mostrava basicamente o conflito entre polícia e milícia da cidade do Rio de Janeiro, quase que em um paralelo ou numa metáfora entre o bem e o mal. O curioso em relação a esse filme é que ele na época se tornou uma das maiores bilheterias que o cinema nacional já tinha visto até então e o que chama atenção nisso são as razões pelas quais fizeram tantas pessoas quererem assistir, seja por se identificarem com a realidade, seja pela brutalidade que era mostrada na tela de cinema ou seja pela crítica por trás do filme que se fazia uma realidade e que mostrava como as relações de poder entre os homens eram construídas e como isso se dava e as suas consequências.

Relocalizando a nossa breve análise em relação ao cinema do Brasil em relação a sua produção e representação de homens negros temos bons exemplos que nos fazem pensar em possibilidades positivas concretas e reais de um novo tipo de cinema negro que possa existir e contemplar histórias que vão além da realidade da violência. Me recordo de filmes do gênero como “Ó Paí, Ó”, filme lançado em 2007, que se passa na Bahia e protagonizado por Lázaro Ramos. Aliás, mais recentemente outro filme dele chamado “Medida Provisória” também ganhou bastante visibilidade e críticas positivas dos especialistas que dialogam inclusive com uma noção de cinema disruptivo, além de alguns outros filmes de comédia protagonizados majoritariamente por pessoas negras.

Seguindo nessa questão da mídia e seu papel, temos como uma boa referência audiovisual o curta-metragem “Cores e Botas” (2010), de Juliana Vicente, que nos ajuda na reflexão sobre os padrões impostos pela mídia. No curta em questão, embarcamos na história da pequena Joana, uma garotinha negra, na década de 80, que tinha o sonho de ser uma das assistentes de palco do programa da Xuxa, as conhecidas Paquitas.

A obra aborda bem a visão do preconceito, que não fica nos clichês já conhecidos e repletos de estereótipos. Ao contrário, mostra-nos uma família composta inteiramente por

pessoas negras, de classe média e bem estruturada socialmente. Entretanto, o choque sofrido pela personagem é a rejeição que viveu na competição pela vaga que almejava. Mesmo com capacidade técnica, não possuía o perfil estético de garota branca, loira e de olhos azuis, que eram comuns e esperados para a função exercida na época. Até poderia – e houve – uma assistente de palco negra, porém, não atuando como Paquita.

O primeiro contato de uma criança racializada com o racismo é traumático, porque a natureza da apreensão é social, ou seja, ela não se dá de maneira objetiva, programada ou de modo ritualístico. O momento do primeiro contato com o racismo na vida de um negro ou de uma negra é circunstancial, imprevisível e pode ocorrer mesmo antes que o sujeito racializado se dê conta da discriminação sofrida. Contudo, é só a partir do momento em que introjetamos a ideia de que somos percebidos por brancos de maneira diferente, e isso se transforma em um fato, como código da sociedade, que passamos a nos enxergar como negros. (DEVULSKY, 2021, p.31)

Mas deixo para o final talvez o resumo de tudo isso que venho falando em relação ao cinema como um todo, pois estou falando do filme mineiro “Marte Um”, dirigido e roteirizado por Gabriel Martins, filme lançado no ano de 2022 e que tem características, peculiaridades, construções e significados muito brasileiros e importantes para o cinema nacional nos dias de hoje e para o que ele pode representar para o futuro.

Marte Um é fruto de uma conquista histórica pouco mencionada para o público em geral: trata-se de um filme gestado pelo primeiro edital público de longa-metragem destinado para cineastas negros(as) na história do cinema brasileiro. Essa história começa lá atrás, ainda na década de 70. Primeiro com a atuação artística e política de Zózimo Bulbul, considerado o pai do cinema negro brasileiro. Bulbul, que atuou em filmes do chamado Cinema Novo, resolveu dirigir suas próprias películas por acreditar que havia uma representação caricata de pessoas negras no cinema brasileiro. Assim, abriu as portas no país para uma produção cinematográfica que vem se expandindo sob o termo de “cinema negro” (MUNDO NEGRO, 2022).

E para além do fato de ser um filme produzido por um jovem negro de origem humilde que através de políticas públicas conseguiu se constituir como pessoa, mas construir um produto grandioso como o filme “Marte Um” que inclusive foi cotado para ser um dos representantes brasileiros ao Oscar, maior premiação do cinema mundial. Isso tudo representa que há realmente possibilidades de se desfazer padrões, normas e hegemonias, e digo isso não somente pela figura do homem negro especialmente com os estereótipos e as ilustrações de masculinidade do que ele tem que ser e que o cinema faz. Isso também nos faz pensar que o cinema brasileiro pode caminhar para conquistar novos públicos, novas linguagens e novas formas de contribuir para a cultura de uma forma própria, de uma forma realmente brasileira e que vai muito além do que a indústria dos grandes cinemas e a indústria cinematográfica internacional nos diz como tem que ser feito ou não pois quem tem que dizer se é bom ou ruim no final é o público.