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CAPÍTULO V - MASCULINIDADES NEGRAS E SUAS

5.4 Afetividades

5.4.5 Amizade

5.4.5.1 As redes de amigos para a (re)construção da autoestima

A amizade é uma das principais fontes de manutenção da autoestima de uma pessoa.

Nesse sentido, são importantes as redes de amigos, assim como os espaços e lugares seguros de lazer, entretenimento, conforto, ou seja, ambientes onde as pessoas possam ser elas mesmas, falar sobre os seus assuntos, interagir com outros e construir novas amizades.

Existem lugares que não são necessariamente exclusivos para os homens, mas que são tradicionalmente dominados por eles, como o futebol (de campinho ou estádio) e a barbearia.

Esses dois exemplos muitas vezes podem estar relacionados, principalmente, com as periferias e bairros mais humildes, onde se tem uma maior concentração de pessoas negras, e isso diz muita coisa. São nesses espaços que os homens conseguem explorar sua negritude, sua autoimagem, sua autoestima. A barbearia57, por exemplo, é um dos ambientes onde as masculinidades negras podem se sentir à vontade para conversar sobre suas vidas, fazer o cabelo, fazer a barba, conversar sobre a vida pessoal, sobre assuntos cotidianos, sobre as suas famílias, suas próprias amizades, suas dores, ao mesmo tempo em que estão cuidando da própria aparência e, logo, sua autoestima. É importante frisar que, embora seja um local onde o principal objetivo é cuidar da aparência, nesses espaços ainda se promovem falas machistas, racistas e homofóbicas. Mas é preciso ponderar que, apesar disso, nas barbearias muitos jovens e adultos conseguem construir relações com outros homens, ver surgir novas gerações de masculinidades.

57 Sugiro conferir o episódio “Barba, cabelo e… autoestima! Como a barbearia empodera pretos pelo Brasil”

realizado em parceria pelos portais Yahoo! e Alma Preta. Disponível em:

https://esportes.yahoo.com/noticias/melanina-episodio-barbearia-070058966.html?soc_src=social-sh&soc_trk=tw&tsrc=twtr. Acesso em: 19.ago.22

O futebol58, assim como o exemplo anterior, também é uma das maiores expressões para falar sobre as masculinidades, que está na raiz cultural do Brasil. Entre uma das particularidades que mais podemos nos atentar sobre o futebol é o seu poder de promover, dentro do possível, a conexão (por pelo menos os 90 minutos de jogo) entre diferentes gerações, raças, nacionalidades, idades etc. Mas, assim como observamos anteriormente, também é importante pontuar o lado problemático desses espaços que ainda são majoritariamente ocupados por homens, dando até a impressão que são ambientes exclusivamente héteros e masculinos. Assim como em vários outros esportes, é extremamente preocupante a relação que existe com o racismo, a homofobia e a transfobia ainda nos dias de hoje.

Figura 8: 1º jogador negro a se assumir gay no futebol inglês

Fonte: Twitter (2020)

Trazemos o caso acima para ilustrar a relação entre racismo e homofobia no futebol, algo ainda pouco debatido, mas uma realidade que precisa ser considerada para evitar maiores

58 Sugiro conferir o episódio “Vidas salvas e poder para a autoestima: o futebol de várzea é preto” realizado em parceria pelos portais Yahoo! e Alma Preta. Disponível em: https://br.noticias.yahoo.com/melanina-episodio-futebol-070044759.html?soc_src=social-sh&soc_trk=tw&tsrc=twtr. Acesso em: 19.ago.22

opressões ou atitudes irreversíveis, como o suicídio do jogador Justin Fashanu. Nessa linha, como confere Pacheco (2014),

Nunca é demais enfatizar que as relações homoafetivas na esfera dos esportes são marcadas por um profundo silêncio e demasiada ambiguidade. Sabe-se que elas existem, mas raro são os casos que se tornam públicos. Em especial no futebol os relatos ligados a homoafetividade e homoerotismo são utilizados através da ironia ou, geralmente pelos torcedores, para desqualificar, denegrir e provocar os jogadores e torcedores do time adversário (PACHECO, 2014, p.1)

Dos pontos problemáticos que podemos elencar está o que mais chama atenção, que é o racismo presente nesses ambientes, por mais contraditório que possa parecer. O futebol no Brasil é composto em sua maioria por jogadores negros, muitos deles vindos de comunidades e regiões extremamente marginalizadas, mas que veem no futebol um mecanismo de ascensão social, algo que é completamente válido e até louvável. Aliás, são inúmeros os exemplos de jogadores negros que se tornaram ídolos e símbolos de uma representação positiva para crianças negras por todo o país. Por outro lado, é até difícil compreender inúmeros casos de torcedores e torcidas extremamente racistas, que usam do menor deslize dos jogadores dentro e fora de campo para expor comentários e atitudes completamente criminosas. São incontáveis os casos em que jogadores são chamados de macacos, bananas são jogadas aos atletas nos estádios, simulações no sentido pejorativo desses jogadores negros como gorilas, entre outros tantos crimes ao longo da história do futebol. Aqui faço questão de frisar que se trata de crimes, pois de fato são, e esta é uma questão que o futebol em todo o mundo ainda carece resolver.

As masculinidades, assim como seus espaços “exclusivos” de execução e contemplação, estão mudando em vários sentidos, ainda que a passos muito lentos. Já existem, por exemplo, embora poucos, campeonatos de futebol LGBTQIA+, tornando esses ambientes mais inclusivos e menos machistas, e consoante às novas realidades e demandas sociais, o que inclui a transformação desses espaços em locais mais disponíveis e acolhedores a todos59. Um dos exemplos mais interessantes nesse sentido é o caso do Raphael Henrique Martins, fundador do primeiro time de futebol para homens transexuais.

Foi quando comecei a conhecer o universo trans e comecei a questionar por que, no espaço onde eu trabalhava, não frequentavam homens transexuais. A partir daí, eu e Moira (psicóloga da época) começamos a fazer pesquisas nas redes sociais e, conversando com os meninos, surgiu a demanda de um espaço em que eles se sentissem confortáveis. Sendo assim, veio a ideia do futebol, algo que eu já gostava e que casou com a demanda de alguns meninos de praticar algum esporte. Nesse

59 Sugiro a entrevista realizada pelo Globo Esporte (GE) no videocast “Experiência: "Ser gay num espaço de futebol não era bem-vista", conta William de Lucca” Disponível em: https://ge.globo.com/video/experiencia-ser-gay-num-espaco-de-futebol-nao-era-bem-vista-conta-william-de-lucca-10720067.ghtml. Acesso em 16.nov.22

caso, eu e Moira marcamos um Encontro com Futebol no Parque da Juventude para Homens Transexuais. Assim, no dia 28 de agosto de 2016, nascia os Meninos Bons de Bola (MBB). (MARTINS, 2021, p.122)

Assim como os exemplos do futebol e da barbearia, existem variados espaços importantes e necessários que promovem acolhimento e reflexões sobre a vida. Existem os grupos de homens negros, por exemplo, que em rodas de conversa se articulam presencial e virtualmente para falar das novas formas de ser homem em nossa sociedade. Os coletivos se originam de muitas formas, surgindo dentro das universidades, em rodas de amigos e chegando a compor grupos temáticos dentro de grandes organizações que visam criar espaços de articulação entre os homens e suas realidades. Há grupos diversos buscando contemplar as várias masculinidades, e também comunidades específicas para articular as masculinidades negras, grupos para as paternidades negras, e outros, que se entendem como quilombos virtuais

Sem dúvidas, há muitos outros coletivos negros nesses segmentos. Alguns dos mais populares que tenho conhecimento são o “Projeto Memoh” e o “Papo de Homem”, nas discussões mais gerais sobre a vida dos homens. Há também o “MilTons Masculinidades", grupo do sul do país dedicado especialmente aos homens negros. E ainda existem os grupos sobre as paternidades negras, como o “Coletivo Pais Pretos Presentes”, “Grupo Ciranda dos Pais Pretos” e o “Grupo Paternidade Preta” (organizados no aplicativo WhatsApp).