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2.1 Os letramentos

2.1.3 A escrita e os gêneros textuais

Essa perspectiva acerca dos letramentos, que nos leva a compreender as atividades de escrita no âmbito das práticas sociais em que ocorrem, nos permite atentar, portanto, para os usos efetivos da linguagem, nos diferentes contextos sociais, em diferentes grupos e por diferentes sujeitos. Tal compreensão revela, pois, que os usos da escrita e da linguagem nunca ocorrem no vazio, mas sempre numa situação histórica e social concreta, por meio da interação.

Sob esse ponto de vista, compreendemos a escrita do ponto de vista social, em contraste com uma concepção de cunho tradicional, que considera a leitura e a produção textual como competências e habilidades individuais. Por ser uma prática discursiva, cujas múltiplas funções são inseparáveis dos contextos em que se desenvolve, a escrita varia em razão da heterogeneidade das pessoas e dos grupos sociais e as diversas ações dessas pessoas acontecerem de modos muito variados, prescindindo o uso da escrita (KLEIMAN, 2007).

Pensar, portanto, em uma concepção da escrita como uma prática independente do sujeito, da história, não situada no tempo e no espaço, faz pouco sentido, pois é por meio da prática social que sabemos como agir discursivamente numa situação, ou seja, quando podemos, de fato, fazer uso da escrita. É a partir das necessidades decorrentes da prática social que utilizamos concretamente a escrita, fazendo uso do(s) gênero(s) mais pertinente(s) para uma dada situação. Atento aos usos efetivos da escrita e a importância desses usos ante a contemporaneidade, Marcuschi (2000, p. 17) afirma:

Numa sociedade como a nossa, a escrita, enquanto manifestação formal dos diversos tipos de letramento, se tornou mais do que uma tecnologia. Ela se tornou um bem social indispensável para enfrentar o dia a dia, seja nos centros urbanos ou na zona rural. Nesse sentido, pode ser vista como essencial à própria sobrevivência no mundo moderno. Não por virtudes que lhe são imanentes, mas pela forma como se impôs e a violência com que penetrou nas sociedades modernas e impregnou as culturas de um modo geral. Por isso, friso que ela se tornou indispensável, ou seja, sua prática e avaliação social a elevaram a um status mais alto, chegando a simbolizar educação, desenvolvimento e poder.

Dessa forma, a apropriação da escrita possibilita que as pessoas se insiram e participem das atividades conferidas nos espaços sociais, visto que as diferentes formas de se relacionar com os indivíduos e interagir em sociedade preveem os usos da escrita. É por essa razão que é tão importante pensarmos politicamente em como a escrita pode se tornar um instrumento para transformar as estruturas de poder impostas socialmente.

A escrita, dessa forma, está intimamente atrelada às formas de exercício do poder, já que na sociedade em que vivemos, ela representa uma poderosa ferramenta, com os seus variados usos não sendo plenamente acessados pelo conjunto da população. Como consequência disso, algumas poucas pessoas e/ou grupos, detentores do poder econômico e social, são as que dominam as diferentes configurações da escrita e que mais fazem uso dela.

Em decorrência dessa compreensão de escrita enquanto processo comunicativo que envolve diferentes posições sociais, é natural visualizarmos inúmeras possibilidades de situações em que os letramentos são parte integrante das práticas sociais. É a partir dessa máxima que surge, portanto, a ideia de que os letramentos, delineados por diferentes propósitos, são concretizados por meio de gêneros.

A noção de escrita atrelada à prática social evoca a noção de gênero, já que é por meio dos gêneros que a escrita se revela no meio social. Para Barton e Hamilton (2000, p. 6), por exemplo, o letramento é melhor compreendido como um conjunto de práticas sociais; estas podem ser inferidas de eventos que são mediados por textos escritos, ou seja, por gêneros. Os autores reforçam ainda que os gêneros são uma parte crucial dos eventos de letramento e o estudo do letramento é em parte um estudo de gêneros e como eles são produzidos e utilizados.

Em vista disso, a concepção de gênero adotada é a que evoca ação social, assim como proposta por Bazerman (2011, p. 23), quando afirma que “gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser, são frames para a ação social”. Corroboramos, portanto, Tinoco (2008, p. 87), que defende os gêneros “como enquadres possíveis para cada ação de linguagem, ou seja, a partir dos gêneros, que contemplam a dimensão linguística, a

cognitiva e a pragmática, as pessoas interagem oralmente ou por escrito, na vida social”. Sobre isso, Bazerman (2011, p. 10), acrescenta

[...] gênero dá forma a nossas ações e intenções. É um meio de agência e não pode ser ensinado divorciado da ação e das situações dentro das quais aquelas ações são significativas e motivadoras. Assim como as ações, intenções e situações humanas, uma teoria de gênero precisa ser dinâmica e estar sempre mudando.

Os gêneros constituem e são constituídos pelos diferentes discursos que coexistem no meio social, eles possuem características que os tornam reconhecíveis. Os gêneros possuem determinadas dimensões, formatos, recursos multimodais, estão ancorados em um suporte textual. Os suportes textuais representam o lugar (físico ou virtual) que dá sustentação ao texto, têm formatos específicos, possibilitam a materialização do gênero e, mais importante, suas características também acabam por fazer parte do todo que representa o gênero.

A vida social é permeada por linguagens de múltiplas formas, destinadas a diferentes usos, e os gêneros são um desdobramento desses usos, “nada do que fizermos linguisticamente estará fora de ser feito em algum gênero” (MARCUSCHI, 2002, p. 35). Nesse sentido, “as ações que desempenhamos na sociedade na qual estamos inseridos são respaldadas em diferentes formas de linguagem, [...] que se moldam em gêneros textuais a depender da função social que exercemos em determinada situação, em contexto social específico” (DIONÍSIO, 2007, p. 103). Nas palavras de Oliveira (2010a), na sociedade

São veiculados gêneros diversos que são praticados por diferentes pessoas nas mais diversas atividades sociais, orientadas a partir de propósitos, funções, interesses e necessidades comunicativas específicas, não obstante a compreensão de que alguns textos são considerados canônicos e, por isso, mais legitimados que outros, socialmente (OLIVEIRA, 2010a, p. 329). São os usos que os sujeitos fazem da escrita que constituem os gêneros. Os integrantes de uma determinada comunidade vão estabelecendo, no decorrer de sua história, maneiras específicas de utilizarem a escrita para atingirem os objetivos das práticas sociais que participam. É por essa razão que as práticas sociais de linguagem vão estabelecendo os padrões a serem usados em determinadas situações sociais. Por esse motivo, cada organização social tem suas próprias configurações de textos, criadas a partir de novas realidades e novos conhecimentos (BAZERMAN, 2011).

Compreendemos, pois, que os gêneros organizam a vida social. É a partir deles que são definidos os padrões para as ações de linguagem que realizamos nos diferentes contextos

sociais. Os variados domínios sociais possuem, portanto, ‘modelos’ de comunicação que são flexíveis, mas servem de parâmetro para que possamos atuar no meio social por meio da escrita. É esse reconhecimento acerca de como são e funcionam os gêneros que nos possibilitam, por exemplo, decidir como devemos nos comunicar. Conforme ressalta Bazerman (2011, p. 88), “nós criamos os nossos textos a partir do oceano de textos anteriores que estão à nossa volta e do oceano de linguagem em que vivemos”.

A apropriação dos gêneros vai além do domínio de uma determinada habilidade, ela depende de um posicionamento reflexivo a respeito da escrita e, consequentemente, dos seus usos, tendo em vista que essa prática é constituída pelos indivíduos e estão intimamente conectadas ao contexto ao qual está inserida. Nesse sentido, Kleiman (2007) afirma que quanto mais um indivíduo participa de situações sociais em que a escrita é requerida, mais ele se apropria das particularidades dos gêneros, “pois é seu conhecimento o que permite participar nos eventos de diversas instituições e realizar as atividades próprias dessas instituições com legitimidade” (KLEIMAN, 2007, p. 08). Toda a gama de conhecimentos e experiências, que advém de práticas cotidianas significativas, é levada em consideração nos processos de aprendizagem dos gêneros por que passam os sujeitos.