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As implicações da compreensão de que os usos da escrita estão associados a identidades culturais particulares e de que existem determinados letramentos que são mais poderosos nos levam a atentar para o potencial transformador da escrita. Esse reconhecimento nos conduz a uma visão mais profunda acerca dos tipos de letramento que são e não são dominantes em nossa própria sociedade, fazendo, pois, que compreendamos os letramentos numa perspectiva intercultural, em que fica claro que existe um conjunto de práticas de letramento no meio social, mas que apenas uma pequena parte são consideradas pela agenda oficial das instituições de ensino.

19 Tradução nossa para: “[...] technology, like any social products is never neutral: its creation or adoption by

specific communities is guided by social interpretations about its potential use to fulfill particular social needs. In other words, the direction of technological development and consequent social change is always linked to pre- existing cultural values and ideologies that may also change in new directions once technology adoption transforms the very nature of pre-existing social practices”.

Nesse sentido, reconhecemos que existe uma multiplicidade de letramentos; que o significado e os usos da escrita estão relacionados com contextos culturais específicos e que estão sempre associadas com relações de poder e ideologia: não são simplesmente tecnologias neutras (STREET, 1984). Por essa razão, nessa pesquisa, entendemos que quaisquer formas de leitura e escrita utilizadas no meio social são válidas, pois elas estão associadas a determinadas identidades e expectativas sociais a depender de quais sejam os papéis aos quais os indivíduos têm a desempenhar. Assim, mostramos “[...] às pessoas mais clareza para lerem o mundo, e essa clareza abre a possibilidade de intervenção política” (FREIRE, 2001, p. 36). Os PCN (BRASIL, 2000a, p.16), nesse sentido, ressaltam:

A educação deve estar comprometida com o desenvolvimento total da pessoa [...] para elaborar pensamentos autônomos e críticos e para formular os seus próprios juízos de valor, de modo a poder decidir por si mesmo, frente às diferentes circunstâncias da vida. Supõe ainda exercitar a liberdade de pensamento, discernimento, sentimento e imaginação, para desenvolver os seus talentos e permanecer, tanto quanto possível, dono do seu próprio destino.

Por essa ótica, precisamos abandonar o entendimento de que existem sujeitos letrados e iletrados e, em vez disso, estudar e tentar compreender os diversos usos da escrita nos contextos culturais e ideológicos diversos. Nossa premissa, portanto, é a de atentar, primeiramente, para os usos da escrita de onde as pessoas estão, “compreender os significados e usos culturais das práticas de letramento e traçar programas e campanhas com base nelas em vez de com base em nossas próprias suposições culturais acerca do letramento” (STREET, 2006, p. 484).

Nessa compreensão crítica acerca dos letramentos, “a linguagem não é simplesmente um meio de expressão ou comunicação; é, antes, uma prática a partir da qual os aprendizes conhecem-se a si mesmos, o seu contexto sociocultural e as suas possibilidades para o futuro” (OLIVEIRA, 2010a, p. 336). As práticas de leitura e escrita e seus significados estão, portanto, ancorados em contextos sociais reais. Todas as formas de os indivíduos lidarem com os processos de escrita e leitura são válidas. Nessa perspectiva, os letramentos são interdependentes da realidade social e, assim, há a necessidade de ir além das dicotomias e generalizações sobre a natureza do letramento e partirmos para reflexões que levam em consideração todos os circuitos sociais existentes e não apenas aqueles dominantes. Por esse ângulo

A escola tem a função de promover condições para que os alunos reflitam sobre os conhecimentos construídos ao longo de seu processo de socialização e possam agir sobre (e com) eles, transformando-os, continuamente, nas suas ações, conforme as demandas trazidas pelos espaços sociais em que atuam (BRASIL, 2006, p. 27).

“A teoria crítica está preocupada em entender as relações entre poder e conhecimento e em teorizar o papel da linguagem na produção e reprodução do poder na vida cotidiana, na comunidade e nas instituições” (OLIVEIRA, 2015, p. 24). Dessa forma, no letramento crítico, o propósito maior é formar indivíduos com criticidade, no sentido de serem capazes de analisar, compreender e desafiar as forças opressoras da sociedade “de forma a torná-la mais justa, igualitária e democrática; capaz de lutar contra a ‘cultura do silêncio’ e defender a produção de um conhecimento cultural como um elemento de força no jogo de discursos conflitantes” (OLIVEIRA, 2010a, p. 336). Freire e Macedo, ainda na década de 1990, entendiam que esse era o caminho. Para os autores,

O ato de aprender a ler e escrever deve começar a partir de uma compreensão muito abrangente do ato de ler o mundo, coisas que os seres humanos fazem antes de ler a palavra. Até mesmo historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e, a seguir, escreveram as palavras. Os seres humanos não começaram por nomear A! F! N! Começaram por libertar a mão e apossar-se do mundo. (FREIRE; MACEDO, 1990, p. 15).

Nessa abordagem o letramento é inseparável dos contextos sócio-histórico e ideológico nos quais a leitura e a escrita são utilizadas como elementos cruciais para se entender as práticas letradas de uma determinada situação. Esses contextos abrangem, inclusive, a história de vida dos sujeitos, que são encarados como atores ativos e imprescindíveis e, por isso, sua experiência de vida é um dos fatores que contribuem para a compreensão de uma dada interação. “As práticas de letramento de um indivíduo mudam durante toda a vida, como resultado da mudança de demanda, recursos disponíveis, bem como das possibilidades e seus interesses”20 (BARTON; HAMILTON, 2000, p. 14). Por essa razão, as pessoas usam o letramento para fazerem mudanças em suas vidas e o letramento, por conseguinte, muda a vida das pessoas. Engajado a essa perspectiva, Street (2006) ressalta que

[...] em vez de sublinhar como o letramento afeta as pessoas, queremos mudar de lado e examinar como as pessoas afetam o letramento [...] como os indivíduos numa sociedade recém-letrada, longe de serem passivamente transformados pelo letramento, em vez disso aplicam ativa e criativamente as habilidades de letramento para atender a seus próprios propósitos e necessidades; como eles “se apoderam” do letramento, em vez de qual o “impacto” do letramento sobre eles. Um novo letramento é incorporado às convenções e conceitos acerca da comunicação já existente na cultura receptora – os “sujeitos” não são “tábuas rasas” como tantas

20 Tradução nossa para “The literacy practices an individual engages with change across their lifetime, as a result

campanhas de desenvolvimento da alfabetização parecem supor (STREET, 2006, p. 475)

Concordamos, portanto, com as considerações de Street (2003), quando ressalta que precisamos estar abertos a conhecer os usos da escrita dos alunos, ou seja, os letramentos vernaculares, para poder trabalhar com eles (sem negá-los e/ou marginalizá- los) e para poder instituir outra perspectiva de ensino, relacionada não apenas aos letramentos dominantes. Sobre a questão de levar em conta o contexto do aluno, Gee (2000b), explica que

nós raramente construímos sobre suas experiências e sobre seu real distinto conhecimento do mundo da vida. Na verdade, eles são frequentemente convidados, no processo de serem expostos a domínios especializados, a negar o valor de seus mundos de vida e suas comunidades21 (GEE, 2000b, p. 66).

Essa orientação nos leva a um engajamento no que diz respeito à ampliação da competência comunicativa dos alunos, a partir do trabalho com os diversos gêneros de diferentes domínios sociais, e não apenas de alguns derivados do letramento dominante. Essa perspectiva, por nós consentida, é a que propõe uma abordagem de ensino que engloba a historicidade, ideologia, cultura e tradições em que as atuais práticas de escrita e leitura estão baseadas. Sobre esse entendimento, Kleiman e Borges da Silva, (2008) explicam que agir nessa perspectiva significa adotar um modelo situado das práticas de uso da língua escrita, em que todos os nuances que explicam os usos da modalidade escrita da língua devem ser devidamente considerados para a compreensão do ato comunicativo. Corroborando essa noção, os PCNEM (BRASIL, 2002, p. 52) enfatizam que uma das preocupações do ensino de língua portuguesa.

é a de que o conhecimento acadêmico não desfigure as práticas sociais. Ao sair da escola, o aluno deve ter construído uma sólida competência de analisar criticamente informações e saberes como construções humanas – enraizadas na realidade histórica, não podendo ser dela desvinculados – e não como um universo fragmentado de certezas vazias de ideologia.

Trabalhar nessa acepção é desenvolver ações de aprendizagem em que os letramentos sejam o reflexo das aspirações do grupo a que se destina, oferecendo a ele a possibilidade de usar a escrita de forma funcional, ou seja, “como um instrumento que possibilite alternativas para resolver problemas de âmbito local ou que esteja sintonizado com os desejos e

21 Tradução nossa para “We rarely build on their experiences and on their very real distinctive lifeworld

knowledge. In fact, they are often asked, in the process of being exposed to specialist domains, to deny the value of their lifeworlds and their communities”.

sentimentos daqueles a quem está endereçado” (OLIVEIRA, 2010a, p. 335). Acerca disso, Street (2003), defende

uma nova tradição em considerar a natureza do letramento, focalizando não apenas a aquisição de habilidades, como em abordagens dominantes, mas o que significa pensar o letramento como uma prática social (Street, 1985). Isto implica o reconhecimento de letramentos múltiplos, variando de acordo com o tempo e espaço, mas também contestado nas relações de poder 22 (STREET, 2003, p. 77).

Consideramos os aspectos da vida cotidiana nas ações de aprendizagem da escrita, pois existem agências de letramento, como a família, a igreja e a rua (como lugar de trabalho), que mostram orientações de letramento muito diferentes daquelas da escola (KLEIMAN, 1995b). Assim, são importantes os usos da escrita provenientes dos diferentes domínios sociais - lar, escola e trabalho, valorizando o que o aluno já sabe, afinal, eles já sabem muito sobre a língua materna, se comunicam o tempo todo, de diferentes maneiras. Essa tendência é validada pelas orientações sobe o ensino de língua portuguesa, particularmente no ensino médio, quando defendem que

As práticas de linguagem a serem tomadas no espaço da escola não se restringem à palavra escrita nem se filiam apenas aos padrões socioculturais hegemônicos. Isso significa que o professor deve procurar, também, resgatar do contexto das comunidades em que a escola está inserida as práticas de linguagem e os respectivos textos que melhor representam sua realidade (BRASIL, 2006, p. 28).

Nesse sentido, o conhecimento passa a ser construído por meio de um amplo processo de interação, em que são considerados os tipos de saberes, valores, ideologias, significados, recursos e tecnologias, mobilizados em torno das estratégias que visam o ensino- aprendizagem da escrita. O processo de aprendizagem se faz, portanto, pelo uso reflexivo e significativo da linguagem, dentro e fora do contexto escolar, de modo que os sujeitos saibam fazer uso da leitura e da escrita nas práticas sociais. Assim,

[...] é na interação em diferentes instituições sociais (a família, o grupo de amigos, as comunidades de bairro, as igrejas, a escola, o trabalho, as associações, etc.) que o sujeito aprende e apreende as formas de funcionamento da língua e os modos de manifestação da linguagem; ao fazê-lo, vai construindo seus conhecimentos relativos aos usos da língua e da linguagem em diferentes situações. Também nessas instâncias sociais o sujeito constrói um conjunto de representações sobre o que são os sistemas semióticos, o que são as variações de uso da língua e da linguagem, bem como qual seu valor social (BRASIL, 2006, p. 24).

22 Tradução nossa para “Represents a new tradition in considering the nature of literacy, focusing not so much on

acquisition of skills, as in dominant approaches, but rather on what it means to think of literacy as a social practice (Street, 1985). This entails the recognition of multiple literacies, varying according to time and space, but also contested in relations of power”.

Entendemos, pois, que é importante atrelar o ensino da escrita aos letramentos múltiplos existentes, uma vez que as habilidades construídas a partir dessa dinâmica podem representar ferramentas de empoderamento e inclusão social dos alunos. Dito isso, é pertinente que abordemos as práticas de linguagem na escola de forma que os usos da escrita não se restrinjam aos padrões dominantes de letramento. A nossa compreensão é a de que o contexto da comunidade em que a escola está inserida também pode ser um campo fértil para exploração dos usos da linguagem e dos respectivos textos que melhor representem sua realidade.

Dando sequência a esse raciocínio, defendemos que a abordagem dos letramentos os quais consideram os variados usos da linguagem envolvidos na palavra escrita sejam provenientes dos letramentos dominantes e vernaculares, prevendo, assim, que os alunos sejam expostos ao trabalho com diferentes gêneros, bem como com diferentes formas de interação que pressupõem implicações ideológicas das mais variadas. Dessa forma, o nosso trabalho é orientado para possibilitar a inserção efetiva dos estudantes em diferentes domínios sociais, e para a assunção de uma postura reflexiva acerca da sua condição e da condição de sua comunidade em relação à sociedade da qual faz parte. Desse modo, perceberão que os usos da língua são imprescindíveis para poderem transitar no meio social, segundo as demandas específicas que se deparam.