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2.1 Os letramentos

2.1.5 Os usos contemporâneos da escrita

Compreendemos que as práticas sociais e as variadas experiências com a escrita e a leitura nos ambientes sociais originam novos maneiras de lidar com a escrita e, por conseguinte, novas práticas de letramento. Concordamos com Kleiman (2014, p. 88), quando afirma que “nos espaços e condições da sociedade contemporânea, desenvolvemos, a toda hora, novos e múltiplos letramentos em resposta às demandas de uma cultura dominada pela imagem e a escrita – impressa ou digital — que se caracteriza por rápidas e sucessivas mudanças”.

Por esse ângulo, é coerente a afirmação de que existem letramentos específicos, desse tempo, intimamente associados à contemporaneidade. A escrita faz parte do dia a dia das pessoas e é imprescindível para o convívio social, principalmente em uma sociedade em que a intensa diversificação dos meios de comunicação vem transformando as possibilidades de as pessoas escreverem para interagir, registrar, fornecer e buscar informações. Os sujeitos, então, agem por meio de diversificados domínios sociais (comunitário, familiar, religioso etc), assumem diferentes posições, produzem e recepcionam inúmeros discursos e atuam face às múltiplas e novas exigências sociais e, por conseguinte, transformam os letramentos.

Nessa perspectiva, é inegável o fato de que os usos de leitura e escrita da contemporaneidade serem, em grande parte, mediados pelas novas tecnologias. É por essa razão que é relevante considerarmos que o uso de novas tecnologias ocasiona mudanças nas relações sociais e nas práticas de letramento. As grandes inovações tecnológicas que vêm ocorrendo nas últimas décadas resultam na inclusão de computadores e outros tantos recursos de natureza contemporânea na sociedade, modificando os cenários sociais e cada vez mais inserindo os sujeitos na cultura digital.

Essas considerações nos remetem, portanto, a um conceito que merece ser explicitado: o de letramentos digitais. Nas palavras de Buzato (2006, p. 7),

Letramentos digitais (LDs) são conjuntos de letramentos (práticas sociais) que se apoiam, entrelaçam e apropriam mútua e continuamente por meio de dispositivos digitais para finalidades específicas, tanto em contextos socioculturais geograficamente e temporalmente limitados, quanto naqueles construídos pela interação mediada eletronicamente.

Em face de estar atrelado às inovações da tecnologia, o letramento digital é o retrato da sociedade atual, que requer o domínio da língua escrita em suas mais diversas configurações, integrado às experiências do convívio social. Ele compreende práticas sociais de leitura e escrita, que estão situadas em contextos histórico-culturais. Muito mais que o domínio de uma habilidade técnica, o letramento digital diz respeito às práticas culturais, sociais e históricas da sociedade.

Assim como outras categorias de letramentos, os digitais só podem ser compreendidos em razão de estarem imersos em um contexto social. Sendo assim, eles também podem variar, já que cada grupo socialmente organizado faz uso de diferentes práticas de leitura e escrita. O letramento digital que acontece em uma empresa, por exemplo, pode apresentar características diferentes daquele decorrentes do lar, pois em diferentes ambientes sociais circulam variadas práticas de letramento.

Compreendemos os letramentos digitais, dessa forma, como um conjunto de usos sociais da escrita que se encontram, de alguma forma, em dispositivos de natureza digital. É uma noção que também se ancora no letramento enquanto prática social, mas que envolve outros códigos e tecnologias além da escrita alfabética (KLEIMAN, 2014). São letramentos dependentes da mediação digital (BUZATO, 2009).

Importante ressaltar, contudo, que, nesse texto, os letramentos digitais não são compreendidos em oposição aos letramentos tradicionais. “Trata-se, na verdade, de querer mostrar que está ocorrendo um processo de absorção e síntese de tipos de letramento (alfabético + digital), em que um pressupõe o outro, o anterior servindo como ponto de partida para a instauração do novo” (XAVIER, 2003, p 200). Entendemos, dessa forma, que esses novos letramentos decorrem da convivência entre as múltiplas possibilidades de uso da escrita e da leitura, resultando “entrelaçamentos, ambiguidades, conflitos e refuncionalizações entre as práticas e os repertórios de habilidades dos sujeitos” (BUZATO, 2009, p. 21). Compreendemos os letramentos digitais, pois,

[...] não mais como tipos de letramento contrapostos aos tradicionais, mas como redes complexas e heterogêneas que conectam letramentos (práticas sociais), textos, sujeitos, meios e habilidades que se agenciam, entrelaçam, contestam e modificam mútua e continuamente, por meio, virtude ou influência das TIC (BUZATO, 2009, p. 22).

Assim, consideramos que os contextos contemporâneos e o letramento digital desencadeiam uma multiplicidade e variabilidade de textos. As atuais práticas e eventos de letramento, em razão da variedade de usos das diferentes linguagens, nos remetem a um novo conceito de texto, permeado pela multimodalidade (DIONÍSIO, 2005). Os fenômenos presentes nesses textos incorporaram dois ou mais modos de linguagem (verbal, imagética, sonora). Marcuschi (2004, p. 13) argumenta, inclusive, que um dos motivos de o texto digital parecer atraente é o “fato de reunir num só meio várias formas de expressão, tais como, texto, som e imagem, o que lhe dá maleabilidade para incorporação simultânea de múltiplas semioses, interferindo na natureza dos recursos linguísticos utilizados”.

Os textos são, portanto, híbridos (multimodais) quanto a sua composição, já que são o resultado de diferentes formas de linguagem. Implicam a construção/negociação do(s) sentido(s), a partir do acionamento simultâneo e não linear de outros elementos que não somente o linguístico. Tanto quem escreve quanto quem lê precisa realizar uma série de escolhas, decisões quanto à melhor forma de organização/entendimento do sistema linguístico aliado a outras linguagens, tais como o tipo de letra, figuras, sons, espaçamentos, cores, formas etc. O conjunto de avanços tecnológicos permitiu a integração e hibridização dessas linguagens (BRAGA, 2010).

Os novos usos da escrita, atrelados às novas tecnologias, vêm se tornando cada vez mais comuns, já que nos contextos atuais, os indivíduos sentem a necessidade de utilizá-los para atingir seus objetivos. Assim sendo, é relevante atentarmos para as características dos textos oriundos do letramento digital. Nos ambientes digitais, as configurações textuais são diferentes daquelas típicas da tradição impressa, as imagens, os sons e as animações permitem aos indivíduos vivenciarem situações que estimulam os variados sentidos. Para Kleiman (2014, p. 80),

No letramento digital, o texto ou hipertexto tem uma organização em que a linguagem verbal, a imagem e o som têm um papel importante na significação, exigindo uma leitura na qual o próprio leitor define quais elementos ler, em qual ordem, seja ele altamente proficiente ou iniciante no processo de aquisição da língua escrita.

As tecnologias digitais acabaram introduzindo novos modos de interação e comunicação, coadunando a linguagem verbal ao uso de imagens, de sons e de animações, proporcionando a combinação dessas modalidades. A sociedade vive cada vez mais mediada pelo texto, que, por sua vez, é multimodal e faz com que os espaços online sejam locais importantes de acesso a informações de todos os tipos (BARTON; LEE, 2015). Atenta a essa perspectiva, Oliveira (2010a, p. 332) explica,

[...] a imagem deixa de atuar como um elemento que complementa ou ilustra a palavra para ser um modo estruturante do texto. Dessa forma, ela integra a mensagem, carregando em si mesma um valor semântico. Nesse tipo de gramática textual, o sentido que se atribui ao texto resulta de um ‘design’ mais amplo no qual se incluem caracteres alfabéticos, imagens, cores, texturas, formas em movimento, apresentados todos de modo linear, ou seja, alocados no mesmo espaço textual. As configurações textuais mudaram e trouxeram graus diferentes de complexidade quanto à produção e leitura de textos na contemporaneidade. Esses aspectos apontam para a construção de novos cenários de letramento e novos perfis de leitores e produtores de textos. Os textos não podem ser, nessa perspectiva, estáveis e fixos, pois os sujeitos passam a manuseá-los de maneira diversa e a leitura e a produção de texto deixam de ser lineares (BARTON; LEE, 2015). Isso significa que os sujeitos precisam estar atentos a essas novas possibilidades do chamado letramento digital, pois “se os textos da contemporaneidade mudaram, as competências/capacidades de leitura e produção de textos exigidas para participar de práticas de letramento atuais não podem ser as mesmas” (ROJO, 2013, p.8).

Os indivíduos, para construírem seus conhecimentos e exercerem a cidadania na contemporaneidade, precisam se apossar das habilidades de leitura e produção de textos atreladas à multiplicidade de modos semióticos que constroem os significados, que são formados por linguagens variadas: palavras, imagens, cores, sons e outros elementos que se integram na complementação do sentido. Os chamados multiletramentos levam em consideração a multimodalidade ou multissemiose dos textos contemporâneos, ou seja, “textos compostos de muitas linguagens (ou modos, ou semioses) e que exigem capacidades e práticas de compreensão e produção de cada uma delas [...] para fazer significar” (ROJO, 2012, p. 19)

O conceito de multiletramentos sinaliza para dois tipos específicos de “multiplicidade presentes em nossas sociedades, principalmente as urbanas, na contemporaneidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituições dos textos por meio dos quais ela se informa e se comunica” (ROJO, 2012, p. 13). Nessa perspectiva,

São necessárias novas ferramentas – além das da escrita manual (papel, pena, lápis, caneta, giz e lousa) e impressa (tipografia, imprensa) – de áudio, vídeo, tratamento da imagem, edição e diagramação. São requeridas novas práticas: (a) de produção, nessas e em outras, cada vez mais novas ferramentas; (b) de análise crítica como receptor (ROJO, 2012, p. 21).

Rojo (2012) aponta para características dos multiletramentos que considera importantes:

(a) Eles são interativos, mais que isso, colaborativos; (b) eles fraturam e transgridem as relações de poder estabelecidas, em especial as relações de propriedade (das máquinas, das ferramentas, das ideias, dos textos) [...]; (c) eles são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagens, modos, mídias e culturas) (ROJO, 2012, p. 23).

Tais configurações passam a exigir, portanto, que os indivíduos desenvolvam diferentes habilidades, de acordo com as práticas de letramento e os contextos aos quais estão imersos. Sendo assim, estar apto aos usos contemporâneos da escrita é poder praticar as tecnologias digitais, respondendo ativamente a diferentes propósitos, em diferentes contextos. De posse desse entendimento, Almeida (2005, p. 40) ressalta que

Assim, a partir da busca e da organização de informações oriundas de distintas fontes e tecnologias, valoriza-se a articulação entre novas formas de representação de conhecimentos por meio das mídias e respectivas formas de linguagem que mobilizam pensamentos criativos, sentimentos e representações, contribuindo para a comunicação, a interação entre pessoas e objetos de conhecimento, a aprendizagem e o desenvolvimento de produções.

Consoante a esse entendimento, a leitura e a produção textos podem apresentar configurações que variam na medida em que as semioses são organizadas e reorganizadas dentro dos textos. Os usos da escrita e da leitura garantem a possibilidade de significações livres e plurais e, do outro lado, os interlocutores colocam-se abertos a ampliações e modificações. Por essa razão, é fundamental que os sujeitos entendam que mesmo esses textos contemporâneos resultam de um processo sócio-histórico, decorrem da cibercultura, são típicos desse tempo.

Sobre os textos contemporâneos, Barton e Lee (2015, p.42) explicam: “são situados no tempo e no espaço. São criados e podem ser escritos de muitas maneiras [...] são então utilizados: são lidos, exercem influência, são respondidos”. Os documentos oficiais corroboram esse entendimento, já que preconizam ao sujeito

Conviver, de forma não só crítica, mas também lúdica, com situações de produção e leitura de textos, atualizados em diferentes suportes e sistemas de linguagem – escrito, oral, imagético, digital, etc. –, de modo que conheça – use e compreenda – a multiplicidade de linguagens que ambientam as práticas de letramento multissemiótico em emergência em nossa sociedade, geradas nas (e pelas) diferentes esferas das atividades sociais – literária, científica, publicitária, religiosa, jurídica, burocrática, cultural, política, econômica, midiática, esportiva, etc. (BRASIL, 2006, p. 32)

Além disso, para agir no mundo com autonomia os sujeitos precisam compreender as múltiplas possibilidades de produção de texto na contemporaneidade. Não há como ter criticidade sem, inicialmente, dominar as diferentes configurações textuais presentes nos contextos sociais, conhecer a linguagem, programações, condições de produção e de recepção e a diversidade de situações que exigem um posicionamento crítico e reflexivo do indivíduo para fazer suas escolhas e definir suas prioridades.

Compreendemos, então, que os sujeitos precisam adentrar no campo do letramento digital para dominar as ferramentas tidas como necessárias para transitar no meio social contemporâneo, sentirem-se integrados, circunscritos pelo sentimento de pertencimento. A inclusão e a participação plena dos sujeitos nos diversos ambientes sociais, inclusive daqueles permeados pelos usos da escrita atrelados às novas tecnologias só acontece, no entanto, quando esses indivíduos estiverem cientes do que podem fazer com os novos conhecimentos. Apenas ter acesso aos recursos de ordem tecnológica, fazendo uso deles, não é suficiente. No dizer dos PCN (BRASIL, 2006, P. 93),

[...] um projeto de inclusão poderá aumentar o sentimento de exclusão se considerar o usuário apenas como um consumidor dessa linguagem em vez de lhe abrir oportunidade de compreensão do seu papel também de produtor dessa linguagem. A visão limitadora de “alfabetização” (a que considera o usuário apenas como consumidor da linguagem) deve-se a uma compreensão antiga, ou seja, àquela que vê a linguagem fora de seu contexto significativo. De maneira descontextualizada, a linguagem é trabalhada como pura estrutura lingüística, fora de sua prática social. Porém, é nessa prática social que se encontram as ideologias, as relações de poder, as entrelinhas, as ironias.

Se na vida em sociedade as ações das pessoas são permeadas pela tecnologia, é porque essa é uma nova realidade. Os letramentos advindos dos meios digitais podem ter se expandido tanto em virtude do acesso, do baixo custo e das fontes da mais variada ordem e origem. Outrossim, “o aumento e a diminuição de custos envolvidos no acesso à informação e à interação a distância viabilizados pela internet ampliam, ou mesmo criam, novos espaços para a participação social, os quais carregam em si um potencial transformador (BRAGA, 2010, p. 374). Essas questões só reforçam, no entanto, a perspectiva de os indivíduos desenvolverem estratégias para criticar e avaliar as informações que recebem, pois essa multiplicidade de informações pode revelar fatos e versões pouco ou nada fundamentados.

Os usos multimodais da escrita, com seus hipertextos, desenhos, figuras, luzes, sons etc., a princípio, podem parecer completos, nos oferecem maior liberdade interativa, mas sob esse emaranhado de significados perceptíveis aos diferentes sentidos, estão subjacentes comportamentos, culturas, crenças, conceitos e ideologias, que precisam ser criticamente

compreendidos a fim de que possamos filtrar as informações para, assim, concordar ou discordar delas. Nesse sentido, Rojo (2012) nos lembra que o sujeito crítico deve compreender que os textos não são neutros, já que esses transmitem valores e ideologias. Sobre essa questão, Braga (2007a, p. 80) ressalta

[...] a tecnologia, como qualquer produto social, nunca é neutra: sua criação ou adoção por comunidades específicas é guiada por interpretações sociais sobre seu uso potencial para atender a necessidades sociais específicas. Em outras palavras, a direção do desenvolvimento tecnológico e a conseqüente mudança social estão sempre ligadas a valores e ideologias culturais preexistentes que também podem mudar em novas direções, uma vez que a adoção da tecnologia transforma a própria natureza das práticas sociais pré-existentes19.

Na contemporaneidade, o letramento digital tem propagado gêneros e práticas de letramento específicos. Nesse sentido, observamos a leitura e a produção textual não mais em ordem sequencial, linear, e também muitas categorias de gêneros perpassados pela multimodalidade, ancorados em suportes textuais digitais. Tantas mudanças podem desencadear atratividade perante os sujeitos, no entanto é relevante que busquemos desenvolver um olhar crítico para refletir sobre as novidades, de modo que não fiquemos passivamente a mercê daquilo que nos é apresentado como moderno.

2.2 A PERSPECTIVA CRÍTICA DOS LETRAMENTOS E SUAS ORIENTAÇÕES