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“A vida é uma leitura! Ler é lutar! Leitura é libertação. [...] Somos operários, artistas, homens de letras, que nada temos que nada somos, visto como os nossos direitos se acham sequestrados nas mãos de meia dúzia de felizes, constituídos nossos depositários, de cujas iniquidades a lei é cúmplice” (Tobias Barreto)

Uma das etapas da metodologia de análise de gêneros textuais proposta por Bhatia (1993) diz respeito à “definição do escrevente do texto”. Dependendo do corpus de análise escolhido, esta definição ou esta identidade do escrevente pode referir-se tanto a referências individuais, específicas de um determinado autor, quanto pode estar relacionada com a função ou a posição ocupada pelo escrevente em determinado contexto ou instituição. Ao pensar na função ocupada pelos autores vinculados à Escola do Recife, uma expressão vem imediatamente à mente: o conceito de Homem de Letras. Aliás, é oportuno registrar que esta expressão foi a primeira “inquietação” que moveu esta pesquisa. A partir deste indício, iniciou-se a construção de um projeto que permitisse investigar as peculiaridades deste “tipo” do Século XIX e suas relações com o domínio jurídico.

Não é por acaso que no prólogo de seu livro Estudos de direito e Economia

Política, Clóvis Beviláqua (1902, p. XII) observa:

Porém, pondo de parte a poesia, em que as producções de origem brazileira se têm mostrado não somente numerosas, mas tambem com umas certas irradiações de originalidade e frescor; pondo de parte o jornalismo político, que tem desorientado muitas intelligencias sadias e alimentado cardumes de nullidades ambiciosas e trefegas; pondo de parte, finalmente, o romance, é, por certo, o direito, sobretudo em suas applicações praticas, o assumpto que mais nos tem consumido papel e tinta.

Não é por acaso que no prólogo do livro de Beviláqua o direito esteja disputando “tinta e papel” com a literatura e o jornalismo. Isto ocorre porque o “homem do direito” ou o “homem de leis” não estava completamente entregue ou restrito ao espaço de sua

atividade específica. Muitas vezes, antes de ser um “homem do direito”- ou mesmo sendo um “homem de leis” - o estudioso ou o pensador do Século XIX que se dedicava à atividade jurídica era um “homem de letras”. Os indivíduos que compunham o grupo do Recife eram “homens de letras”, como destaca Tobias Barreto na citação que serve de epígrafe a este item. E qual seria o significado decorrente de uma escrita ensaística praticada por “homens de letras” no Brasil do Séc. XIX?

A expressão “Homem de Letras” será, inicialmente, orientada pelo ponto de vista do autor inglês Thomas Carlyle. Em sua obra On Heroes, hero-worship and the

heroic in history (1840-41), Carlyle enaltece (transformando-o mesmo em “herói”) a

função daquele que se conhece, contemporaneamente, como “intelectual”13.

Para Carlyle (1924, p.138), “o herói como o homem de letras” era um fenômeno singular dos “novos tempos”:

Hero- Gods, Prophets, Poets, Priests are forms of heroism that belongs to the old ages, make their appearance in the remotest times; some of them have ceased to be possible long since, and cannot any more show themselves in this world. The hero as Men of Letters, again, of which class we are to speak to-day, is altogether a product of these new ages; and so long as the wondrous art of writing, or ready-writing which we can call printing, subsists, he may be expected to continue, as one of the main forms of Heroism for all future ages.14

Dois aspectos chamam a atenção nos parágrafos anteriores: o “homem de letras” funcionava como uma espécie de antecessor do “intelectual” e o “homem de letras” era um indivíduo dedicado à “arte de escrever” (arte que, na visão de Carlyle, possuía uma função nobre e heróica). Diferente do que ocorre com o atual termo “intelectual”, que sugere uma ênfase no “pensar” (intelectual é o indivíduo que se dedica ao trabalho intelectual, ao trabalho com a mente, com a razão), o “homem de letras” sugere um

13

“Para T. W. Heyck, esse (“homem de letras”) é o termo mais aproximado de que dispomos, no século XIX, para a categoria significativamente ausente de ‘intelectual’, que, em sentido moderno, só passaria a ser de uso corrente na década de 1870.” (EAGLETON, 1991, p. 37). E ainda: “Na França e na Inglaterra, o próprio termo ‘intelectual’ só se firmou nos anos 1870.” (ALONSO, 2002, p. 30)

14

“Deuses-Heróis, Profetas, Poetas, Religiosos são formas de Heroísmo que pertencem à Antiguidade, destacando-se no passado; alguns deles perderam a viabilidade desde então e não podem mais se mostrar neste mundo. O herói como homem de letras, categoria a que nos referimos a partir de agora, é um produto dos novos tempos e enquanto a arte da escrita e a imprensa existirem, ele vai continuar, como uma das principais formas de heroísmo para o futuro” (CARLYLE, [1841], 1924, p.138) (Tradução livre).

compromisso com a forma pela qual o pensamento é exposto ou representado: essa forma é a escrita.

Em um artigo intitulado Os tempos modernos, Jean-Paul Sartre (1999, pp. 128- 9) tece um interessante comentário sobre a categoria dos “homens de letras” e a peculiaridade de seu ofício:

[...] Outrora, o poeta se considerava profeta, era honorável; em seguida ele se tornou pária e maldito. Isso ainda era admissível. Mas hoje ele caiu na categoria dos especialistas e não é sem certo mal-estar que inscreve, nos registros de hotel, o ofício de ‘homem de letras’, ao lado de seu nome. ‘Homem de letras’: esta associação de palavras, em si, tem a capacidade de tirar o gosto por escrever. [...] O homem de letras escreve, enquanto os outros brigam. [...] Diante dos burgueses, que o lêem, tem a consciência de sua dignidade; mas diante dos operários, que não o lêem, sofre de um complexo de inferioridade, [...]

Apesar de refletir a cobrança por uma atividade intelectual “engajada”, a observação de Sartre é particularmente interessante para o contexto analisado (a “Escola do Recife”) porque ela recupera o conceito de “homem de letras” relacionando-o com o mundo ou o espaço do “trabalho”, indicando que aquela “associação específica de palavras” (praticada em meados do Séc. XIX) projetou conseqüências importantes para o futuro (“O homem de letras escreve, enquanto os outros brigam”).

A partir de determinado momento histórico (notadamente, a partir do aperfeiçoamento dos serviços da imprensa, conforme registrado por Carlyle), a categoria “homem de letras” passou a ocupar um lugar no mundo “prático” (do trabalho), representando um conjunto de atividades unidas sob a ação comum da “escrita”. E esta “escrita” começava a definir-se como “produto”, veiculado e vendido, predominantemente, em jornais. Observe-se que a “escrita” representava a materialidade do produto, no entanto o “pensamento” - que regia a escrita e era indissociável dela – acabava por compor aquilo que estava sendo posto à venda, daí as contradições inerentes à atividade do “homem de letras” destacadas pelo filósofo francês: o pensar estaria comprometido com a ação ou com a escrita? E a escrita do homem de letras estaria comprometida com o pensar ou com a produção?

Em um mundo que ainda não absorvia, especificamente, cada uma das atividades englobadas pela multifacetada função do “homem de letras” - através de um

mercado editorial aquecido, da expansão das universidades ou da dedicação exclusiva à atividade jornalística – não era de se estranhar que aqueles indivíduos precisassem se desdobrar em variedades de escrita para tornar viável o exercício daquela “profissão”. Sem dúvida, estas circunstâncias exigiam um compromisso com a “produção”. Como adverte Eagleton (1991, p. 37), “[...] a necessidade material força-o [ao “homem de letras”] a ser um bricoleur, um diletante, um homem dos sete instrumentos, envolvido a fundo, para sobreviver, exatamente com o mundo literário comercial do qual Carlyle se afastou com desprezo.”

Carlyle se afastava com desprezo daquele “mundo literário comercial” porque em suas quimeras o “homem de letras” deveria representar um herói dos novos tempos e, obviamente, um herói não poderia render-se a nada, muito menos às volúveis exigências do mercado. O “herói como homem de letras” atribuía à imprensa uma nobre função de defesa da democracia:

Em outras palavras, todo o ensaio representa uma constrangida e nostálgica reinvenção da clássica esfera pública burguesa, enaltecendo o poder que o discurso tem de influenciar a vida política e elevando os repórteres parlamentares à condição de profetas, pastores e reis. (EAGLETON, 1991, p. 38)

Carlyle tinha razão sobre o poder de influência da imprensa, mas não havia como isolá-la dos “tempos modernos”, ou seja, não havia como pensar em imprensa sem “maculá-la” com a produção, posto que a imprensa e a produção estavam (e continuam) visceralmente ligadas. Esta é a razão de Eagleton (1991, p. 37) referir-se ao “homem de letras” como “[...] uma categoria que reunia, não sem constrangimento, o sábio e o crítico de aluguel.”

A função do homem de letras encontrava-se, portanto, na metade do caminho entre “o sábio e o crítico de aluguel”. A informação começava a se multiplicar rapidamente e cabia ao “sábio” reconhecer aquelas “novas ideias”, digeri-las e divulgá- las a um público leitor interessado, mas não especializado. Desta maneira, cabia ao “crítico de aluguel” adaptar aquela mensagem, tornando-a acessível e “pronta para o consumo”. É importante destacar que este processo de divulgação de informações (ou de “novas ideias”) revestia-se de um relevante valor didático. Neste sentido, afirma Eagleton (1991, pp. 40-1):

Sua função [do homem de letras] é instruir, consolidar e confortar – proporcionar a um público leitor perturbado e ideologicamente desorientado resumos de popularização do pensamento contemporâneo, [...]. Ou seja, a relação que ele mantém com seu público deve ser a de sujeito para objeto, e também, de sujeito para sujeito; uma inquieta responsividade frente à opinião pública deve ter lugar dentro de uma postura veladamente propagandística em relação ao público leitor, processando o conhecimento no ato mesmo de provê-lo.

A situação do homem de letras no Brasil do Séc. XIX (leia-se, a situação dos homens de letras vinculados à Escola do Recife) correspondia – à sua maneira - às características gerais até aqui delineadas: o crescimento da imprensa; a tentativa de profissionalização do trabalho intelectual; a “poligrafia”, entendida como uma variedade de práticas de escrita, capazes de atender as demandas jornalísticas e do mercado editorial; o alcance didático dos textos produzidos.

Não obstante isto, cumpre destacar algumas peculiaridades do homem de letras nacional: se na Europa, as “necessidades materiais” empurravam o homem de letras para uma escrita “pulverizada”; no Brasil, as circunstâncias empurravam estes indivíduos para múltiplas atuações profissionais, muitas vezes paralelas, porém, não especificamente vinculadas à escrita. Ou seja, mesmo que o domínio das Letras fosse amplo, no Brasil, o homem de letras não poderia “fragmentar-se” com exclusividade, não poderia pertencer exclusivamente ao múltiplo espaço “das letras”: era necessário combinar esta atividade com as profissões liberais, o magistério ou o emprego público. Daí a disputa de “tinta e papel” entre direito, jornalismo e literatura, sinalizada por Beviláqua no início deste item, afinal de contas a formação jurídica era predominante no contexto analisado.

Esta nova divisão, colocada por circunstâncias específicas ao homem de letras nacional, representava um enorme desafio, implicando um extenuante trabalho físico (dedicação a múltiplas atividades) e psíquico (muitas vezes, a fragmentação entre a vocação e a profissão), no entanto, este labirinto de ações praticadas por estes indivíduos possuía uma conseqüência fundamental: Sartre (1999, p. 128) afirmava que os “homens de letras escrevem, enquanto os outros brigam”; no Brasil, os homens de letras escreviam, mas – como não estavam restritos ao domínio das letras - também brigavam, ou melhor, também “atuavam” através da sua escrita. Os homens de letras nacionais não estavam (e não podiam estar) circunscritos aos seus gabinetes ou suas

“torres de marfim”; eles faziam de sua escrita uma importante conexão com o mundo que, de fato, experimentavam, recuperando, de uma certa maneira, o ideal do “herói como homem de letras” preconizado por Carlyle.

Neste sentido e neste contexto, cada ensaio carregaria, sim, uma potencial “(re)invenção da esfera pública”, como sugeria Eagleton (1991, p.38). Analisando as personagens dos bacharéis na literatura nacional do Século XIX, Eliane Junqueira (1998, p. 89) afirma:

A sociedade brasileira da época com sua exígua esfera pública certamente não poderia oferecer aos bacharéis nem um cotidiano de grandes causas, nem a figura de um herói social, como o mito romântico do advogado norte americano, cujo solo de origem é a sociedade de iguais na qual os conflitos têm a forma direito como regra de jogo [...]

Em um movimento intelectual que se esforçava por representar uma reação à estética romântica, não seria absurdo pensar que o grupo do Recife tentava recriar alguma forma de heroísmo com aquilo que o seu contexto oferecia: uma oficina de “tipos” sobrevoada por um “bando de ideias novas”.

2.4

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