• Nenhum resultado encontrado

Dividir a discussão sobre jornalismo e literatura no Brasil do Séc. XIX em dois itens distintos possui o inconveniente de produzir algumas repetições, uma vez que as atividades estavam intimamente relacionadas. No entanto, para acentuar determinadas nuances de uma e de outra atividade, faz-se necessário enfrentar este risco. Desta maneira, retoma-se o ponto de partida da chegada da imprensa no Brasil, circunstância que trouxe importantes repercussões para a literatura. Ao contrário das gerações anteriores (Séculos XVII e XVIII), que conviveram com a censura e com uma concepção “herética” do livro, a geração oitocentista passava a vivenciar circunstâncias históricas que lhe permitia acessar, com maior facilidade, estes instrumentos de conhecimento. Já no final do Séc. XVIII, tem-se notícia do aparecimento de algumas bibliotecas particulares; os estudantes traziam os livros, clandestinamente, da Europa e começavam a movimentar uma incipiente circulação de textos (SODRÉ, 2011, p. 30; BESSONI, 2008, p. 484-7), mas foi, sem dúvidas, o estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro que representou um marco para o domínio literário nacional.

De acordo com Antonio Candido (2000, p. 215), o período que corresponde à chegada da família real pode ser reconhecido como a “Época das Luzes” brasileira:

Imprensa, periódicos, escolas superiores, debate intelectual, grandes obras públicas, contato livre com o mundo (numa palavra: a promoção das luzes) assinalam o reinado americano de D. João VI, obrigado a criar na colônia pontos de apoio para o funcionamento das instituições. Foi a nossa época das Luzes, acarretando algumas conseqüências importantes para o desenvolvimento da cultura intelectual e artística, da literatura em particular.

Os Séculos XVII e XVIII foram períodos históricos que abrigaram importantes manifestações literárias nacionais, representadas por autores como Gregório de Matos Guerra e Padre Antônio Vieira, no Barroco e Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, no Arcadismo. A diferença que parece saltar aos olhos a partir do Séc. XIX é o papel atribuído à literatura, em um sentido amplo; não se trata “apenas” de uma manifestação artística, mas o “fazer literário” passa a representar um requisito intelectual que serve de referência a outras atividades. No item relacionado ao “conceito

de Homem de Letras” chamou-se a atenção para o fato do “homem de letras” nacional possuir a peculiaridade de não apenas “escrever”, como reclamava Sartre (1999, p. 128), mas de “atuar”, de forma prática, em seu contexto e as origens desta atitude podem estar enraizadas nas circunstâncias históricas ora analisadas.

A exigência de reunir talentos - ou, ao menos, competências - para a consolidação de novas instituições nacionais, somada à escassez de atributos específicos naquele contexto histórico, fez recair sobre o papel do erudito, do literato indícios de “aptidão intelectual” necessários ao exercício das novas funções e serviços que surgiam. Esta conjunção de fatores – que, inusitadamente, ligou a atividade literária às atividades concretas e essenciais para a vida prática – fez com que o papel do escritor fosse alçado a outros patamares:

A raridade e dificuldade de instrução, a escassez de livros, o destaque dado bruscamente aos intelectuais (pela necessidade de recrutar entre eles funcionários, administradores, pregadores, oradores, professores, publicistas) deram-lhes um relevo inesperado. Daí, a sua tendência, pelo século afora, a continuar ligado às funções de caráter público, não apenas como forma de remuneração, mas como critério de prestígio. Acrescentemos a esses fatores a tendência associativa que vinculava os intelectuais uns aos outros, fechando-os no sistema de solidariedade e reconhecimento mútuo das sociedades político- culturais, conferindo-lhes um timbre de exceção. (CANDIDO, 2000, p. 222)

Não é por acaso que o mesmo Antonio Candido (2000, p. 226) adverte para o fato de que a espécie de literatura que se destaca neste período (até a década de 40 do Séc. XIX) é uma literatura veiculada por “gêneros públicos”, ou seja, “a oratória, o jornalismo e o ensaio político- social”. Era como se o exercício do “fazer literário” precisasse se mostrar atuante diante dos novos papéis reservados aos escritores. É interessante notar que, ao contrário do entendimento de Sodré (2011, p. 276), esta perspectiva de análise sugere uma fusão entre o domínio jornalístico da primeira fase do periodismo nacional (analisado no item anterior) e o domínio literário relacionado às primeiras quatro décadas dos Oitocentos.

Quando uma relativa estabilidade política, econômica e social se estabelece, os “gêneros públicos” começam a perder espaço, enquanto gêneros literários passam a ser privilegiados (poemas, romances, folhetins, crítica literária), impondo-se, inclusive, no

domínio jornalístico, conforme as observações feitas no item anterior (segunda fase do periodismo nacional). É o momento de efervescência do movimento Romântico.

Antes de começar a tratar das expressões do romantismo no Brasil, é importante lembrar que a doutrina ou o movimento Romântico que, geralmente, se relaciona com uma manifestação literária ou como uma referência de contraposição ao classicismo, representa, na realidade, um espaço de discussão que ultrapassa os limites mais restritos da arte ou da estética. O Romantismo repercutiu sobre a história, sobre a filosofia, sobre a política, sobre a religião, sobre a linguagem e, em decorrência destas repercussões, o movimento romântico trouxe importantes conseqüências às sociedades por ele afetadas. O que se costuma chamar de Romantismo representou uma espécie de “revolução cultural” (MOISÉS, 2004, p. 407), cujas origens estavam marcadas por duas grandes revoluções que marcaram a história da humanidade: a Revolução Industrial (que começa a projetar-se, na Europa, a partir da segunda metade do Séc. XVIII, ressaltando as contradições decorrentes dos relevantes avanços técnicos em contraposição às precárias condições de trabalho dos operários) e a Revolução Francesa de 1789 (representando o declínio dos Estados monárquicos absolutistas e a ascensão das formas governamentais republicanas) (FALBEL, 2002, pp. 23-34). Desta maneira, o Romantismo está, inicialmente, relacionado às dicotomias “democracia x oligarquia” e “burguesia x aristocracia”.

A natureza “revolucionária” confere ao Romantismo um traço estrutural de contestação em relação aos valores que lhe precederam. Sendo assim, o “Século das Luzes” que o antecede representa o referente imediato que deve ser questionado. Ora, se o Iluminismo representava a prioridade da Razão, o Romantismo chegava para desestabilizar este pressuposto através do Sentimento; se a humanidade estava objetivamente condicionada à Razão, que representava os limites do conhecimento do homem sobre a natureza e sobre si mesmo, era necessário “libertar-se” destes moldes rigorosos sob a inspiração do Sentimento. Esta mudança de postura e de percepção desencadeou uma cadeia de conseqüências comprometidas e enraizadas em um valor fundamental para o movimento em apreço: a Liberdade.

O desejo de liberdade que se encontrava na base do trinômio da Revolução Francesa irradiou-se pelos ideais românticos potencializando no indivíduo a vontade de encontrar-se com sua natureza íntima e transcendê-la, projetando-a sobre o ambiente que o cercava. Desta maneira, ao mesmo tempo que o Romantismo caracteriza-se por

um “individualismo egocêntrico” (NUNES, 2002, p. 58), ele também transfere (ou transplanta) o seu olhar para a Natureza:

Ponto cêntrico da realidade e passagem para o universo [...], o Eu, assim configurado, assegurou um primado ontológico à interioridade, à vida interior, que foi sinônimo de profundeza, espiritualidade, elevação e

liberdade, [...]. O Eu transcende a Natureza física – o exterior mecânico

disperso dos fenômenos – mas para encontrar-se, dada a essência absoluta que o Romantismo germânico da primeira fase lhe atribuiu, ao nível orgânico das coisas, com o entendimento interno da Natureza viva e animada. (NUNES, 2002, p. 58)

Esta representação da Natureza como uma espécie de continuação ou desdobramento do Eu gerou outras duas características estruturais do movimento Romântico: o nacionalismo (ressaltando os elementos peculiares e originais que identificam uma nação ou um “Eu” nacional) e a religiosidade (voltada para uma reabilitação da Natureza como fonte de vida espiritual e para um estreitamento de relações com a Igreja Católica). Não obstante isto, vale ressaltar que a Arte é a legítima forma de expressão deste Eu identificado com a Natureza, posto que “[...] é na obra de arte que o Eu alcança a intuição de si mesmo como Absoluto, [...]” (NUNES, 2002, p. 61). Esta autoridade concedida à Arte fez com que o Romantismo fosse reconhecido, prioritariamente, como um movimento artístico, mas é importante destacar que a influência de suas ideias interferiram em domínios muito mais amplos.

A oposição aos valores do Classicismo desvia o olhar da Antiguidade e da cultura Greco- romana, transferindo a atenção para a Idade Média (atenção que reforça o interesse pela Igreja Católica) e para as culturas orientais. Este olhar voltado para o Oriente redescobre o Sânscrito e a cultura hindu, promovendo condições favoráveis para o surgimento de uma Linguística Histórica, trazendo contribuições fundamentais para as ciências da linguagem (ELIA, 2002, p. 113). Por sua vez, o questionamento das ideias iluministas também promove uma nova concepção da História, ressaltando o problema de sua interpretação. Segundo Guinsburg (2002, pp. 14-5):

[...], o Romantismo é um fato histórico e, mais do que isso, é o fato histórico que assinala, na história da consciência humana, a relevância da consciência histórica. É, pois, uma forma de pensar que pensou e se pensou historicamente. [...] [No Romantismo] O discurso histórico sofre mudança

revolucionária. Deixa de ser meramente descritivo e repetitivo, para se tornar basicamente tanto interpretativo quanto formativo, genético. É a história que produz a civilização. Mas não a História, e sim as histórias.

De fato, o reconhecimento de um discurso do Povo (sob inspiração da Revolução Francesa e em oposição à univocidade do discurso aristocrático), os fatores que levaram a uma nova percepção do “nacional” e o enaltecimento da Arte como forma legítima de expressão do Eu multiplicaram as possibilidades de atuação da História, compreendendo o passado sob uma perspectiva muito mais “cultural” do que a forma praticada anteriormente.

No Brasil, o Romantismo é introduzido por um viés, preponderantemente, literário, mas as características do movimento ao lado das circunstâncias históricas que estruturavam o país naquele momento, fizeram com que as discussões desencadeadas pela nova tendência alcançassem limites mais amplos. De um lado, o nacionalismo romântico; de outro, um país que, aos poucos, consolidava sua situação de independência. A reunião destes dois fatores trouxe condições propícias para a criação de uma teoria da literatura brasileira, que destacava como um de seus principais problemas a identificação de uma literatura autenticamente nacional. Este preocupação em demonstrar uma autonomia cultural em relação à antiga metrópole promoveu uma significativa intenção de pensar o Brasil.

Um dos primeiros indícios do romantismo no Brasil surgiu da obra de um autor francês, Ferdinand Denis, que ensaiou os passos de uma teoria e de uma história da literatura nacional. Segundo Candido (2004, p. 19),

[...] ele [Denis] fundou a teoria e a história da nossa literatura, baseado no princípio, então moderno, que um país com fisionomia geográfica, étnica, social e histórica definida deveria necessariamente ter a sua literatura peculiar, porque esta se relaciona com a natureza e a sociedade de cada lugar. Os brasileiros deveriam portanto concentrar-se na descrição da sua natureza e costumes, dando realce ao índio, o habitante primitivo e por isso mais autêntico.

Além do propósito de “redescobrir” e de desvendar o Brasil, o pensamento teórico sobre uma literatura nacional provocou mais uma conseqüência fundamental: o surgimento de uma crítica literária. A crítica nasce em decorrência da teoria que lhe

fornece as ferramentas necessárias para discutir as ideias e as obras literárias colocadas em circulação. Desta maneira, a crítica romântica nacional aparece marcada pela intenção de revelar o significado de uma literatura brasileira, representando um dos principais gêneros pertencentes ao domínio literário no período em apreço. Note-se que este relevo patriótico não era contrário à tradição, ao contrário disto algumas atividades ligadas ao movimento romântico no Brasil (como a criação do Instituto Histórico em 1839) foram apoiadas pelo Imperador Pedro II.

É importante ressaltar que aquilo que Nelson Werneck Sodré (2004, p. 401) chamará de “reação anti-romântica” no Brasil será expressa, destacadamente, por um viés “crítico contestatório” (contrário às tradições) e terá nos autores da denominada Escola do Recife (principalmente Sílvio Romero) seus representantes mais incisivos. Segundo Candido (2004, p. 76),

Para ele [Sílvio Romero], o Romantismo teria sido positivo por um lado, mas sobretudo negativo, por outro. Negativos foram o sentimento religioso e a filosofia espiritualista, contrários ambos ao espírito moderno. Foi negativa, ainda, a exaltação pueril da pátria, encarada como algo portentoso a partir do cenário natural, o que confunde a retidão do juízo. Mas negativo foi sobretudo o indianismo. [...] Do lado positivo, reconheceu que o nacionalismo dos românticos foi importante para desligar a nossa vida mental da influência portuguesa e nos abrir para outras culturas européias de melhor qualidade.

Sendo assim, a escrita ensaística da Escola do Recife começa a se justificar ou a se constituir pela configuração do “homem de letras” nacional; pela relação do “homem de letras” com a imprensa; pela relação da imprensa com a literatura e pela discussão de uma literatura nacional sugerida pelo movimento romântico (que sob outra perspectiva representava um esforço de pensar o Brasil). Ou seja, se os indivíduos que compunham a chamada Escola do Recife se adequavam ao perfil do “homem de letras” nacional (conforme demonstrado nos itens anteriores), a sua estratégia de comunicação, o seu “canal” de comunicação estava intimamente ligado às formas de expressão (ou ao domínio) literário, daí que o seu esforço renovado de pensar o Brasil tenha se

caracterizado exatamente por um “criticismo”15 veiculado e representado por uma escrita fragmentária, crítica e associada ao domínio literário, como o ensaio.

Por outro lado, é oportuno registrar que além da crítica, um segundo gênero merece destaque pelo relevante papel que lhe foi reservado pelo romantismo nacional (e pelo movimento romântico, de maneira mais ampla): o folhetim. Este gênero é normalmente associado a um veículo jornalístico de prosa ficcional (os romances folhetinescos), mas a história do folhetim é mais complexa e “rocambolesca” (conforme as narrativas que abriga). Como se verá adiante, no início deste tipo de publicação, o folhetim representava um espaço de “variedades”, onde se podia falar sobre quase tudo, inclusive praticar o exercício da ficção (ou seja, o folhetim não era um espaço reservado, exclusivamente, aos romances em capítulos). No Brasil, os romances folhetinescos também fizeram sucesso, mas o convívio com as notícias veiculadas diariamente nos jornais e a tentadora possibilidade de perambular por um ambiente reservado e livre – dentro dos seus limites - abriu as portas para a prática de uma escrita atuante e irreverente, contribuindo para o nascimento do gênero “crônica”.

Cronistas eram José de Alencar e Machado de Assis que, “ao correr de suas penas” (para lembrar o título das crônicas assinadas por José de Alencar no Correio

Mercantil, entre os anos de 1854 a 1855), ocuparam o espaço jornalístico reservado ao

folhetim ou às variedades com comentários sobre as questões relevantes – e também supérfluas – do cotidiano. Nesta pesquisa, a referência à crônica se faz por uma necessidade de compreender se a irreverência e o tom confessional deste gênero tão brasileiro também atingiu a escrita ensaística da Escola do Recife. Da mesma maneira, a discussão sobre os demais gêneros que formam a “teia ensaística” (panfleto, polêmica e crítica), pretende identificar as relações que constituíram as estratégias de comunicação do grupo do Recife.

15

A discussão a respeito do “criticismo” da Escola do Recife será retomada adiante quando se analisará, isoladamente, o gênero “crítica”.

Capítulo 3

A escolha do gênero ensaístico pela Escola do Recife representa uma estratégia de intercâmbio entre os domínios jurídico, jornalístico e literário

3.1

A teia ensaística no Século XIX: a aproximação do jornal e da

Documentos relacionados