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Sobre o gênero Crítica e conceitos paralelos: a voz que representava o movimento do Recife.

Não é, exatamente, uma novidade falar da relação entre a Escola do Recife e a “crítica”. Já foi sinalizado no início deste trabalho que outros autores e estudiosos do Século XIX haviam atentado para o fato de que a estrutura da escrita ou das “formas de expressão” da “geração 1870” possuía pontos em comum. A socióloga Ângela Alonso (2002, p. 178) afirma que a produção intelectual daquela geração possuía uma “estrutura assemelhada” e refere-se a “uma expressão da crítica dos grupos sociais letrados às instituições”; Nelson Werneck Sodré (2004, p. 421), ao analisar os autores vinculados à “Escola do Recife” dá ao respectivo capítulo o título “Reação anti-romântica: a crítica”, atribuindo ao grupo a responsabilidade de haver desencadeado no Brasil o que chamou de “criticismo de fim de século”. Por sua vez, a tese de Antonio Candido (2006) fazia referência ao “método crítico de Sílvio Romero”, assim como o estudo de João Alexandre Barbosa (1974) sobre José Veríssimo indica o seguinte subtítulo: “A

linguagem da crítica e a crítica da linguagem em José Veríssimo”.

Não é difícil perceber que todos estes autores chamam a atenção para uma palavra que parecia capaz de representar a “geração 1870”: a crítica. O próprio Tobias Barreto (1991, p. 119) ratifica este ponto de vista sobre o seu tempo ao advertir: “Ainda uma vez comprazo-me em declará-lo: nenhuma forma, nenhum ramo do conhecimento humano pode hoje subtrair-se ao predomínio da crítica”. E Luiz Antônio Barreto (1990, p. 37) complementa:

Toda a obra de Tobias Barreto é de crítica, ainda quando, ao modo de Kant, formula teorias, indica caminhos, questiona roteiros estéticos, ou valores éticos, ou ainda compromissos ideológicos. O manejo da crítica em toda obra tobiática equivale ao efeito caleidoscópico da sua coerência como um bom juiz de valores, um perspicaz observador diante das experiências, com capacidade para distinguir umas das outras, e um experimentador ousado, [...].

Apesar da “crítica” representar este fio condutor que une a “geração 1870” e o grupo de Recife, é interessante verificar que os autores referem-se a circunstâncias

diversas através de uma mesma expressão: chama-se de “crítica” tanto uma “postura” ou uma “atitude contestadora”, quanto faz-se referência ao “criticismo” kantiano, e ainda, indica-se o mesmo nome a um gênero textual em sentido mais estrito (“crítica literária”). Como sugere Ângela Alonso e Nelson Werneck Sodré ou Luiz Antônio Barreto, a produção intelectual da “geração 1870” e do grupo do Recife pode ser vista tanto à luz de uma determinada “postura crítica, combativa, contestadora”, quanto à luz do “criticismo”, mas estas considerações são diferentes dos argumentos desenvolvidos a respeito da “crítica” como gênero textual.

Ao analisar os escritos de Sílvio Romero, Antonio Candido (2006, p. 84) também faz referência a esta espécie de divisão “tripartite” da crítica (“ação crítica” x “criticismo” x “crítica literária”):

Neles, [em determinados escritos de Romero] encara a crítica mais como atividade social do pensamento do que propriamente como atividade estética. A crítica literária, pode-se dizer, aparece apenas como um aspecto do seu espírito e da sua ação crítica geral, que visava refundir a ideologia do país, mediante a tomada de consciência geral dos problemas brasileiros, examinados à luz do pensamento científico moderno. Já nos seus primeiros artigos, crítica é sinônimo de método, quase, às vezes, de filosofia ou teoria do conhecimento (“criticismo” de modo geral). Tanto que não se considerava um crítico literário, mas um crítico em sentido mais amplo, abrangendo os mais variados setores. (Grifos do autor)

Não é, exatamente, uma novidade falar da relação entre a Escola do Recife e a crítica. Mas de que “crítica” se está falando? Possivelmente, de todas as possibilidades da expressão juntas; a depender do ângulo de análise abordado, a referência recaia sobre uma perspectiva particular. O propósito de percorrer este trajeto que se inicia com a noção de gênero, passando pelos “ensaios” e gêneros afins possui a pretensão de esclarecer, ou ao menos, de interpretar esta face múltipla da crítica que acaba por revestir este “polimorfismo” atribuído à Escola do Recife.

Conforme demonstrado no item que tratou do Romantismo (item 2.2.2), a crítica literária se estabelece no Brasil a partir da consolidação deste movimento no país:

O primeiro Romantismo, marcado pelo compromisso e os meios tons, teve entre outros méritos o de fundar a crítica literária no Brasil, tomando como ponto de referência a discussão do problema da autonomia. Havia de fato

uma literatura brasileira? Seria ela distinta da portuguesa? (CANDIDO, 2004, p. 29)

No entanto, é precisamente este propósito de pensar o Brasil, a nação (e tudo que envolve esta ideia), que levará os autores da Escola do Recife a tomarem a literatura e a crítica literária por versáteis interlocutoras. O conceito de literatura e, consequentemente, o conceito de crítica literária operados pelo grupo não cingia estes espaços de discussão com um cinturão “estético”. Se a literatura representava aspectos profundos de um modo de ser nacional, seria desnecessariamente redutor submeter esta significativa projeção apenas a critérios formais. Sem restringir-se a critérios formais, o conceito de literatura se dilata e abordagens críticas mais amplas passam a ser aplicadas a “tudo que é escrito” ou pelo menos a “tudo que mereça ser lido criticamente”. Para a Escola do Recife, a crítica “literária” parece se diluir na “crítica”.

Sobre esta questão, Nelson Saldanha (1985, p. 37) tece o seguinte comentário:

Por sinal que José Veríssimo chegou a dizer que de Varnhagen tirara Sílvio Romero esta noção ampla de literatura, sendo portanto pouco original. Quer- nos parecer, porém, que não precisaria Sílvio ter ido a Varnhagen para isso. Vários autores do tempo (inclusive Taine e Domingos Magalhães, senão mesmo o próprio Tobias) usavam e justificavam o uso do termo literatura abrangendo toda a produção intelectual de um povo.

Critérios não formais ou não especificamente estéticos eram aplicados a obras literárias, enquanto critérios formais eram aplicados a escritos que, em um sentido estrito, não fariam parte do domínio literário ou ficcional, como demonstra o seguinte trecho redigido por Tobias Barreto (1991, p. 100) no já citado ensaio A questão do

Poder Moderador, ao tecer algumas considerações a respeito de obras jurídicas

publicadas sobre o tema abordado (Poder Moderador):

Todavia, em relação aos dois outros autores, o Visconde de Uruguai tinha um mérito de mais: escrevia melhor que qualquer deles. Não obstante a frieza do direito e exegese constitucional, facilmente se nota que o seu espírito era mais afeiçoado às coisas literárias. Há períodos mais fluidos, há mesmo mais vigor em sua forma de escrever. Digo sua maneira porque, com tudo isso, haveria exageração em falar do seu estilo. [...] Quanto porém ao Dr. Brás encarado como escritor, vacilo sobre o que deva dizer. [...] Tinha a

fibra literária pouco sensível, para render culto aos segredos e belezas da arte de escrever.

Note-se que neste trecho específico, o autor não faz considerações sobre as ideias desenvolvidas pelo Visconde de Uruguai ou pelo Dr. Brás a respeito do Poder Moderador (iniciativa que retomará adiante em seu texto), mas se detém em questões formais a respeito de uma adequação “literária” da escrita destes autores. Esta citação é ilustrativa para demonstrar que o direito ou a escrita jurídica também fazia parte daquilo que se considerava “toda a produção intelectual de um povo”, submetendo-se tanto a critérios formais quanto a critérios não formais ou critérios de julgamento e de discussão específicos de seu domínio. Ou seja, o que se pretende afirmar é que os escritos jurídicos do grupo também pareciam abrigar uma espécie de “crítica de literatura jurídica” ou “crítica literária” – considerando-se um conceito amplo de literatura – ou, simplesmente, “crítica”.

É válido registrar que os principais integrantes da Escola do Recife dedicaram-se à apreciação crítica de obras literárias, em um sentido estrito (domínio ficcional) e, seguramente, Sílvio Romero é o mais reconhecido representante do grupo nesta área. Mas não é objetivo desta pesquisa discutir, especificamente, o significado da crítica literária produzida por Sílvio Romero ou por outros integrantes do grupo, assunto que é tema de tantos e de tão competentes estudos, como o já citado Método Crítico de Sílvio

Romero, de Antonio Candido.

Conforme o raciocínio que vem sendo desenvolvido, a ideia deste trabalho é ressaltar a presença de gêneros afins nos ensaios jurídicos do grupo e, certamente, a crítica literária marcou a sua presença na iniciativa recorrente de apresentar ao leitor autores e obras (jurídicas), assim como na iniciativa de analisar aspectos formais de textos jurídicos, conforme citação de Tobias Barreto. No entanto, o que parece ainda mais importante é notar que a maneira inovadora destes autores desenvolverem esta atividade ou este gênero textual (crítica) relaciona-se com os dois outros sentidos da expressão “crítica” anteriormente destacados: a “ação crítica” (contestação) e o “método crítico” (“criticismo”). Esta maneira inovadora qualifica o gênero textual sugerindo a ideia de uma “crítica crítica”. A confusão antes estabelecida se decompõe ao observar a expressão através da relação entre “substantivo” e “adjetivo”.

A produção intelectual da “geração 1870” – e da Escola do Recife - estava estreitamente ligada com a prática da “crítica literária”, mas a “crítica” que qualifica a

expressão do grupo também está relacionada com o exercício de outros gêneros textuais (panfleto e polêmica; aspecto contestatório) e com a necessidade de demonstrar uma renovada postura intelectual movida por um desafiador e estimulante contexto político, social e cultural. Diante destas características – que qualificam a produção intelectual do grupo de uma forma mais ampla – a escolha pela escrita ensaística (ou pelo gênero textual “ensaio”) parece plenamente justificável.

Para veicular o “método crítico” da Escola do Recife, o ensaio era a opção mais adequada. É o ensaio, que na afirmação de Adorno (2003, p. 38), representa “a forma crítica par excellence”. Desta maneira, havia uma espécie de potencialização mútua entre “forma” e “conteúdo”: a forma ensaística potencializava o conteúdo crítico da escrita do grupo, enquanto o conteúdo crítico do grupo “trabalhava” as possibilidades formais (críticas) do ensaio. Portanto, é como elemento que constitui o gênero e não, como classificação do gênero que a crítica apresenta um valor fundamental aos objetivos desta pesquisa.

O mesmo adjetivo (“crítico”) que qualificava a crítica literária realizada pelo grupo, também se comunicava com os ensaios jurídicos destes autores, fornecendo à escrita do movimento significados que vão além da ação de atribuir a classificação de determinado gênero a um texto. A escrita do grupo do Recife era ensaística porque esta era a sua maneira de exercitar uma escrita “crítica”. Analisar a qualidade “crítica” da escrita da Escola do Recife através da forma ensaística é uma “chave de leitura” importante para a análise do movimento, uma vez que a forma deixa transparecer nuances de interpretação que o olhar sobre o conteúdo não consegue distinguir, tais como: os fatores que motivaram estas escolhas formais, o significado destas escolhas como estratégias de comunicação e a relação entre os propósitos comunicativos dos autores e a receptividade dos leitores. A estrutura que se forma em torno do conteúdo é tão – ou mais – importante do que o próprio conteúdo, porque é esta “estrutura” (ou esta forma) que possibilita a comunicação e é a comunicação que promove o significado.

3.6

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