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A polêmica é um gênero muito próximo ao panfleto e ao tom satírico, pois é exatamente a iniciativa de ataque, de desafio e de provocação que desencadeia a sua forma peculiar. Mas para começar a falar sobre os antepassados da polêmica é oportuno chamar a atenção para um gênero antigo: a diatribe. A referência à diatribe é especialmente pertinente na medida em que, retornando às origens deste gênero, verifica-se que ele adotava a forma de um diálogo, “análoga ao processo empregado por Sócrates, Platão e outros, dele se distinguia na medida em que utilizava generosamente expedientes retóricos e assumia tons mordazes e satíricos.” (MOISÉS, 2004, p. 122). Assim como a diatribe, a polêmica é um gênero que pressupõe a prática de um diálogo (ou de um duelo) que se vale de tons satíricos.

Na cultura de língua portuguesa, os antecedentes da polêmica insinuam-se no Cancioneiro Medieval, especificamente nas “Cantigas de Escárnio e Maldizer” (BUENO, 2005, p. 12). As “cantigas de maldizer” são, juntamente, com as “cantigas de escárnio”, subgênero da “poesia satírica” dos cancioneiros galego portugueses. Esclarece Esther de Lemos (1984, p.49):

A diferença entre estes dois subgêneros satíricos é que, na 'cantiga de maldizer', o trovador critica aberta e diretamente algum aspecto risível da realidade, sem esconder nem disfarçar o alvo das suas críticas, ao passo que na 'cantiga de escárnio' procura fazê-lo 'por palavras encobertas, que hajam dois entendimentos', para usarmos uma frase da arte de trovar citada.

Entre debates em versos e ideias apaixonadamente defendidas, as sementes da polêmica foram lentamente se desenvolvendo até desembarcarem no Brasil no Séc. XIX, estimuladas pela situação da imprensa nacional e pelas condições políticas e sociais do país. De acordo com Bueno (2005, p. 11),

A passagem do século XIX para o século XX no Brasil, o que poderíamos chamar de a nossa Belle-Époque, foi marcada por certos modismos literários de grande popularidade, especialmente as polêmicas, e, um pouco mais tarde, as conferências. Se ambas perseveram, em seus numerosos avatares, o que elas grandemente perderam foi a sua característica de gênero literário.

Mais do que o seu objetivo precípuo, defender ou estabelecer uma verdade contra opiniões consideradas falsas por cada contendor, a polêmica nesse seu período áureo vivia como duelo de verve e de inteligência verbal, contenda virtuosística, apreciada mais pelos meios do que pelos fins, despertando uma atenção quase esportiva por parte dos leitores, o que sem dúvida, como fenômeno social, desapareceu.

Diante da característica de se colocar sempre “contra algo”, é interessante verificar que a polêmica é um gênero que não se basta; ele precisa de uma oposição evidente para que se possa afirmar. Esta é uma das principais diferenças entre o panfleto, por exemplo, e a polêmica: o primeiro não pressupõe uma “resposta”; no entanto, se a “resposta” for dada por aquele que se sentiu atingido e se a discussão se estabelece, está formada a polêmica, ou seja, a polêmica não exige apenas leitores, mas impõe “adversários”.

Para ilustrar esta exigência e trazer a discussão para o contexto da Escola do Recife, destaca-se o título de um artigo escrito por Tobias Barreto no Jornal do Recife, em 23 de Dezembro de 1872. O texto era uma crítica a um livro escrito pelo Marquês de São Vicente e foi publicado na obra Estudos de Direito I sob o título de Direito Público

Brasileiro, apesar disto, originalmente, o artigo chamava-se A quem achar que lhe assenta a carapuça. O título escolhido por Barreto indicava um amplo destinatário (que

ultrapassava a provocação feita ao Marquês de São Vicente/Sr. Pimenta Bueno, por ocasião da crítica ao seu livro) e o autor parecia aguardar, ansiosamente, que as respostas aparecessem como alimento indispensável à polêmica proposta.

O recurso à polêmica era duplamente útil: em primeiro lugar, servia como uma estratégia de colocar em evidência as próprias ideias, ao mesmo tempo que denegria as ideias do opositor; em segundo lugar, os artifícios utilizados no debate também serviam como uma estratégia de propaganda pessoal, ressaltando as virtudes oratórias e retóricas do autor (neste sentido, as polêmicas aproximavam-se da ideia de verdadeiros “jogos” ou competições verbais). Como se não bastassem estes atrativos, ainda havia uma vantagem extra: o gênero era extremamente popular. Em algumas circunstâncias – especialmente nas polêmicas teatrais do Séc. XIX – o público tomava o partido dos polemistas e os debates escritos transformavam-se em confusões reais. (GIRON, 2004, pp. 98-9).

A afirmação através da negação era um artifício polêmico muito utilizado pelos autores vinculados à Escola do Recife. Veja-se, por exemplo, alguns trechos retirados

de Sílvio Romero (Ensaio de Filosofia do Direito) enfatizando as divergências entre “nós” e “eles”:

Mas, assim como ainda hoje, depois de toda a enorme revolução porque há passado a crítica literária e estética, depois de Lessing, Winckelmann, Saint- Beuve, Scherer, Taine, ainda nós temos professores da velha retórica [eles] a beneficiarem seus discípulos com o belo inato, eterno, imutável; também nas escolas de Direito ainda muitos doutores [eles] atiram em cima de seus estudantes todo o peso do direito eterno, natural, transcendente, que propalam contemporâneo de Adão e Eva, para não dizerem do Mamute e do Megatério, que não conhecem... (ROMERO, 2001, p. 141, grifo nosso).

Ou ainda:

Não venhamos [nós], pois, a criar coisas ocas e fantasmagóricas, nem em nome da natureza, nem em nome da cultura. É o que já vão tentando os que podemos chamar os culturalistas do direito [eles], especialmente no Brasil tão disparatados nesse caminho, como os inatistas do direito natural ao gosto de Taporelli e outros caturras do gênero (ROMERO, 2001, p. 162).

Ao se contrapor aos “[...] muitos doutores [que] atiram em cima de seus estudantes todo o peso do direito eterno, natural, transcendente [...]” ou ao ir de encontro aos “culturalistas do direito”, Romero estabelece a sua própria posição, excluindo dela, antecipadamente, os adjetivos pejorativos que ele dirigiu a seus opositores. Mais ainda: o autor sugere que as qualidades das suas ideias são contrárias aos defeitos identificados nos conceitos de seus contendores, ou seja, se o ensino do direito eterno, natural é “pesado”; a ideia de “leveza” é, automaticamente, colocada como referência ou sugerida como “filtro” para os argumentos do autor. Neste sentido, a polêmica é um modesto – porém, bastante evidente – exercício de auto-elogio.

A polêmica é muito mais “objetiva” ou “direcionada” do que os gêneros que lhe são próximos, como o panfleto, por exemplo. Ela identifica ou sugere a identificação de seus potenciais adversários (como nas explícitas “cantigas de maldizer”), delimitando o espaço da discussão e escolhendo, muito parcialmente, o discurso eleito. Não se trata de um gênero de contestação ou de denúncia; o caráter didático não é idealizado como uma prioridade. Na polêmica, os interesses pessoais parecem ficar em destaque. A principal

finalidade é derrubar os argumentos do opositor, aproveitando a oportunidade para colocar em evidência as próprias ideias; se a discussão serve à divulgação de informações ou reforça a estrutura de uma opinião pública, tanto melhor, mas não é esse o seu propósito fundamental.

O tom polêmico também marcou a escrita ensaística da Escola do Recife, servindo aos propósitos mais pessoais dos autores vinculados ao grupo. No entanto, é importante ressaltar que este recurso à polêmica estruturava-se na influência panfletária: enquanto a aproximação com os panfletos promovia e divulgava informações, constituindo uma “opinião pública”, a referência à polêmica direcionava ou orientava esta “opinião pública” contra os opositores dos autores, reunindo reforços aos seus argumentos. Ao mesmo tempo que as ideias eram expostas, os (possíveis) antagonistas daquelas ideias eram apresentados, sugerindo ao leitor que a adesão àquele discurso, implicava na oposição ao discurso indicado como contrário. Como se vê, era uma estratégia interessante para o grupo não apenas pelo fato de reunir seguidores, mas pelo fato de retirar a credibilidade de seus adversários. Se os adversários não gostavam dos ataques, as respostas eram bem vindas (multiplicando a visibilidade do discurso) e “que vencesse o melhor”.

3.4

Sobre o gênero Folhetim/ Crônica: uma escrita do tempo registrada na

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