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Conforme sugerido na introdução deste trabalho, este item se ocupará das relações entre o “contexto situacional” do grupo (BHATIA, 1993) e a escrita ensaística, ou seja, começará a responder de que forma os ensaios representavam estratégias comunicativas interessantes diante das circunstâncias históricas vivenciadas pelo grupo (domínio jurídico). Para começar a elaborar esta resposta, faz-se necessário saber um pouco mais do contexto histórico brasileiro naquele momento.

Não é simples falar panoramicamente sobre um período histórico, principalmente quando este período é determinante para a história de um país. Não há dúvidas de que o Século XIX foi um destes momentos cruciais para a história do Brasil e, como todo momento crucial, foi um período de quebras, de rupturas e de novas ideias, como sentenciou Sílvio Romero na famosa frase que anunciava o “bando” de mudanças que surgia no horizonte.

De acordo com o objeto desta pesquisa este texto concentrará sua atenção no intervalo de tempo que compreende a gênese e o declínio da Escola do Recife; período que se estende entre os anos de 1864 (ano em que Tobias Barreto ingressa na Faculdade de Direito do Recife) e 1914 (ano da morte de Sílvio Romero). Quais seriam os acontecimentos fundamentais e estruturais deste período? De que forma estes fatos interferiram na vida dos indivíduos vinculados à Escola do Recife? E quais os significados das estratégias de comunicação do grupo (escrita ensaística) diante de tais circunstâncias? De acordo com o enunciado que intitula este capítulo, este item (e os itens que o sucedem) pretendem demonstrar que a escrita ensaística era uma conseqüência do contexto histórico que abrigava o movimento intelectual do Recife, assim como representava uma maneira eficiente de interagir com aquele ambiente, promovendo os interesses que moviam seus integrantes.

Naquele ano de 1864, o Brasil tomava parte em um conflito que custaria aos países envolvidos milhares de vidas: a Guerra do Paraguai. A Guerra foi declarada em dezembro de 1864 e no dia 12 de abril de 1865, nas páginas do Jornal do Recife, Tobias Barreto assim se expressava sobre o acontecimento:

No coração desta gente O bravo suffoca o ai.

Que ferros !! o cedro ingente, De um golpe derrêa e cai. Ceda a república insana, Se enfim não se desengana, Espada pernambucana Desembainha-te e vai. Vai tu que não geras fraco Cidade que abres-te aos soes Cornelia mãe de cem Graccos Viúva de oitenta heroes. Quem há que o collo te dobre, Terrível, sincera, nobre, Limpaste as faces de cobre Das batalhas dos chrysões!! É de uma canção magoada Que a Pernambuco votei; Quando a luz de sua espada Em prol da pátria invoquei. Elle hasteou a bandeira Diante de sua fileira O Paraguay não sorri E ao grande leão do norte Vem tornar inda mais forte Mais leões – ei-los aqui -. Vão levantar-se altos feitos Que esta idade inda não vio; E o palpitar destes peitos O Paraguay já sentiu, Elle fita os horizontes, Se debruça sobre os montes, Escuta um murmúrio além... E ouvindo enormes rugidos Exclama – estamos perdidos; São os do norte que vem!

A primeira coisa que chama a atenção no poema de Barreto é que apesar de remeter a um tema de conteúdo “nacional” (a defesa da Pátria), o autor não perde a oportunidade de destacar peculiaridades regionais. A nação deve ser defendida, mas não por qualquer espada: é a arma de Pernambuco – “lugar que não gera fracos” - que deve ser desembainhada. Além de exaltar a coragem dos pernambucanos, Barreto usava de artifícios poéticos para enaltecer os valores do “Norte”.

Este aspecto da interpretação do poema é ilustrativo para começar a refletir sobre a dicotomia “norte/ sul” que levou Joaquim Nabuco a referir-se à existência de “dois Brasis”: o sudeste em ascensão e o nordeste em decadência; antagonismo promovido, em grande parte, pelo declínio da lavoura açucareira e a ascensão da cafeicultura. Segundo Raymundo Faoro (2012, p. 467), “no decênio 1831-40, o café, no valor da exportação, sobrepuja o açúcar (43,8% sobre 24%), para não mais perder a liderança, até que, em 1881, a relação atinja 61,5% sobre 9,9%.”

É interessante notar que ao contrário do que pode parecer, o declínio da grande lavoura da cana de açúcar não estava diretamente ligada à diminuição de representatividade política da região:

Aos quatorze ministérios de 1868 a 1889, a Bahia dará 26 membros (mais de 20% do total do período); Pernambuco, 12; Maranhão, 6; Piauí, 5; Ceará, 4; Paraíba, 4; Alagoas, 3; num total de 60 ministros nortistas contra 53 das províncias do sul: [...] Nos últimos vinte anos do império, a tetrarquia [influência predominante das províncias da Bahia, Minas, Pernambuco e Rio de Janeiro] dobrou, mas não quebrou. (MELLO, 1999, p. 18)

Mas se o Norte/ Nordeste encontrava-se, ao menos numericamente, bem representado nos quadros de poder do Império, qual seria a razão do aparente descontentamento da população que ecoava na metáfora dos “dois Brasis”, de Nabuco? Na realidade, a constatação daquele predomínio das províncias do Norte nos quadros de poder não significava que os interesses regionais estavam sendo defendidos. A cúpula governamental construída em torno do Imperador pretendia, prioritariamente, fortalecer a própria estrutura em que estava inserida (assegurando a parcela de poder que lhes cabia) e isso estava mais relacionado com as forças políticas individuais e a relevância do apoio concedido do que com a necessidade de corresponder às expectativas regionais.

Reivindicar publicamente interesses regionais ou provinciais era um comportamento que raiava à obscenidade e que podia comprometer as ambições de carreira. O político da monarquia timbrava, por conseguinte, em projetar a imagem de estadista nacional, pairando acima do que pejorativamente era designado por ‘bairrismo’, para em teoria só enxergar os interesses superiores do país.

Este raciocínio ajuda a compreender as razões pelas quais províncias influentes, como Bahia e Pernambuco, não conseguiram concretizar melhoramentos importantes como a obra de modernização do Porto do Recife ou a conclusão da ferrovia que ligaria Salvador a Juazeiro no Século XIX. (MELLO, 1999, pp. 23, 192). A parcela mais representativa do poder concentrava-se nas mãos de poucos que não estavam, exatamente, preocupados em defender interesses regionais, mas antes dedicavam-se a manter seus próprios privilégios assegurados pelo Império.

Paralelamente a esta estrutura de poder, duas circunstâncias determinantes configuravam aquele período da história nacional: a luta pela abolição e os crescentes anseios republicanos. O processo que começava a minar a estrutura escravocrata no país (reforçado pela Lei do Ventre Livre e pela Lei Saraiva- Cotegipe ou dos Sexagenários) atingia seu ápice em 1888 com a promulgação da Lei Áurea que libertava os trabalhadores escravos. Não é objeto deste trabalho desenvolver tema tão largamente estudado e discutido como o movimento abolicionista no Brasil, mas tão somente chamar a atenção para as relações entre o período de transição na economia nacional, o fim da estrutura colonial de produção (estrutura escravocrata) e as repercussões políticas anunciadas pela República, como bem lembra Emília Viotti da Costa (p. 457):

A Abolição não é propriamente causa da República, melhor seria dizer que ambas, Abolição e República, são sintomas de uma mesma realidade; ambas são repercussões, no nível institucional, de mudanças ocorridas na estrutura econômica do país que provocaram a destruição dos esquemas tradicionais.

O grupo do Recife, compreendido como um grupo de estudantes vinculados à Faculdade de direito do Recife, nascia sob a influência desta conjuntura econômica e política. A opção pela carreira jurídica, que poderia representar uma alternativa bem sucedida em contraposição à decadência da economia da região, atraía muitos jovens que acabavam por não ser adequadamente absorvidos pelo mercado de trabalho; em

especial, encontravam dificuldade em inserir-se na esfera política, domínio que tradicionalmente, interessava estes profissionais.

A trajetória política trilhada na época do Império foi assim delineada por José Murilo de Carvalho (2010, p. 125):

A carreira política era unilinear apenas em seus passos iniciais. Uma vez cruzados os portais da política nacional, geralmente através de uma cadeira na Câmara, os caminhos assumiam o formato mais próximo do de um círculo do que de uma linha reta. [...] O mais difícil era entrar. Um diploma de estudos superiores, sobretudo em direito, era condição sine qua non para os que pretendessem chegar até os postos mais altos. A partir daí vários caminhos poderiam, ser tomados, o mais importante e seguro sendo a magistratura, secundariamente a imprensa, a advocacia, a medicina, o sacerdócio. [...] Uma vez dentro da Câmara, estava-se a um passo do círculo interno da elite [...]

O diploma em direito era uma condição importante para trilhar as carreiras políticas imperiais, mas, isoladamente, o título de bacharel não representava uma garantia de sucesso. Também eram determinantes “o apoio familiar e dos amigos e o patronato dos líderes já estabelecidos” (CARVALHO, 2010, p. 125). Este ponto era um obstáculo para os integrantes do grupo do Recife. Segundo Ângela Alonso (2002, pp. 136-8):

De forma geral, todos os membros desse grupo [do Recife] passaram por contrariedades na construção de suas carreiras na política e/ou no ensino. [...] A carreira docente pretendida pela maior parte dos membros deste grupo foi obstada pela prevalência do sistema de apadrinhamento sobre os critérios de mérito no preenchimento dos cargos públicos. Foi isso que passaram a denunciar desde os anos de faculdade: a patronagem e as fraudes nos concursos. O tema é uma constante em suas publicações. Esta dificuldade individual em conquistar empregos e em trilhar a carreira canônica da política foi fermento de uma manifestação coletiva contra o status quo imperial, cuja forma magna foi o republicanismo.

No entrelaçamento destas afirmações é interessante reconhecer a escrita ensaística da Escola do Recife como uma eficiente estratégia de comunicação em relação ao contexto em que o grupo estava inserido. Como se verá adiante, a escrita

multifacetada do “homem de letras” fornecia visibilidade para os autores através de diferentes veículos de comunicação, assim como a recorrente mudança de perspectivas teóricas unida ao diálogo com determinados gêneros textuais criava condições de manter aqueles indivíduos em evidência, destacando experiências pessoais, promovendo a polêmica e reservando um valioso espaço para o exercício da crítica e da contestação. Os textos davam voz aos autores e renovavam o olhar dos leitores.

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