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A teia ensaística no Século XIX: a aproximação do jornal e da literatura.

Para começar a falar sobre uma “teia ensaística”, relativa à escrita do grupo do Recife, é importante recuperar duas informações desenvolvidas nos itens anteriores: 1) o ensaio é um gênero que possui características gerais, mas é especialmente receptivo à contribuições específicas - fornecidas pelo próprio autor ou pelo intercâmbio com gêneros afins - que lhe permite (a ele, “ensaio”) revestir-se de configurações originais; tão originais quantas forem as particularidades que estas contribuições específicas lhe emprestem; 2) os “escreventes” dos ensaios produzidos pelo grupo do Recife compartilhavam das características do “homem de letras” nacional e, portanto, freqüentavam um ambiente de fronteiras fluidas, transitando entre os territórios do direito, do jornalismo e da literatura. Então, a pergunta que deve ser feita é: qual seria a contribuição específica que a relação com as escritas jornalística e literária podem ter trazido aos ensaios jurídicos do movimento do Recife? Se os “escreventes” dos textos freqüentavam espaços de expressão contíguos, mas distintos, é razoável supor que estes autores tenham absorvido e promovido o intercâmbio de gêneros; aproximando e adaptando o que parecia distante e alheio.

Conforme indicado na introdução, a constituição de uma “teia ensaística” corresponde à etapa metodológica proposta por Vijay Bhatia (1993) que pretende “identificar a rede de textos e tradições linguísticas circundantes que formam o pano de fundo do gênero investigado”. Justificando a relevância desta “teia” ou desta “rede” de gêneros em relação à escrita ensaística, Arturo Casas (1999, p.317) faz a seguinte consideração:

Aceptada la premissa de que los gêneros son y funcionam como referentes institucionalizados, está claro que cualquier intento de descripción genológica habrá de hacerse sobre una delimitación histórico-sistémica predeterminada, a partir de la cual se verá la posibilidad de calcular vínculos y oposiciones entre las variantes genericas. [...] Se hace preciso entender el lugar o lugares de todas esas formas históricas sobre el mapa general sistemico que em cada caso corresponda.

Casas afirma que a pretensão de contextualizar um gênero textual envolve a necessidade de contrapor “variantes genericas”, com o propósito de identificar a função destas formas sobre a escrita privilegiada, definindo-lhe o que chamou de “mapa general sistemico”. Para compor tanto a etapa metodológica indicada por Bhatia (identificação de uma “rede de textos e tradições linguísticas circundantes”), quanto à perspectiva destacada por Casas será utilizada a estrutura daquilo que Charles Bazerman (2004) estabeleceu como “conjunto de gêneros – sistema de gêneros – sistema de atividades”.

Retomando o raciocínio desenvolvido no item 1.1 deste trabalho, é oportuno relembrar a cadeia de conceitos que Bazerman (2004, p. 22) envolve em sua teoria de gêneros textuais:

Cada texto bem sucedido cria para seus leitores um fato social. Os fatos sociais consistem em ações sociais significativas realizadas pela linguagem, ou atos de fala. Esses atos são realizados através de formas textuais padronizadas, típicas e, portanto, inteligíveis, ou gêneros, que estão relacionadas a outros textos e gêneros que ocorrem em circunstâncias relacionadas. Juntos, os vários tipos de textos se acomodam em conjuntos de

gêneros dentro de sistemas de gêneros, os quais fazem parte dos sistemas de atividades humanas. (Grifo do autor)

Ainda segundo Bazerman (2004, p. 32), “um conjunto de gêneros é a coleção de tipos de textos que uma pessoa num determinado papel tende a produzir”. Note-se que ao referir-se a um “conjunto de gêneros”, o autor americano não pretende compreender, isoladamente, um determinado gênero (pretensão que orienta este item), no entanto, ao sugerir a relação entre “atividade” e “produção textual” – ou seja, ao destacar o “papel” do “escrevente” do texto - Bazerman acaba delimitando a visualização da “rede de textos” proposta por Bhatia e, consequentemente, facilita a compreensão de um gênero isolado em contraposição aos outros gêneros que compõem aquela determinada “teia”, estabelecida em função do indivíduo que a “tece”. Esta é a razão imediata de utilizar-se a estrutura proposta por Bazerman na identificação da “teia ensaística” do grupo do Recife.

Como o propósito de investigação desta pesquisa está relacionado a um grupo de indivíduos (e não, a uma pessoa em particular), optou-se por identificar gêneros comuns

praticados por quatro autores analisados, ou seja, presentes na produção bibliográfica16 de Tobias Barreto, Sílvio Romero, Martins Junior e Clóvis Beviláqua. Desta maneira, verificou-se que os gêneros comuns à produção bibliográfica do grupo foram: monografias, ensaios, poesia e crítica17.

Os gêneros comuns identificados foram relacionados aos seus respectivos domínios discursivos, com a intenção de destacar a visualização da “rede de tradições linguísticas circundantes” ao gênero investigado. Desta maneira, de acordo com a atividade profissional exercida pelos respectivos autores, as monografias estavam inseridas, em sua maioria, no domínio jurídico (com exceção das monografias escritas por Sílvio Romero, cujos escritos situavam-se nos domínios da filosofia, da história e da literatura). Conforme demonstrado, os ensaios também desenvolviam, como denominador comum, a temática jurídica; dedicando-se, parcialmente, aos domínios da filosofia, da sociologia e da história. Por sua vez, classifica-se a poesia como gênero pertencente ao domínio literário ou ficcional, enquanto a crítica – apesar de apresentada no suporte “livro” – representa um gênero vinculado aos veículos de comunicação de massa, como revistas e periódicos e, portanto, relacionado com o domínio jornalístico18. A partir da constatação deste entrelaçamento de domínios foi dado a este item um subtítulo que sugere “a aproximação com o jornal e a literatura”, uma vez que a produção de ensaios jurídicos do grupo desenvolvia-se paralelamente a tais domínios discursivos.

Dando continuidade às suas observações sobre “conjunto de gêneros”, Bazerman (2004, p. 32) afirma que “ao catalogar todos os gêneros que alguém, exercendo um papel profissional, é levado a escrever e falar, você estará identificando uma boa parte do seu trabalho”. A constatação de que os autores do grupo do Recife possuíam publicações comuns relacionadas a três domínios discursivos - jurídico, jornalístico e literário - ratifica as conclusões indicadas no item anterior a respeito do conceito de “homem de letras”, assim como descreve sua estrutura de atividades.

A partir do momento em que se constata que o “conjunto de gêneros” é composto por domínios discursivos distintos surge a oportunidade de compor o

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Observe-se que correspondendo à delimitação estabelecida no mapeamento bibliográfico (item 1.2), a identificação de gêneros comuns restringiu-se apenas aos livros publicados pelos autores; deixando de lado os gêneros não veiculados neste “suporte”

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A produção bibliográfica dos autores mencionados encontra-se em seção anexa a esta pesquisa.

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Compreende-se a “crítica” como um gênero textual relacionado a um domínio “híbrido”, dividindo-se entre o domínio jornalístico (que reúne os suportes adequados a sua veiculação) e os domínios de suas respectivas temáticas (literário, musical, teatral etc.)

“sistema” dentro do “conjunto” privilegiando, se esta for a intenção da pesquisa, um gênero textual específico. Esta perspectiva de análise difere das pretensões de Bazerman, uma vez que sua teoria de gêneros tende a ampliar seu objeto de investigação, partindo do “conjunto de gêneros” praticado por determinado indivíduo em determinada função, relacionando-o com “conjuntos de gêneros” afins (constituição do “sistema de gêneros”19) visando a compreensão do “sistema de atividades” composto por tais relações. A proposta desta pesquisa não é “ampliar” a investigação, visualizando o movimento de gêneros textuais dentro de “sistemas de atividades”; ao invés disto, o propósito desta pesquisa é restritivo, ou seja, aproveitando o reconhecimento de um “conjunto de gêneros” relativo a determinada função (“rede de textos”), pretende-se isolar um gênero específico (ensaio) com a intenção de relacioná- lo com os domínios que abrigam os demais gêneros que compõem aquele “conjunto”.

A observação desses domínios “paralelos” pode apontar os eventuais espaços de intercâmbio entre gêneros textuais identificados na forma isolada. No entanto, é importante salientar que um “domínio discursivo constitui muito mais uma ‘esfera da atividade humana’ no sentido bakhtiniano do termo do que um princípio de classificação de textos” (MARCUSCHI, 2008, p. 155) e como espaço de “atividade humana” os domínios discursivos estão intimamente relacionados com a história, ou seja, se os gêneros textuais sofrem a ação do tempo, os domínios acompanham estas modificações. A representação do domínio ficcional ou literário na Idade Média é diferente da configuração deste mesmo domínio no Século XXI; ambos são classificados como “domínio ficcional ou literário”, porém, para fins de comparação, é importante estar atento às suas transformações.

No caso em apreço, ou seja, na análise da escrita “ensaística” da Escola do Recife, faz-se necessário aprofundar o conhecimento sobre os domínios literário e jornalístico do período em questão, identificando os gêneros textuais (ou as práticas de escrita) mais relevantes em seus respectivos contextos, com a intenção de perceber os pontos ou os elos de ligação entre aqueles domínios e os ensaios jurídicos produzidos pelo grupo. Desta maneira, a “rede de textos e tradições linguísticas circundantes” (BHATIA, 1993) estaria configurada e o espaço de diálogo entre o gênero isolado e os gêneros praticados paralelamente também estaria estabelecido.

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“Um sistema de gêneros compreende os diversos conjuntos de gêneros utilizados por pessoas que trabalham juntas de uma forma organizada, e também as relações padronizadas que se estabelecem na produção, circulação e uso desses documentos” (BAZERMAN, 2004, p. 32).

Sendo assim, os capítulos em que se subdivide este item se ocuparão dos gêneros textuais colocados em relevo por tal análise. A ideia de uma “teia ensaística”, de uma “rede de textos”, de um “mapa sistêmico” ou de “conjuntos e sistemas de gêneros” não são conceitos de operacionalização simples, no entanto a compreensão das peculiaridades de um gênero textual deve passar por esta etapa que é semelhante a uma excursão em uma “sala de espelhos” e todos os reflexos projetados no ambiente fazem parte de seu significado.

3.2

Sobre o gênero Panfleto: considerações sobre didatismo e divulgação

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