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Sobre o gênero Panfleto: considerações sobre didatismo e divulgação de conteúdos

Definidos os escreventes ou a função dos escreventes do gênero ensaístico em apreço (“homens de letras”) e a configuração da “teia” ensaística decorrente dos papéis representados por aqueles indivíduos (domínios discursivos freqüentados), resta aprofundar a discussão sobre os gêneros que formam o “pano de fundo” ou o contexto da escrita investigada. A identificação dos escreventes e dos domínios discursivos frequentados serviu para justificar a escolha do grupo pelo “ensaio” como estratégia de comunicação (“por que o grupo optou pela escrita ensaística?”), mas o aprofundamento dos gêneros que formam a “teia ensaística” criará as condições necessárias para compreender as peculiaridades da escrita ensaística da Escola do Recife dentro de seu contexto (dando início ao entendimento do significado daquela escrita).

O ensaio, naquelas circunstâncias específicas (escreventes x domínios discursivos), não se reproduzia isoladamente. Havia uma troca, uma comunicação constante entre os gêneros praticados em domínios discursivos comuns. Por esta razão, não seria possível conhecer adequadamente aquela forma peculiar de ensaio sem chamar a atenção para os gêneros com os quais convivia, como o panfleto, a polêmica, a crônica e a crítica. Começando com os gêneros vinculados ao domínio jornalístico (em sentido restrito) e obedecendo a uma ordem cronológica de influências, este item tratará do panfleto.

O surgimento dos panfletos situa-se na Europa de início do Século XV, “consistindo em publicações que tratavam de assuntos de opinião pública contemporânea e de notícias políticas, examinando várias questões sociais, jurídicas e religiosas” (MOZDZENSKI, 2008. p. 58). O panfleto cumpriu papel fundamental durante a Reforma Protestante da Alemanha, nos ataques à Rainha Catarina de Médici na França, na Guerra dos 80 anos na Holanda e nos protestos contra a monarquia inglesa no Século XVII.

Por representar uma ferramenta colocada à disposição dos que não usufruíam de lugares e funções privilegiadas na estrutura social estabelecida, a elaboração do panfleto também fundou uma revolução na linguagem escrita:

Os inúmeros panfletos revolucionários que difundiam as ‘luzes’ da

Enciclopédia para o ‘homem comum’ repudiavam a linguagem utilizada

pelas classes de prestígio no Antigo Regime – rebuscada, repleta de afetações e tecnicismos desnecessários -, adaptando-a através do uso de palavras e de construções sintáticas mais próximas da linguagem cotidiana. (MOZDZENSKI, 2008. p. 61)

Esta aproximação com a linguagem cotidiana ofereceu aos escritos panfletários uma importante característica didática. Além disto, os panfletos eram publicações baratas (normalmente editadas com um pequeno número de páginas) e com uma ágil capacidade de divulgação, “[...] graças às leituras em voz alta que ocorriam em alguns locais públicos como tabernas e ‘casas de pasto’.” (NEVES, 2008, p. 561). Conforme indicado, sua temática girava em torno de fatos recentes e de discussões políticas, representando um importante alicerce na construção de uma “opinião pública”:

Literatura de circunstância por excelência, [os panfletos] cumpriam o papel de disseminar notícias a uma platéia mais ampla, que deixava de vê-las como meras novidades do domínio privado para encará-las como parte de um espaço comum, esboçando uma ‘voz geral’ que se tornaria uma autêntica ‘opinião pública’.” (NEVES, 2008, p. 561)

No Brasil, diante da proliferação de periódicos e panfletos políticos durante o início do Século XIX (principalmente, primeira fase do periodismo nacional, conforme divisão anteriormente estabelecida), Neves (2002) chega a sugerir uma “pedagogia do constitucionalismo” (decorrente das discussões a respeito da independência e da constituição de um novo país), fazendo referência a inúmeros títulos como o Reverbero

Constitucional; O Constitucional; O Analisador Constitucional; O Espreitador Constitucional e a alguns folhetos desta mesma temática como A Constituição Explicada; O Catecismo Constitucional; Diálogo entre o corcunda abatido e o constitucional exaltado; Dicionário corcundativo ou explicação das frases dos corcundas. A convivência entre periódicos e panfletos (ou folhetos políticos) criava

uma dinâmica rede de “provocações” e “respostas” que alimentaria o gênero polêmica, que será discutido adiante. Por outro lado, estes textos tinham a função de divulgar novos valores e instruir o “homem comum” com os conceitos e crenças praticados por uma nova cultura política.

Após a independência, a veiculação de panfletos tornou-se mais esporádica (seja por conta das restrições impostas à imprensa por D. Pedro I; seja pelo posterior desenvolvimento da imprensa nacional, que acabou por “engolir” a prática panfletária, substituindo-a pelos espaços concedidos pelas revistas e jornais satíricos) (NEVES, 2008, p. 562). Anuncia-se o segundo momento do periodismo nacional (final dos anos 40 do Séc. XIX) que destacará as relações entre o jornalismo e a literatura, mas apesar das suas aparições muito mais pontuais é oportuno registrar que o panfleto não havia desaparecido dos horizontes do Império, acumulando mesmo a função de fazer ecoar as vozes da República e do fim da escravidão, como demonstra uma coleção de “panfletos abolicionistas”20, que veicularam poemas em comemoração à Lei de 13 de maio de 1888 (VENÂNCIO, 2007).

Apesar de não ter convivido com o auge da prática panfletária, a Escola do Recife recebeu marcante influência deste gênero. Note-se que os gêneros textuais não “evaporam”, simplesmente, deixando lacunas nas práticas linguísticas. Os gêneros sofrem transformações, adaptações, ou seja, o fato dos panfletos terem sido absorvidos por um viés satírico da imprensa nacional em meados do Séc. XIX não implica na diluição da sua influência; muito ao contrário, a adaptação de um gênero é um indício de sua resistência; é a renovação colocada a serviço da sobrevivência. Ora, se o declínio da prática panfletária brasileira no Séc. XIX coincide com a prioridade concedida à literatura, parece adequado que a escrita panfletária tenha sido renovada exatamente por um viés “satírico” que representava - sob uma forma literária – “[...] a crítica das instituições ou pessoas, [n]a censura dos males da sociedade ou dos indivíduos. [...] o ataque é a sua marca distintiva, a insatisfação perante o estabelecido, a sua mola básica.” (MOISÉS, 2004, p. 412) Este espaço satírico concedido pela imprensa repercutia ou reverberava uma prática panfletária que apesar de reduzida, continuava existindo.

O modo satírico possui um propósito moralizante e a valor da prática panfletária é assim registrado por Neves (2008, p. 562):

Na realidade, como ocorreu em outros países ao longo do Séc. XIX, como a França e a Inglaterra, os panfletos tenderam a ser suplantados pela imprensa periódica, na medida em que esta ganhava em regularidade e que se

20

“Os poemas aqui publicados são panfletos, na medida em que expressam um posicionamento político e retratam a vitória de um movimento de opinião pública.” (VENÂNCIO, 2007, p. 13).

ampliava o público leitor. Apesar disso, eles não deixaram de exercer papel fundamental enquanto veículos de novas ideias, e fizeram vislumbrar, na palavra escrita, uma fonte de poder capaz de ampliar a esfera da política para além dos círculos restritos da corte, estabelecendo uma opinião pública que está na raiz das sociedades contemporâneas.

Atribuir aos propósitos contestatórios da escrita da Escola do Recife – representada nos textos jurídicos do grupo - este parentesco com os panfletos, significa ampliar a compreensão sobre as suas práticas ou estratégias comunicativas, acrescentando-lhes além do viés crítico tantas vezes relembrado, a importância do caráter didático destes gêneros, ampliando a divulgação e circulação de informações na direção de leitores não especializados e contribuindo para o estabelecimento de uma opinião pública.

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