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B) O contexto da Assembleia Conciliar

6. A ESCUTA COMO RESPOSTA

Indeterminável e imprevisível é a reação do ser humano diante de Deus que se manifesta. Olhando o primeiro Testamento, é inevitável tomarmos Moisés e Elias como referência. Moisés, pelo seu “escondimento” diante da presença divina, esconde seu rosto na sarça que se consumia (Ex 3,6), e Elias no alto da montanha (cf. 1 Rs 19,13), que se prostra ocultando sua face diante do Deus que passa.529 No âmbito do Novo Testamento há uma grande diversidade de reações do ser humano diante da revelação divina. Os fariseus reagem com perplexidade à revelação de Jesus quando diz: “quem não nascer de novo não poderá entrar no Reino de Deus” (cf. Jo 3). Seus discípulos se surpreendem e o abandonam por causa de suas exigências (cf. Jo 6,61) ou do jovem rico (Mt 19,21), e os que restaram reagiram admirados: “a quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (cf. Jo 6,68). Há também os que reagem com medo diante da cura que Jesus faz (cf. Mt 9,31) ou quando caminha sobre as águas (cf. Mt 14,26).

Jesus é a plenitude da revelação, e por isso a escuta será simplesmente uma entre tantas atitudes possíveis que o ser humano pode ter. A escuta continua, entretanto, a ser a atitude mais coerente com a nossa fé perante a revelação divina. Se respondermos, não é porque Deus nos obriga a escutá-lo, pois certificamos que é possível não o escutar. É, porém, inevitável e intransferível a reação diante de um Deus que se revela, se podemos dizer a “ação requer uma reação” (DV). A escuta, sendo uma entre múltiplas reações, é resposta diante de algo ou de alguém que se manifesta. E, antes que haja a escuta, primeiro vem a revelação de Deus. Assim, a escuta é um ato segundo que nos impulsiona a focar nossa atenção no ato primeiro, a revelação. Pensando a revelação como um ato primeiro antes da escuta, nos obriga a rever, mesmo que em poucas linhas, a evolução da religião.530 A humanidade trilhou um longo caminho até a aceitação e o reconhecimento da existência de um Deus ou de uma divindade e dali até reconhecer a um Deus único.       

529

Moisés diante da presença de Deus na sarça ardente. Elias também esconde seu rosto quando o Deus vivo manifesta-se na chegada da brisa suave.

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Quero dizer com evolução da religião, dos indícios das primeiras experiências da humanidade diante do divino.

Houve, sem dúvida, um processo na relação do homem com a divindade, até chegar ao monoteísmo.531 Este processo “evolutivo” na relação do homem enquanto ser religioso532 deu-se num primeiríssimo momento pela inquietação diante dos fenômenos da natureza. O homem buscava compreender os fenômenos presentes na natureza: intempéries, trovões, tempestades e arroubos da violência das águas. O “ser humano pergunta, quer descobrir, quer encontrar respostas e compreender o que acontece ao seu redor e em si mesmo perante o mistério, e já evidentemente ‘assombrado’ e perplexo”. Desde os tempos mais remotos no ser humano já havia uma “tendência universal em crer em um Deus”.533 Há alguns estudiosos que consideram o animismo534 como uma das manifestações religiosas mais primitivas. Numa outra caracterização, encontramos o fetichismo535 e o totemismo.536

A procura do homem em compreender os fenômenos da natureza, associada à experiência da morte e da existência humana, levou-o a perguntar-se sobre o “sentido da vida”. O ser humano vai buscar o sentido último da vida, pela sua origem, pela indagação do que possa vir após a morte. Nesse contexto vão surgindo a aceitação e a crença na divindade.537 O fato de ser possível à linguagem falar do mistério foi determinante. Uma linguagem que pudesse dar conta de falar do mistério, ou do transcendente, foi fundamental para o processo evolutivo da religião, pois a religião tem sua linguagem própria. Religião aqui tem a ver com experiência, a experiência de uma presença, de uma força incomparável, cuja fonte é o Mistério       

531

FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2006. Nesta obra se diz: houve uma evolução da religião israelita ou um processo até o alcance de um Deus único de todas as nações, p. 26; SCHMIDT, W. H. et al. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo (RS): Sinodal/Escola Superior de Teologia, 2003. Nesta obra o autor vai dizer que os antepassados de Israel ainda não adoravam o Deus uno: “vossos pais [...]. e outros deuses, p. 25; mesmo que nos primórdios da história e religião de Israel encontra-se na penumbra [...] primitivo, p. 37; Porém, num dado momento, na vida da história da religião de Israel vai ‘transparecer um traço essencial da fé em Javé: uma religião de adoradores’”, p. 49. 

532

MONDIN, B. O homem, quem é..., op. cit., p. 254. 

533

USARSKI, Frank (org.). O espectro disciplinar da ciência da religião. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 58-59. Ver também TAMAYO, Juan José (org.). Novo dicionário de teologia. São Paulo: Paulus, 2009, p. 470. 

534

USARSKI, F. O espectro disciplinar..., op. cit., p. 58. Cf. também KONINGS, J. M. H.; ZILLES, Urbano (orgs.). Religião e cristianismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 93. Este diz que o animismo (o africano, antes de tudo) atribui “alma” não só às pessoas, mas às coisas. 

535Id., ibid. É caracterizado por feitichismo, culto de feitiços ou ídolos.

536 Id., ibid. Ao passo que totemismo é o culto do totem ou do animal protetor do clã. Cf. também

MONDIN, B. O homem, quem é..., op. cit. Para o historiador Edward B. Tylor (1832-1917), a primeira forma religiosa praticada pela humanidade foi o animismo (citado em id., ibid., p. 241).

537Id., ibid., p. 224. Nesta obra o autor afirma que a religião é uma manifestação tipicamente humana,

e os antropólogos informam-nos que o homem desenvolveu atividade religiosa desde sua primeira aparição no cenário da história. 

mesmo.538 Neste sentido religião é revelação, pois é a aparição do transcendente no limite da existência.539 Mesmo assim, as pesquisas avançam no sentido de aprofundar os “sinais da presença” de Deus. Esta identificação prossegue mais e mais na descoberta da mais antiga revelação de Deus.540 O que temos é que sempre podemos chamar de revelação a experiência de que “Deus fala” ou quando a iniciativa de Deus revela ao homem sua presença e atuação.541 Esta forma de entender a religião facilita a compreensão do que seja a revelação. É somente num tempo mais tardio que podemos falar da crença num Deus único, ainda que não tão nítida. Neste sentido, cabe aos hebreus um lugar de destaque como os que primeiro assinalaram em sua cultura o culto ao Deus único. É de consenso que a religião do povo bíblico remete inevitavelmente à revelação de um Deus presente, atuante. A religião do Antigo Testamento (também a do Novo) caracteriza-se pela “intervenção de Deus na história, intervenção devida unicamente à sua livre decisão”542. Diz ainda:

“A concepção de uma intervenção divina é entendida como o encontro de alguém com alguém; de alguém que fala com alguém que ouve e responde. Dirige-se Deus ao homem como um senhor a seu servo, interpela-o, e o homem, que ouve a Deus, responde pela fé e pela obediência. O fato e o conteúdo dessa comunicação nós o chamamos de revelação”.543

Isso dito quer dizer, contudo, que a Palavra verdadeiramente se dá aqui e agora, em nós e entre nós. Bruno Forte vai dizer que a Palavra vem do Silêncio: “Se é verdade que a Palavra vem do Silêncio (ou a não Palavra) e para lá voltará”.544

É certo que, para uma verdadeira e profunda atitude de escuta, é preciso o silêncio. E somente a Palavra pode falar algo ou falar de si pelo silêncio. A voz humana não pode ocorrer ali, no silêncio, que só a Palavra (divina) alcança. Se for correta a afirmação desse autor, podemos compreender que só o Espírito, a Palavra       

538

KONINGS, J. M. H.; ZILLES, U. Religião e..., op. cit., p. 35.

539Id., ibid., p. 55. 540

LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 15.

541

KONINGS, J. M. H.; ZILLES, U. Religião e..., op. cit., p. 56.

542

LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 13.

543Id., ibid. 544

e o Silêncio podem então frutificar ou produzir a revelação: “O Espírito será aquele encontro tremendo entre o Silêncio e a Palavra”.545

É preciso recordar que a escuta tal qual propomos não desconsidera a caminhada do povo de Deus bíblico. Ao contrário, para a escuta, o povo da Bíblia é sua referência. A Escuta como resposta a um Deus que se revela situa-se na esfera das religiões ditas proféticas.546 E está inserida no contexto das religiões monoteístas de origem semítica.547 Na religião original do povo bíblico está presente uma espécie de “monoteísmo original que constitui a Revelação original”.548

Com a afirmação anterior podemos definir o seguinte: “se Revelação é revelação da Palavra pessoal de Deus e se o centro da Revelação não é uma verdade abstrata, [...], mas uma pessoa que nos fala, nos busca, [...] então a Palavra de Deus (revelação) antes de tudo deve ser ouvida”.549 Nisto é que consiste e o que caracteriza o povo de Deus bíblico. Primordialmente é um povo da escuta: shemá, Israel, escuta, Israel (Dt 6,4). Mesmo que a escuta, entretanto, ainda seja um ato segundo, é a primeira e básica atitude para um diálogo promissor. Isto inclui o diálogo com Deus. E não tanto um diálogo que foca sua atenção na mensagem, e sim, acima de tudo e sobretudo, centra sua atenção naquele que emite a mensagem, ou seja a pessoa.550

Eis a Palavra que se revela e, em sua infinita soberania, livremente age quando, onde e em quem quiser. Nisso recorremos insistentemente a Dei Verbum: “Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade” (DV, 2).

Retomando então o “ouvindo religiosamente” a que a Dei Verbum se refere não poderá ser outra coisa senão um ato segundo. Identificamos a escuta como uma resposta à Palavra que se revela. Mas o Espírito acompanha a Palavra que ecoa ressonante. Verdadeiramente Deus só se pode autoexpressar de uma maneira total pelo espírito num homem que livremente o acolhe e amorosamente lhe responde. E, ao inverso, o homem (Jesus) só se pode autotranscender na dimensão       

545

FORTE, B. Teologia da história..., op. cit., p. 58.

546 KONINGS, J. M. H.; ZILLES, U. Religião e..., op. cit., p. 90.  547Id., ibid., p. 102.

548

DTF, p. 750-751.

549

MANNUCCI, V. Bíblia palavra..., op. cit., p. 37.

do espírito ali onde Deus livremente o escuta, o acolhe e lhe responde.551 Palavra, Espírito e escuta estão entrelaçadas inequivocamente para aqueles que são de Cristo. E é a Palavra que se dá e se apresenta vivamente. O Espírito a move e a torna eficaz. Libanio vai nos dizer: “que o que vem em primeiro lugar no conhecimento da fé revelada é a Palavra: crer é dizer ‘sim’ ao Verbo saído do eterno Silêncio”. A fé nasce da escuta (cf. Rm 10,17). A escuta só é, entretanto, possível por ter-se realizado, na história, o evento da palavra, que é o Cristo.552 Ainda diz mais:

“a obediência da fé não é outra coisa senão a escuta profunda, a escuta daquilo que está por trás da palavra imediatamente ouvida [...]. Se chamarmos este ‘mais além’ da Palavra com o nome de Silêncio, poderíamos afirmar que o verdadeiro acolhimento da Palavra de Cristo é a escuta do Silêncio que a supera e do qual ela provém”.553

A Igreja reconhece, por experiência, o grande desafio quanto à escuta. A Verbum Domini sugere: só podemos aprofundar a nossa relação com a Palavra de Deus dentro do “nós” da Igreja, na escuta e no acolhimento recíproco.554 E é de tal forma relevante escutar a Palavra, que, quando escutamos a Palavra de Deus, isto nos levará a prezar a exigência de viver segundo esta lei “escrita no coração”.555 Bruno Forte vai dizer que, quando escutamos, acontece uma “guinada por ocorrer que a escuta nos leva à abertura para o silêncio do ser”.556 E diz mais: onde a filosofia é pergunta, a teologia é escuta da revelação.557 O autor citado remete esta reflexão a Heidegger, mas aceita e reafirma a relevância da escuta sobre outras atitudes. E diz que o traço fundamental do pensamento não é o interrogar, mas o escutar.558

Essa ação humana (de escutar) como ato segundo se dá porque a Palavra apresenta-se a nós de diversas e variadas formas e misteriosamente movida pelo Espírito vem a nosso encontro. A Palavra quer fazer-se conhecida e dialogar       

551

PIKAZA, X. El Espíritu Santo y Jesús..., op. cit., p. 42.

552

LIBANIO, J. B. Teologia da revelação..., op. cit., p. 63.

553Id., ibid. 554

VD, p. 9.

555Id., ibid., p. 22. 556

FORTE, B. Teologia da história..., op. cit., p. 76.

557Id., ibid., p. 77. 558Id., ibid., p. 78.

conosco.559 E, se atinamos que isto mereça nosso obséquio, daremos a devida atenção (cf. Lc 5,4). Desta forma, se focamos nossa atenção na Palavra (pela escuta), daremos à nossa vida o primado da Palavra de Deus.560

Nesse horizonte temos de reconhecer que pela escuta é possível dizer que nós, seres humanos, somos destinatários da Palavra.561 Mesmo assim, ainda nos acercamos da liberdade por ser a escuta, ainda que ato segundo, um ato absolutamente livre. O Deus e Senhor, Ele mesmo, nos torna, porém, capazes de escutar a sua Palavra, se o quisermos.

O milagre operado pela escuta à Palavra que se revela é o milagre do encontro.562 O encontro entre o homem e Deus, Deus e o homem. Nesta linha, podemos lembrar Rahner quando nos fala do ouvinte da palavra.563 Em sua proposta, vamos enxergar a possibilidade de o homem transcender a si mesmo e nessa transcendência encontrar-se com Deus.564 É o homem que depara com o absoluto.

O que há pouco falamos da escuta como ato segundo nos faz pensar sobre a realidade social em que vivemos, que é uma contradição. A realidade social em que vivemos apresenta diversos obstáculos para fazer-se escutar. Por isso, entendemos não ser inocente o mundo em que vivemos impedir ou dificultar ao máximo o cultivo e a experiência do silêncio (que favorece a escuta). Há um grande grito de socorro em nossa sociedade que suplica pela escuta. Nós todos carecemos existencialmente da escuta. Na falta do silêncio em que todo e cada um se recusa está escondido o tesouro da escuta. Já dizíamos anteriormente que a escuta é uma resposta à Palavra que se revela no Espírito. O Espírito está em ação para que cada um de nós dê oportunidade à escuta da Palavra. Até se diz que a escuta é o silêncio fecundo habitado pela Palavra.565

Essa clara resistência à escuta é tipicamente uma das “características” da cultura do barulho e é um sinal dos tempos. Desta cultura fazemos parte, pois ao        559 VD, p. 22. 560 VD, p. 22. 561

FORTE, B. Teologia da história..., op. cit.

562Id., ibid., p. 169. 563

RAHNER, Karl. Cap. “Ouvintes da palavra” (p. 37-60). In: RAHNER, K. Curso fundamental da fé. 4ª ed. São Paulo: Paulus, 2008, 531 p.

564Id., Ibid., p. 171. 565

mesmo tempo a promovemos e dela somos vitimas. Já que somos nós os geradores dos ruídos do dia a dia e das diversas aberrações sonoras que nos afetam a todos. A cultura do barulho é absurdamente inquietante, não para, as pessoas são dadas ao estresse facilmente e, por qualquer motivo, se põem em conflito. O silêncio é algo a ser evitado, não sabemos o que fazer quando chega o silêncio. O tempo é precioso demais para ser desperdiçado com meditação e o silêncio.

A poetisa Adélia Prado, conhecida nacionalmente, elenca algumas características típicas dessa cultura do barulho e nos conta de suas experiências nas celebrações que participa. Como é de confissão católica, pode com segurança dizer que nas comunidades católicas esta cultura do barulho já chegou. O excesso de barulho, os ruídos excessivos de nosso dia a dia: nas ruas, dos veículos, as buzinas e gritarias já estão por toda parte e também em nossas casas e em nossas comunidades cristãs.566 A estas características enumeradas há pouco, chamamos “cultura do barulho”. Somos parte dela! Estamos inseridos nela. E não nos surpreendemos de forma alguma com as estatísticas de danos no aparelho auditivo e das frequentes queixas de pessoas, nas mais variadas idades, profissões e níveis sociais, que não conseguem escutar ou nunca são escutadas.

Ainda que no contexto social identificássemos as constantes dificuldades de escutar a Palavra de Deus, mesmo assim, na Sagrada Escritura, o profeta Amós vai nos dizer de um paradoxo:

“vede que chegam os dias – oráculo do Senhor – em que enviarei fome ao país: não fome de pão nem sede de água, mas de ouvir a Palavra do Senhor; andarão errantes do nascente ao poente, vagando de norte a sul, buscando a Palavra do Senhor e não a encontrarão” (cf. Am 8,11-12).

      

566

A poetisa mineira Adélia Prado faz sua observação das celebrações de que participa: “missa é como um poema, não suporta enfeite nenhum”. Parece-nos que ela compara a missa com um poema, porque compara a linguagem poética à linguagem litúrgica. Defende a ideia de que a missa é o que há de mais absurdamente poético que existe. É o absolutamente novo sempre! Ainda diz: não precisamos botar mais nada em cima disso, “é só isso”. Como nossas comunidades estão permeadas por cantos barulhentos, instrumentos ruidosos e microfones altíssimos, fruto desta cultura do barulho, então nos falta o espaço para o silêncio, tão essencial para ecoar a Palavra. Por isso a importância e a necessidade do silêncio que não se tem tido nas nossas comunidades católicas (PRADO, A. Missa é como poema..., op. cit.).

Noutra perspectiva, poderíamos perguntar-nos qual seria então o papel ou a função do Espírito no ato da escuta que responde à Palavra que se revela? Se a Palavra se revela é porque o Espírito a move, dinamiza-a. Sem a qual, mesmo a Palavra se revelando, seria inócua. Poderíamos apenas ouvi-la. Seria apenas uma ação dos ouvidos (um dos sentidos), nada mais do que isso. A experiência de Deus que se dá pela escuta da Palavra que se revela só se dá pelo Espírito, ou seja, “qualquer experiência de Deus depende do Espírito”567. É o Espírito que torna a Palavra escutada mais viva e eficaz.568 A função do Espírito na escuta da Palavra é insubstituível, porque, quando fazemos a experiência de Deus escutando sua Palavra, é o Espírito quem nos põe em relação com a Palavra. O Espírito, antes de escutarmos a Palavra, vem a nós e nos auxilia em preparação e também para entendermos a própria Palavra (cf. DV, 5).

Quando nos pomos à escuta da Palavra que se revela no Espírito, não escutamos qualquer outro, mas escutamos um Outro. Dizemos de um absolutamente Outro. Deus (ou sua Palavra) é o absolutamente Outro,569 pois o cristianismo em si mesmo é, sobretudo, a manifestação (revelação) do outro, o puro desvelar-se Dele.570 Como a Palavra não é eficaz sem o Espírito, ocorre que agem sempre juntas, nunca separadas. E, se na escuta há a ação da Palavra e do Espírito, só se “escuta a palavra de um modo que nos faça verdadeiramente recebê- la e compreendê-la, graças a um dom (Espírito) de Deus. [...] ainda mais: Deus trabalha o coração para torná-lo atento e acolhedor à palavra”.571 Numa visão antropomórfica, o movimento ou a ação da Palavra e do Espírito, quando no ato da escuta, só provém de uma única e mesma origem: da boca de Deus. “Antes de tudo, Palavra e Espírito, ambas saem da boca Dele”572. É por isso que, quando escutamos a Palavra de Deus, não pode haver confusão nem dissonância. O caminho se faz do seguinte modo:

      

567

COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA do Grande Jubileu do Ano 2000. Senhor, a terra está repleta do teu Espírito, p. 18. Ver também LOEHER, M.; FEINER, J. Mysterium Salutis..., op. cit., p. 7- 9. Ali se diz que só entramos em relação com Cristo por intermédio de seu Espírito. Cf. também CODINA, V. “Não extinguirás...”, op. cit., p. 35. Neste trabalho se vai dizer que não é possível entender a Palavra sem a ajuda do Espírito Santo; e ainda mais, na mesma página: o Espírito é aquele que acompanha a Palavra, e é a “boca de Deus” que antecede e pronuncia a Palavra.

568

COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA..., op. cit., p. 19.

569

FORTE, Bruno. À Escuta do outro. São Paulo: Paulinas, p. 36. O autor vai recordar a teologia de Karl Barth, que se refere a Deus como o absolutamente Outro.

570 Id., ibid., p. 14. O autor desta obra também vai lembrar-se do pensamento de Hegel. 571

CONGAR, Y. A palavra e o Espírito..., op. cit., p. 31.

A palavra sai da boca de Deus. Atravessa o espaço intermediário, a palavra chega ao ouvido daquele que escuta; pelo ouvido; desce ao seu coração e daí às entranhas, “descem às câmaras do ventre” (Pr 20,30; 26,32). “Daí sobem ao coração” e podem ser emitidas pela boca. Ora, o que sai da boca é alento, sopro, em forma de som. “O mesmo ar, que é respiração e alento, é palavra que se comunica”.573

A função do Espírito faz o sujeito (quem escuta) escutar a Palavra escrita tanto quanto a Palavra inscrita. É o Espírito que age para que o “ouvinte” “acolha adequadamente tanto a palavra escrita quanto a palavra anunciada, Lutero vai se referir a este mistério: de que há uma atuação no interior do coração humano para que este se predisponha a escutar a Palavra”.574 De outro modo, num outro documento, vai-se falar desta indissolúvel ação entre o Espírito e a Palavra no interior do coração humano em relação à escuta:

Só podemos aprofundar a nossa relação com a Palavra de Deus dentro do “nós da Igreja, na escuta e no acolhimento recíproco”.575 Pois só através da Palavra de Deus podemos prezar a exigência de ver segundo esta lei “escrita no coração” (cf. Rm 2,15;7,23).576

A Verbum Domini vai nos dizer: “de fato não é possível uma compreensão

autêntica da revelação cristã fora da ação do Paraclito. Isto se deve ao fato de a comunicação que Deus faz de Si mesmo implicar sempre a relação entre o Filho e o Espírito Santo.577 E quando ocorre a revelação divina, Deus mesmo nos torna