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Este item do capítulo trata especificamente da relação Palavra-Espírito na Dei Verbum. Antes de prosseguir, faremos alguns esclarecimentos, a saber, dos significados dos termos “pessoa” e “relação”. Palavra e Espírito devem ser considerados pessoas.172 O conceito de pessoa segue um árduo debate filosófico e teológico. Percorreremos um longo caminho no desenvolvimento desse termo.

Houve “uma relação entre filosofia e teologia na elaboração do termo”.173 Neste percurso encontra-se uma verdadeira “história do conceito”.174 O “termo ‘pessoa’ foi forjado nos séculos IV e V nos debates que presidiram a elaboração do dogma trinitário”.175 Vem do latim e “significa persona. No sentido comum, é o homem em suas relações com o mundo ou consigo mesmo. No sentido geral, pessoa é um sujeito de relações”.176 O termo “pessoa” figura certamente entre os “conceitos fundamentais da teologia [...], por penetrar a autorrevelação divina [...] e, no esforço de sua elaboração como conceito acabou por fim favorecendo a elaboração teológica da cristologia e da doutrina trinitária”.177 Desde a fase nascente do cristianismo, em “Tertuliano, já se definia o conceito de pessoa na doutrina da trindade, que afirmava: uma substância, três pessoas”.178 Na língua latina de então, o termo “pessoa era aplicado à máscara do ator teatral e depois se relacionou com

      

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Cf. também LOEHER, M.; FEINER, J. Mysterium Salutis III/8 – O evento Cristo como obra do Espírito Santo. Petrópolis (RJ): Vozes, 1974, p. 6. Citamos preferencialmente alguns manuais e dicionários, como SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual de dogmática. v. II. Petrópolis (RJ): Vozes, 1992, p. 446-488. Outra obra interessante é LIBANIO, J. B. Teologia da revelação a partir..., op. cit., p. 232-234. Para uma linguagem das pessoas divinas, cf. LADARIA, Luis F. O Deus vivo e verdadeiro. O mistério Trindade. São Paulo: Loyola, 2005, p. 262-288; ComDV, p. 194-198. Citamos também alguns documentos oficiais da Igreja, publicados como Documentos de Aparecida n. 136, 243, 244, 292. No Catecismo da Igreja Católica (CIC): sobre as três Pessoas da Trindade, o n. 189; sobre a profissão de fé nas três pessoas divinas, o n. 190. Por fim, a sugestão de um artigo bastante interessante sobre o tema da pessoa e suas dimensões: FERNÁNDEZ, Emilio José Gil. La persona y sus dimensiones. Auriensia, n. 10, jan.-dez. 2007, Ourense (Esp), p. 255-293. Ver também, em MONDIN, Battista. O Homem, quem é ele? São Paulo: Paulinas, p. 290. Nesta mesma obra, ver o tema da pessoa com um problema, p. 291; e o da pessoa como um princípio de autonomia, comunicação e transcendência, p. 302.

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FRIES, H. Dicionário de teologia. Conceitos..., op. cit., vol. IV, p. 239.

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WERBICK, Jürgen. Persona. In: EICHER, Peter (org.). Diccionario de conceptos teológicos. 2 vols. Barcelona: Herder, 1990, p. 228.

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DCT, p. 1393.

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BOSI, Alfredo (coord.). Diccionario de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 730.

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WERBICK, J. Persona..., op. cit., p. 228.

seu papel”.179 Depois, os “padres capadócios lançaram a equação: o conceito de pessoa na trindade não se referia à aparição de Deus destinada ao homem, mas à realidade divina do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.180 Mas é no “Concílio de Constantinopla que se confirma a questão ao se falar da unidade do Deus-Logos com o verdadeiro homem Jesus”. Resolvendo que a encarnação do Logos não destruía a humanidade de Jesus”.181

Na Idade Média Boécio (480-525) entendia por pessoa a naturae rationabilis individua substantia, chegando à definição de que “as pessoas divinas só podem ser pensadas desde sua mútua relação como pessoas indistintas em si e distintas umas das outras”.182 Já na modernidade encontramos Fichte (1762-1814), que diz: a “pessoa é simplesmente impensável se não comporta a limitação e a finitude”.183 Hegel, por sua vez, aponta: a “pessoa, como fato ou processo de correspondência, tem na trindade sua relação mais pura”.184 Em sua obra A Santíssima Trindade é a melhor comunidade, Boff refaz o percurso pelo qual passou o termo “pessoa”, exatamente para fazer compreender a Trindade Santa. O autor afirma ter sido necessário forjar o termo “pessoa” na tentativa de elaboração do discurso sobre a Trindade, citando alguns dos que mais contribuíram nesse processo. No início aparece “Irineu (130-202), que diz: eis a regra de fé: Deus Pai incriado [...]; o Verbo de Deus, o Cristo Jesus Senhor nosso [...] no Espírito Santo, pelo qual os profetas profetizaram [...]”.185 “Orígenes (182-253) já considera a Trindade como um eterno dinamismo de comunhão”.186 É o primeiro a usar o termo “hipóstase” (pessoa). Mas é em “Tertuliano (160-220) que se exprime a fórmula ‘uma substantia três personae’. Isto vai significar a unidade de Deus, que é sempre a unidade das Pessoas, o um ‘em Deus resulta dos três’”.187 Pouco mais tarde os padres “capadócios elaboraram: as Pessoas divinas constituem um jogo de relações”.188 E Santo Agostinho (354- 430) vai dizer: “as Pessoas como sujeitos respectivos e eternamente

      

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WERBICK, J. Persona..., op. cit., p. 229.

180Id., ibid. 181Id., ibid. 182Id., ibid., p. 231. 183Id., ibid., p. 232. 184Id., ibid., p. 233. 185

BOFF, L. A Santíssima Trindade..., op. cit., p. 71.

186Id., ibid., p. 73. 187Id., ibid., p. 74. 188Id., ibid., p. 75.

relacionados”.189 Mais tarde, Santo Tomás (1225-1274) vai afirmar o “Deus uno e trino, e aprofunda a relação entre as Pessoas divinas”.190

Nos tempos da modernidade, a pessoa é constituída essencialmente da subjetividade, que encontra seu espaço e valor, tanto quanto a inteligência, o pensamento, dotado de razão (Locke, 1632-1704).191 Hegel (1770-1831) vai propor que pessoa tem a ver com o sair de si mesmo,192 e Lutero (1483-1546) vai pensar a pessoa em relação a Deus,193 porém, mais tarde, Marx (1818-1883) vai oferecer a primeira crítica à subjetividade, propondo que a pessoa é, sim, produto de relações.194 Descartes (1596-1650) já afirmara o seu “cogito, ergo sum”, reconhecendo o valor da lógica e da razão. Mas, na esteira da idade contemporânea, as “filosofias” da pessoa vão dar determinação à comunhão, que passa a ser a gênese do eu. Refletindo neste sentido encontramos Max Scheler (1874-1928) e Martin Buber (1878-1965), com sua obra Eu e tu.195

Nos limites da modernidade e mais próximo de nós está o pensamento de Locke, que ainda impera. Locke vai afirmar que cada pessoa é um centro de consciência de si, tendo determinada liberdade em suas ações e relações com os outros e até com Deus. E que, em retrospecto, a pessoa está referida profunda e inexoravelmente às relações e à comunhão que possa ter.

Noutro esclarecimento, falamos sobre o termo “relação”,196 algo mais ou menos abstrato. Mas se, por relação, levar-se em conta a “linguagem trinitária, significa a ordenação de uma Pessoa às outras ou a eterna comunhão entre os divinos Três”.197 O termo “relação” é importante quando falamos de Trindade, porque remete ao tipo de movimento que as Pessoas divinas mantêm na sua vida “ad intra”. Mais profundamente porque nos orienta a compreender como as Pessoas divinas       

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BOFF, L. A Santíssima Trindade..., op. cit., p. 76.

190Id., ibid., p. 79-80. 191 DCT, p. 1397. 192Id., ibid. 193Id., ibid. 194Id., ibid. 195

BUBER, Martin. Eu e tu. São Paulo: Centauro, 2010.

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LADARIA, L. F. O Deus vivo..., op. cit. Ver o capítulo “As relações divinas”, nas p. 255-262. Também encontramos material para refletir a respeito nessa excelente obra: SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual de dogmática, vol. II. Petrópolis (RJ): Vozes, 1992, p. 445-493. Outro texto a ser consultado com essa finalidade é THEOBALD, Christoph. “Deus é relação”: a propósito de alguns enfoques recentes do mistério da Trindade. Concilium, v. - , n. 289, jan. 2001, Petrópolis (RJ), p. 47- 90. 

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comportam-se, chegando ao ponto máximo de uma espécie de interpenetração que é designada por um termo de origem grega, “pericórese”.198 O termo “relação” também é objeto de estudo no campo da filosofia,199 não nos restringimos, em seu estudo, portanto, apenas ao sentido teológico, área em que figura como termo técnico para a compreensão da Trindade.