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A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO NA CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM DO CONCÍLIO VATICANO II

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Elcio Rubens Mota Felix

A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO NA CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA

DEI VERBUM DO CONCÍLIO VATICANO II

MESTRADO EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA

(2)

Elcio Rubens Mota Felix

A Relação Palavra-Espírito Santo na Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como pré-requisito para obtenção do grau de Mestrado em Teologia Sistemática. Orientador: Pe. Dr. Kuniharu Iwashita.

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Banca Examinadora

______________________________

______________________________

(4)

AGRADECIMENTOS

Aos que, de alguma forma, muito ou pouco, fizeram parte deste processo de reflexão e pesquisa. E cada pessoa, a seu modo, esteve presente.

Aos meus queridos, que, pelo dom da vida e pelo exemplo, ensinaram-me a escutar.

Ao meu orientador, o padre Pedro Iwashita, por suas orientações precisas e pela paciência.

Aos professores, que, cada um em sua área, com competência, ajudaram-me a elaborar meu trabalho:

a Antônio Manzatto, que, na História dos Dogmas, ajudou-me a olhar alguns fundamentos da fé dentro de um contexto bem maior, que é o do desenvolvimento ou evolução da fé cristã;

a Boris Agustin Nef Ulloa, que, com base na Sagrada Escritura, abriu-me caminhos para o aprofundamento sobre a tradição;

a Maria Freire da Silva, que me despertou com clareza para a importância das técnicas da escrita no trabalho de dissertação;

a Matthias Grenzer, que me ajudou a compreender a importância das tradições do Êxodo para a formação das fontes da vida de fé do povo de Israel e também a nossa, enquanto cristãos;

ao professor Ney de Souza, que me fez aprimorar a leitura e a compreensão sobre o documento da Constituição Dei Verbum, quando do seminário sobre os 50 anos do Concílio Vaticano II.

ao padre Valeriano dos Santos Costa, meus agradecimentos por inspirar-me e, ao mesmo tempo, instigar os estudos numa futura pesquisa sobre a o Espírito Santo na Liturgia.

(5)

necessidade de a teologia partir sempre da realidade, e, para isso, a escuta torna-se primordial.

À Faculdade Vicentina, na qual desenvolvi os estudos de pós-graduação em espiritualidade, com base nos quais me foi suscitado o propósito de um mestrado.

(6)

RESUMO

O presente trabalho pretende verificar a relação entre a Palavra e o Espírito na Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II. Para isso, vamos, num primeiro momento, nos deter na análise dessa Constituição situando-a no contexto do Vaticano II. É ali que a Dei Verbum é elaborada. Em seguida e com base na análise do texto da Dei Verbum, focaremos nossa pesquisa estritamente nas referências ao Espírito ali feitas. Neste sentido, nossa investigação, de cunho predominantemente bibliográfico, procura mostrar que, embora sejam pouco numerosas as referências ao Espírito naquele documento, em sua leitura é possível caracterizar ou identificar as formas de relação entre a Palavra e o Espírito. E ainda mais se nessa leitura for levado em conta, como é nosso propósito, que a Dei Verbum é essencialmente um documento voltado para expor uma doutrina sobre a revelação da Palavra de Deus. Verificamos também que essa doutrina tem entre seus pressupostos que a relação entre a Palavra e o Espírito provocará a escuta do ser humano à Palavra, levando-o a dar, por sua vez, uma resposta, que é a de também buscar escutá-la. Da genuína escuta da Palavra de Deus que se revela no Espírito, à qual o homem se dispõe, podem depender todas as outras formas de relação em que o ser humano se envolve: a relação consigo mesmo, a relação com o(s) outro(s), a relação com o mundo, com a sociedade e até a relação com as coisas. Da autêntica capacidade do homem de escutar a Palavra de Deus pode depender um novo modo de ser e de viver do homem neste mundo. Algo que o próprio Concílio já aventava, ou melhor, estava pressuposto em suas deliberações. O espírito conciliar propunha essencialmente a atualização da relação com a sociedade, com o mundo, com a ciência. E certamente é a escuta que daria os contornos dessa relação.

(7)

ABSTRACT

This assignment aims to verify the relation between the Word and the Spirit in the Dei Verbum Dogmatic Constitution, of Vatican Council II. Therefore, we are going to analyze, at first, this Constitution, placing it in the Vatican Council II. It is in it that the Dei Verbum is elaborated. After, we are going to focus our research based on the analysis of the text from the Dei Verbum; we are going to strictly focus our research in the references that are done in it about the Spirit. In this way, our investigation, which is predominantly bibliographical, tries to show that, although there are few references about the Spirit in that document, when you read it, it is possible to characterize or identify the ways of relation between the Word and the Spirit. And even more if this reading is taken into account, as it is our purpose, that the Dei Verbum is essentially a document aimed to present a doctrine about God’s Word revelation. We also verify that this doctrine has among its presumptions that the relation between the Word and the Spirit will cause the human’s listening to the Word, conducting him to give an answer, which is also to look for listening it. From the genuine listening of God’s Word which is revealed into the Spirit, and the man offers to do, they may depend on all the other ways of revelation in which the human being involves himself: the relation with himself, the relation with the others, the relation with the world, with the society and even the relation with the things. From the authentic man’s ability of listening God’s Word can depend on a new way of man’s being and living in this world. Something that the Council has already said, namely it was presupposed in its deliberations. The Council spirit essentially proposed the society’s updating relation, with the world and the science. And definitely it is the listening that could give the outlines of this relation.

(8)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...11

1º CAPÍTULO: A DEI VERBUM...18

1. O CONTEXTO ECLESIAL DA DEI VERBUM...20

1.1. O Concílio Vaticano II...20

1.1.1. Os movimentos que influenciaram o Vaticano II...21

1.1.2. O ambiente histórico-social e eclesiástico às vésperas do Concílio...23

1.1.3. Do anúncio do Concílio à sua abertura...25

1.1.4. Abertura e andamento da Assembleia Conciliar...26

2. O CONTEXTO HISTÓRICO DA DEI VERBUM...27

2.1. As grandes influências sobre a Dei Verbum...28

3. O ITINERÁRIO DA REDAÇÃO DA DEI VERBUM...32

4. A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM...39

4.1. O tema fundamental da Dei Verbum: a revelação...44

4.1.1. Revelação ... 44

2º CAPÍTULO: A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO NA DEI VERBUM...56

1. ESCLARECIMENTOS...57

2. A PALAVRA...60

2.1. A Palavra de Deus e o Espírito Santo...64

2.1.1. A Palavra de Deus...64

2.1.2. O Espírito Santo...73

3. A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO COM BASE NO TEXTODA DEI VERBUM...78

3.1. Relação Palavra-Espírito numa perspectiva bíblica...79

(9)

3.3. A relação Palavra-Espírito com base nas referências ao Espírito Santo no texto

da Dei Verbum...84

A) 1ª Linha de reflexão: Cristo no Espírito, tem-se acesso ao Pai (DV, 2)...84

B) 2ª Linha de reflexão: O Espírito e a inspiração: o hagiógrafo e as Escrituras (DV, 7, 9, 11, 20)...85

C) 3ª Linha de reflexão: O Cristo ressuscitado envia o Espírito de verdade (DV, 4, 6, 11, 17,19)...88

D) 4ª Linha de reflexão: O Espírito assiste a Tradição dada por Cristo (DV, 8, 9, 10, 20, 23)...90

3º CAPÍTULO: A ESCUTA COMO RESPOSTA À PALAVRA QUE SE REVELA...94

1. OUVIR E ESCUTAR: UMA SUTIL DIFERENÇA...95

2. A ESCUTA E A PALAVRA DE DEUS...97

3. A ESCUTA NO HORIZONTE DA DEI VERBUM...103

3.1. Ouvindo religiosamente a Palavra de Deus...106

3.2. O contexto conciliar...107

A) A Assembleia Conciliar...107

B) O contexto da Assembleia Conciliar...108

4. BASE BÍBLICA DO “OUVINDO RELIGIOSAMENTE A PALAVRA DE DEUS”...108

5. JESUS COMO NOVO MOISÉS E MODELO DE ESCUTA...112

6. A ESCUTA COMO RESPOSTA...117

CONCLUSÃO...127

(10)

SIGLAS

AG Ad Gentes. Constituição Pastoral sobre a missão da Igreja no mundo

Bíblia do Peregrino

CIC Catecismo da Igreja Católica

ComDV L. Alonso Schökel (ed.). Comentários à Constituição Dei Verbum Dap. Documento de Aparecida

DB Dicionário bíblico, 9ª ed. São Paulo: Paulus, 2005

DCT Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004 DEB Dicionário enciclopédico da Bíblia. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004 Denz. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral DF Constituição Dogmática Dei Filius sobre a fé católica. Vaticano I Documento do Vaticano II

DTF Dicionário de teologia fundamental. Petrópolis (RJ): Vozes/Santuário, 1994, 1094 p.

DM Dicionário de mariologia. São Paulo: Paulus, 1986

DV Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a revelação divina EDAS Encíclica Divino Afflante Spiritu

EPD Encíclica Providentissimus Deus ESP Encíclica Spiritus Paraclitus

NDT Novo dicionário de teologia. São Paulo: Paulus, 2009 OT Optatam Totius. Declaração sobre a formação presbiteral RDV PIAZZA, W. A revelação cristã: na Constituição Dogmática Dei Verbum

TEB Bíblia Tradução Ecumênica TEB. São Paulo: Loyola, 1996 VD Verbum Domini

(11)

INTRODUÇÃO

Desde o Concílio Vaticano II (1965), tem-se observado a busca de elaboração sistemática (pneumatologia) da ação do Espírito Santo na Igreja, no mundo e na vida do ser humano. Ao mesmo tempo, no próprio Concílio, ouviram-se “vozes: observadores ortodoxos, protestantes anglicanos que afirmaram que o Concílio esqueceu-se do Espírito, devido à precariedade de referência ao Espírito Santo nos textos dos documentos conciliares”.1

Diante da precariedade de referências ao Espírito Santo nos documentos do Concílio, o tema da relação entre Palavra e Espírito reveste-se de certa dificuldade, especialmente quando procuramos identificar uma pneumatologia elaborada na Dei Verbum, por causa da revelação de Deus. Evidentemente com este cenário, indagamos: que implicações surgem dessa relação entre Palavra e Espírito na Dei Verbum? Ou que consequências a relação entre Palavra e Espírito pode trazer à Igreja e aos homens e mulheres de nosso tempo? Essas indagações são pertinentes e se põem como desafiadoras ao nosso trabalho. Ousamos dizer que vamos buscar abordá-las.

Nos dezesseis documentos elaborados pelo Concílio Vaticano II, ocorre 260 vezes a referência ao Espírito Santo. Na Dei Verbum, porém, somente 25 vezes é citado o Espírito Santo. É preciso admitir que há pouca referência ao Espírito na Dei Verbum, se a comparamos aos demais documentos conciliares, como, por exemplo, a Lumem Gentium (Constituição sobre a Igreja). Este documento é aquele do qual mais constam referências ao Espírito Santo. Esta escassa menção ao Espírito,       

1

CODINA, Vitor. Creio no Espírito Santo: pneumatologia narrativa. São Paulo: Paulinas, p. 55. A observação e a crítica mais contundentes quanto ao esquecimento do Espírito no Vaticano II, mas formuladas de modo mais amplo, deram-se de forma mais incisiva pelas considerações do teólogo ortodoxo Paul Evdokimov, que diz: “a ausência da economia do Espírito Santo na teologia dos últimos séculos como também seu cristomonismo determinaram que a liberdade profética, a divinização da humanidade, a dignidade adulta e régia do laicato e o nascimento da nova criatura fiquem substituídos pela instituição hierárquica da Igreja posta em termos de obediência e submissão” (O

(12)

entretanto, nem por isso significa desprezo ou pouco-caso à terceira Pessoa Trinitária. Tanto isso é verdade, que, terminado o Concílio, anos mais tarde (6/6/1973), o papa Paulo VI, numa audiência geral, reconhece: “à Cristologia e especialmente à eclesiologia do Concílio deve suceder um estudo novo e um culto novo sobre o Espírito Santo, precisamente como um complemento que não deve faltar ao ensino do Concílio”.2

Este trabalho de alguma forma apoia-se nesse pensamento do papa Paulo VI, como a motivação e o propósito de pesquisa. E, dessa mesma afirmação no Sagrado Concílio até hoje, passou-se quase meio século, tendo já ocorrido nos tempos atuais enormes transformações no mundo e na Igreja. Aliás, o próprio Concílio foi e ainda é instrumento de transformação. É o Concílio que nos recomenda uma sistematização mais elaborada, um estudo mais apurado sobre o Espírito Santo, ou seja, uma pneumatologia. Por isso, são indispensáveis o estudo e a compreensão da interação entre Palavra e Espírito. Se o Concílio já apontava para a renovação da Igreja, são imprescindíveis o estudo e o conhecimento da relação entre Palavra e Espírito. Porque é o Espírito que dinamiza a Palavra. Também, a Igreja não vive sem a Palavra, e a Palavra não age sem o Espírito. Portanto, o estudo da relação entre Palavra e Espírito será relevante para a compreensão deste trabalho. Compreender essa relação, e seu reflexo para nós e para nossa vida, é determinante. Com efeito, serão consideradas as implicações da relação Palavra-Espírito em nosso contexto de fé, ou em nossa vida cristã.

Em outras palavras, o que pretendemos3 é verificar a relação Palavra-Espírito na Constituição Dogmática Dei Verbum, porque este é o documento que trata sobre a revelação, em busca da elaboração de uma doutrina da revelação divina ou da revelação da Palavra de Deus.4

      

2

Audiência geral de Paulo VI de 6 de junho de 1973. Insegnamenti di Paolo VI, v. XI, 1973, p. 477 (citado em JOÃO PAULOII. Encíclica “Dominum et Vivificantem” sobre o Espírito Santo na vida da

Igreja e do mundo. São Paulo: Loyola, 1986, p. 274).

3

Quando digo “pretendemos”, quero significar “quanto ao objetivo deste trabalho”.

4

(13)

No primeiro capítulo, vamos analisar a Constituição Dei Verbum, situando-a em seu contexto eclesial e histórico. Abordar o seu contexto é verificar o lugar, as forças e os envolvidos em sua redação e o itinerário em que é elaborada. É neste contexto que será produzido o documento que trate de uma “doutrina” sobre a revelação divina e é só por ela que pensaremos a relação Palavra-Espírito. Para tanto, será conveniente pinçar para análise, por exemplo, as grandes influências sobre a redação da Dei Verbum, que não se podem esquecer. Houve várias delas sobre essa Constituição,5 como o espírito conciliar, alguns documentos do Magistério da Igreja, a caminhada da Igreja que se fazia até então e, particularmente, o “clima” de assembleia conciliar,6 em que todos estavam envolvidos.

Sendo feita essa análise do documento em seu contexto histórico e eclesial, entraremos no coração de nosso trabalho. Trataremos no segundo capítulo da relação entre Palavra e Espírito. Era preciso vasculhar o texto da Dei Verbum para assim nos lançarmos num empreendimento posterior. Com isso, recorreremos às 25 referências ao Espírito Santo no texto do documento da Dei Verbum. E é somente com base nestas 25 referências que será possível desenvolvermos o respectivo estudo sobre a relação entre a Palavra e o Espírito. Não é sem sentido a intenção dos padres conciliares em dispor no texto a sutil harmonia entre Palavra e Espírito, como a lemos na Dei Verbum, e que podemos ver em algumas partes do texto, como, por exemplo, “A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo” (DV, 9).

E ainda mais numa outra parte do texto, em que encontramos a afirmação de que a Sagrada Tradição só progride se assistida pelo Espírito. Está assim elaborada no texto da Constituição: “Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo” (DV, 8).

      

5

As pesquisas apontam para o fato de que a Dei Verbum não foi elaborada, por assim dizer, da estaca zero, nem foi redigida em papel absolutamente em branco. Há algumas influências sobre este documento, que, a nosso ver, são o espírito conciliar, os movimentos e alguns documentos da Igreja. Noutra linha, consideraremos dois grandes contextos em que este documento surge: seus contextos eclesial e histórico.

6

(14)

E as demais citações estão em perfeita harmonia entre si. Como são 25 as referências ao Espírito Santo, abordaremos todas elas buscando fazer uma reflexão teológica e tendo como base a Tradição da Igreja.

É com apoio nisso que será desenvolvido o estudo desse capítulo. Procurando elaborar o significado e a contribuição teológica dessa Constituição para a Igreja e para nossa fé. Portanto, não são sem sentido as referências ao Espírito Santo ao longo do documento, porque o Espírito está sempre em estreita ligação com a Palavra, e a Palavra sempre age no Espírito.

Ora, por que há essas constantes referências ao Espírito Santo num texto de Constituição dedicada à revelação divina, a Palavra de Deus? Cogitamos que a Igreja quis deixar bem clara a insofismável interação entre o Espírito Santo e a Palavra que se revela. É tendo em mente essa observação que pesquisaremos o conjunto das 25 referências no contexto dessa Constituição Dogmática.

Com o estudo do documento da Dei Verbum e a reflexão teológica da relação entre Palavra e Espírito, focaremos nosso propósito nos desdobramentos ou nas consequências desta relação. Num outro aspecto, queremos apresentar algo bem concreto, que possa contribuir para nossa vida cristã. Propondo um caminho que seja o ponto de chegada em que deságua a relação entre a Palavra e o Espírito. No último e terceiro capítulo trataremos da ressonância da interação entre Palavra e Espírito na vida e na fé cristã. Ousamos propor a escuta como este momento privilegiado e insubstituível, de onde ressoa ou reflete a relação entre a Palavra e o Espírito. A escuta é uma resposta do “homem à revelação da Palavra”.7 Por isso, é na escuta que se faz ecoar misteriosamente a revelação da Palavra, porque é o Espírito quem a dinamiza. Mais ainda: porque é a uma Pessoa que escutamos, Jesus Cristo! A Palavra de Deus “deve, antes de tudo, ser ouvida”8 (numa escuta). A escuta de um interlocutor, tal como na ordem shemá, Israel (Dt 6,4).

O tema da escuta permitirá abrir horizontes para um novo modus operandi,9

porque possibilita a relação com a Palavra, que, por sua vez, é dinamizada pelo Espírito. A escuta acaba por tornar-se o grande sinal do que já nos indicava o       

7

MANNUCCI, Valério. Bíblia palavra de Deus. São Paulo: Paulus, 2008, p. 37.

8Id., ibid

.

9

(15)

Concílio Vaticano II: aquela abertura do diálogo. Sem a escuta, não se pode chegar ao diálogo.

Adquirimos certa convicção de que o encontro com as pessoas, a inserção na sociedade, em nosso mundo, e quiçá a relação conosco mesmos, depende fundamentalmente e, sobretudo, de nossa capacidade de escutar. Sem a escuta, é impossível o diálogo tal qual nos propunha o Concílio. Consequentemente, a escuta pode materializar as implicações que a relação entre Palavra e Espírito pode trazer à nossa vida de fé ou à nossa vida cristã. Dessa atitude de escuta, pode sobrevir uma nova forma de posicionar-se na vida. Disso podem depender novas relações, se a escuta é, sobretudo, uma relação com a revelação divina, sua Palavra e seu Espírito. É verdade também que a escuta pode instaurar uma nova maneira de relacionamento com os seres humanos que somos nós. Pode transformar nossa maneira de nos relacionarmos conosco mesmos,10

com os outros e até nossa relação com as “coisas”.11

Definidas essas “pretensões”,12 não esquecemos que tudo isso é um grande desafio. E não devemos perder de vista os grandes desafios existentes no mundo em que vivemos. Numa sociedade como a nossa, constatamos, especialmente nas áreas urbanas, a “cultura do barulho”.13 Numa cultura como a nossa deparamos com sons ensurdecedores, que nos agridem continuamente. Nas ruas, o ronco de motores de veículos e buzinas; em casa, a televisão, o rádio; e em toda parte palavrões dos mais variados. Mesmo em nossas comunidades cristãs, observava Adélia Prado: “não faltam caixas de som cada vez mais potentes de sons       

10

Enfatizo essas palavras para referir-me especialmente à maneira pela qual nós nos escutamos. Quando digo que a escuta pode mudar nossa maneira de escutar a nós mesmos, quero apontar para uma perspectiva nova de as pessoas relacionarem-se consigo mesmas.

11

A escuta também pode ajudar na formação de um novo modo de relacionar-se com as coisas. Quero dizer, especialmente, com a matéria, com o universo dos objetos. Não é grande a preocupação do mundo atual com o consumismo? Preocupação que nos leva a ser dominados ou nos deixarmos dominar pelas coisas, pelo apego às coisas?

12

Tais pretensões são exatamente os objetivos específicos deste trabalho.

13

ALVES, Ephraim Ferreira. A arte de meditar: princípios fundamentais e sugestões práticas. Grande

Sinal, fasc. 3, n. 01-03, mai.-jun. 2001, Petrópolis (RJ), p. 293-295. Conferir também reportagem na revista do jornal Folha de S.Paulo, relatando alguns estudos sobre a medição dos decibéis na cidade de São Paulo: vivemos com níveis de ruído muito acima do recomendado. Com o excesso de barulho, os médicos alertam para os danos à saúde, e o mercado de janelas antirruído comemora – a procura, dizem, nunca foi tal alta! (RIBEIRO, Bruno. Silêncio, por favor. Revista de Domingo. Folha de

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altíssimos”.14 Não é exagero nenhum afirmar que são inúmeras as pessoas queixosas de não terem sido capazes de escutar e serem escutadas. A impossibilidade de escutar e ser escutado(a) leva a uma das maiores angústias que nos assolam na realidade em que vivemos. Ao mesmo tempo em que não praticamos a escuta, também não a vemos ser praticada.

Numa realidade pastoral, é possível notar essa dificuldade de escutar. Mesmo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por suas “orientações pastorais”,15 reconhece, pela experiência pastoral, a dimensão do problema existente. Problema particularmente presente na vida dos jovens: “O desafio para o jovem – assim como para todos os que aceitam Jesus como caminho, verdade e vida – é escutar a voz de Cristo em meio a tantas outras vozes”.16 O problema está entre nós e os desafios presentes.

É nesse contexto que vivemos a nossa fé em Cristo. É nessa realidade que vivemos nossa vida. E, em se tratando de vivência da fé, por estes tempos, temos deparado com um grande número de pessoas que não escutam mais a Palavra de Deus, a Sagrada Escritura especialmente – isso sem falar da escuta do Espírito. Os “sinais dos tempos”, evocados por João XXIII no Concílio Vaticano II, tornaram-se simplesmente um mistério, porque desaprendemos a escutar.

Diante dessa cultura do barulho, torna-se difícil escutar a Palavra de Deus, e mais ainda seu Espírito – na hipótese de que seja possível escutar a Palavra sem o Espírito, pois é o Espírito que dinamiza a Palavra de Deus na vida e no coração do fiel. Por conta disso, não tomamos consciência de que o encontro com a Palavra de Deus tornou-se precário, diminuído, substituível. O encontro com a Palavra de Deus é continuamente substituído pelo contato com outros objetos ou realidades que comovem ou atraem mais incisivamente homens e mulheres do nosso tempo, como, por exemplo, a TV, a Internet e os celulares de alta tecnologia. Estes últimos são a febre do momento, e até as crianças os utilizam. O uso desses recursos eletrônicos       

14

PRADO, Adélia. Missa é como poema, não suporta enfeite nenhum. Vida Pastoral, n. 267, jul.-ago. 2009, São Paulo, p. 3-4.

15

São também chamadas de Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE). Essa problemática, que é de cunho social, reflete-se no âmbito pastoral da Igreja. Há tempos já vem sendo detectada nos últimos documentos pastorais da Igreja (Evangelização da juventude, n. 60, 2007, p. 32 [Publicações da CNBB, n. 3]). Está presente também no documento mais atual, fruto da Assembleia da CNBB deste ano (DGAE, n. 94, 2011-2015, p. 53).

16Evangelização..., op. cit.,

(17)

provoca experiências mais imediatas de prazer e satisfação, não compromete, não nos exige, basta consumir. Diferente é o encontro com a Palavra de Deus.

Ora, o que pode ser mais fundamental para nossa fé, se não o que está sendo deixado de lado, isto é, o encontro com a Palavra de Deus e seu Espírito? Logo, a escuta17 da Palavra de Deus no dinamismo do Espírito torna-se questão central. Saber identificar a ação da Palavra de Deus em nossa vida, ou o que a Palavra de Deus quer dizer no concreto de nossa existência, mostra-se como uma obrigação. No que a Palavra de Deus pode nos orientar? O que ela significa para nossa vida? Ou, com base em suas indicações, que referência dela podemos obter para nossa opção de vida ou nossas decisões, e também nossos princípios e valores? Tudo isso se torna fundamental para nós quando nos damos conta de que a Palavra de Deus não age sem o Espírito, nunca está dissociada do pneuma (VD, n. 16, p. 36).18 O Espírito sempre acompanha, dinamiza e dá vigor, revitalizando a Palavra. Além disso, não é demais lembrarmos o profeta Isaías, que nos fala sobre a Palavra de Deus: “Buscai o Senhor enquanto se deixa encontrar, invocai-o enquanto está perto” (Is 55,6).

A Palavra de Deus19 está presente em nós e entre nós. Nunca se negou a agir na vida da Igreja e na vida do cristão. A Palavra de Deus e seu dinamismo provocado pelo Espírito em nós, em nosso coração e na vida de homens e mulheres que vivem neste mundo,20 tornam-se uma necessidade absoluta. Deveríamos por ora (re)despertar para essa dimensão. Depurar-nos do que nos impede de valorizar essa dimensão da escuta da Palavra de Deus e do dinamismo do Espírito.

      

17

Lembrar que ao povo de Israel pediu que o escutasse (Dt 6,4). Sobre este tema da escuta especificamente (LORENZIN, Tiziano. “Ouve, Israel” A escuta na Bíblia. Grande Sinal, v. 61, n. 64, jul.-ago. 2007, Petrópolis, RJ, p. 512-520; PEYRON, Francisco. Rezar é escutar. Grande Sinal, v. 63, n. 5, set.-out. 2009, p. 471-477).

18

Diz a mesma exortação apostólica sobre a Palavra de Deus que “não podemos chegar a compreender a Escritura sem a ajuda do Espírito Santo que a inspirou”.

19

É preciso deixar claro que, quando dizemos “Palavra de Deus”, a entendemos tal qual a Igreja: de forma ampla, não restrita exclusivamente à Sagrada Escritura.

20

Existe a afirmação de que só haverá “um modo dignamente humano de falar sobre Deus, se se consistir em primeiro lugar e sobretudo se tentarmos escutá-lo” (FAUS, José I. González; VIVES, Josep. Crer, só se pode em Deus. Em Deus só se pode crer. Ensaio sobre as imagens de Deus no

(18)

1º CAPÍTULO: A

DEI VERBUM

A Dei Verbum seguiu os mesmos passos das sessões do Concílio Vaticano II.21 Começou quando se abria o Concílio, em sua primeira sessão, e quase quando se encerrava a última sessão do mesmo Concílio, poucos dias antes, esta Constituição era enfim aprovada e promulgada. A Dei Verbum22

foi um dos mais importantes documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), assim consideram importantes estudiosos23 do tema. Alguns padres do Concílio expressam com clareza os avanços da Dei Verbum. Levando em consideração as tensões no processo redacional,24 vários padres do Concílio tiveram a firme atitude de expor seu ponto de vista. O exegeta e cardeal Florit assim se manifestava sobre o projeto da Dei Verbum:

“é uma das mais breves entre as promulgadas pelo Concílio, mas ao mesmo tempo uma das mais ricas em doutrina e ainda a coloca no coração do mistério da Igreja e no centro do ecumenismo”.25

Outro exegeta, o S. E. Mons. Weber, arcebispo de Estrasburgo, diz “que a Dei Verbum foi o prefácio da Constituição Lumem Gentium e, ao mesmo tempo, é prefácio de todos os documentos conciliares”.26

      

21

Cf. JIMÉNEZ, G. Humberto. Dei Verbum. Historia de su redacción. Cuestiones Teológicas y

Filosóficas, v. 32, n. 78, 2005, Medellín (Col), p. 209-224. Esse autor fez seus estudos em Teologia antes do Vaticano II. Trata-se de um biblista. Foi também aluno de Sebastian Tromp, que mais tarde acabaria sendo o secretário da comissão teológica no Concílio Vaticano II. Ver também o excelente artigo sobre a Dei Verbum, escrito de forma sintética e concisa, em DTF, p. 194-198.

22

Fala-se também da celebração dos 40 anos da Dei Verbum (cf. LLAGUNO, Miren Junkal Guevara. A los 40 años de la Dei Verbum: la palavra recuperada?Proyección, v. 52, n. 219, ed. 219, out.-dez. 2005, Granada, Esp, p. 349-370).

23

Alguns estudiosos referem-se à Dei Verbum como um documento de “grande relevância” em relação aos demais documentos do Concílio Vaticano II: Piazza, por exemplo, considera que a Dei

Verbum ocupa no Concílio uma posição-chave (RDV, p. 15). Gregorio Ruiz destaca esse documento por sua importância, vital à revelação. O documento merece louvor porque o tema da revelação é que cria, constitui e mantém a Igreja (ComDV, p. 4); para Latourelle, a Dei Verbum é um documento que pode ser visto como o primeiro entre os grandes documentos do Vaticano II (cf. LATOURELLE, René.

Teologia da revelação. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 369).

24

Em DTF (p. 190) há uma observação interessante sobre a redação dessa Constituição, referida como uma “odisseia”. Aí também se afirma que “não é arriscado dizer que a Constituição Dogmática

Dei Verbum seja o documento mais qualificado do Concílio Vaticano II”.

25

(19)

Ao longo da elaboração da Dei Verbum, ocorreram embates memoráveis. Não há dúvida de que essas tensões foram fruto das mentalidades divergentes27 presentes no Concílio. Os conflitos que emergiram durante o Concílio já estavam presentes antes mesmo do início. Até a promulgação da Dei Verbum (18/11/1965), três longos anos se passaram. Em relação aos demais documentos do Concílio, a Dei Verbum foi o que mais tempo tomou para sua aprovação final.

Antes de analisar a Dei Verbum, é conveniente tomarmos conhecimento de seu contexto, do lugar em que foi redigida. Contextualizá-la será importante, pois sua elaboração não se deu no vazio, nem sem nexo com outras realidades circundantes. A Dei Verbum foi um documento elaborado a várias mãos,28 e está

situada em dois contextos: o eclesial e o histórico. A Dei Verbum insere-se primariamente nesse grande contexto de Igreja, um marco eclesial, que é, sem dúvida, o Concílio Ecumênico Vaticano II. Deste evento, projeta-se todo seu itinerário de redação, e seus debates. Era previsível que, em sua elaboração, estivessem presentes as diferentes visões de Igreja e de mundo. De outro lado, com uma proposta contrária à dos padres da Cúria, estavam, em maior número, os padres que esperavam grandes mudanças na Igreja. Esperavam sinceramente as mudanças necessárias, pelas quais já se gritava havia décadas. E várias delas já se encontravam em vias de concretização no nível dos movimentos.

      

26

LYONNET, S. A Bíblia na Igreja..., op. cit., p. 10.

27

Eram alguns grupos de padres conciliares que divergiam em suas posições. Com obras publicadas na Coleção Biblioteca de Autores Cristãos (BAC), havia grupos que tinham mentalidade “antiprotestante”, os quais conflitavam durante todas as sessões com outro grupo que estava mais ligado ao movimento ecumênico (cf. ComDV, p. 129; KLOPPENBURG, B., Concílio Vaticano II, op.

cit., p. 78).

28

(20)

1.1. O CONTEXTO ECLESIAL DA DEI VERBUM

1.1.1. O Concílio Vaticano II

Para melhor compreensão da Dei Verbum, é preciso rever29

o Concílio Vaticano II.30 Este Concílio, o vigésimo primeiro31 da história da Igreja, foi o evento-marco em que a Dei Verbum foi elaborada. É nessa assembleia conciliar que teremos de situar nosso documento temático.

Muitos consideram o Vaticano II um dos maiores eventos eclesiais de todos os tempos.32 E havia mesmo alguns que, nos bastidores, apontavam-no como um Concílio francês. O Vaticano II não foi, entretanto, um evento “isolado” no mundo, nem se pode entendê-lo como um acontecimento gerado somente na “segunda metade do século XX”.33 Faz-se necessário identificar algumas forças que o “influenciaram”,34 como, por exemplo, os movimentos bíblico-litúrgicos. Ademais, o Concílio foi, por assim dizer, uma resposta-reflexo às mudanças em desenvolvimento no mundo daquele tempo, e já era propósito do papa João XXIII, ao abrir o Concílio, buscar abertura e diálogo com o mundo. Entre os padres do       

29

É a proposta de Dom Demétrio Valentin, bispo de Jales (SP), em sua obra Revisitar o Concílio

Vaticano II, São Paulo, Paulinas, 2011, 61 p.

30

Nos 40 anos do Concílio Vaticano II, por este tempo, foram publicados diversos artigos em celebração a este evento. Indicamos alguns artigos que podem iluminar seu significado para a Igreja (cf. GOPEGUI, Juan A. Ruiz. Concílio Vaticano II. Quarenta anos depois. Perspectiva Teológica, ano XXXVII, n. 101, jan.-abr. 2005, Belo Horizonte, p. 11-30; CODINA, Victor. El Vaticano II, un Concilio en proceso de recepción. Selecciones de Teología, v. 177, n. 45, jan.-mar. 2006, Barcelona, Esp, p. 5-18; ZULUAGA, Mario Alberto Ramírez. A los cuarenta años de la inauguración del Concilio Vaticano II. Cuestiones Teológicas, 84/02, jun. 2003, Medellín, Col, p. 29-55; DTF, p. 1040-1049).

31

Sua santidade, o papa João XXIII, proferiu o discurso na abertura solene do Sagrado Concílio, em 11 de outubro de 1962.

32

ARIAS, Gonzalo Tejerina (coord.). Vaticano II. Acontecimiento y recepción. Estudios sobre el

Vaticano II a los cuarenta años de su clausura. Salamanca (Esp): Universidad Pontificia de Salamanca, 2006, p. 9.

33

COSTA, Sandro Roberto da. Contexto histórico do Concílio Vaticano II. In: TAVARES, Sinvaldo S. (org.). Memória e profecia. A Igreja no Vaticano II. Petrópolis (RJ): Vozes, 2005, p. 97.

34

(21)

Concílio, havia os que faziam parte de alguns daqueles movimentos, que, por sua vez, estavam impactados com as mudanças antes do Concílio, como a nova teologia. Na “nova teologia em gestação, surgia uma nova geração de teólogos que se destacariam no próprio Concílio, como Congar e Rahner”.35 E os que estudam o Concílio reconhecem a Dei Verbum como um documento “ecumênico, de atualização e pastoral”.36 Por isso a linguagem do Concílio é acessível, de fácil compreensão.

1.1.1. Os movimentos que influenciaram o Vaticano II

O Concílio Vaticano II é reflexo de um longo período de caminhada da Igreja, e houve vários fatores que o influenciaram. Uns mais, outros menos, como os movimentos, por exemplo, entre os quais abordaremos aqueles que mais marcaram o processo de elaboração da Dei Verbum, os movimentos bíblico, litúrgico, ecumênico e teológico.

O primeiro é o movimento bíblico, porque tem como eixo a Bíblia. Uma renovação estava se desenvolvendo no interior da Igreja e em vários países.37 Este movimento é o que lançaria mais luzes na elaboração da redação do futuro

      

35

COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 38.

36

É utilizado usualmente o termo “aggiornamento” para referir-se ao movimento de autêntica renovação ou atualização que marcou o Concílio. Não é só João Batista Libanio que enfatiza essas “características” do Concílio, mas é consenso entre todos os vários estudiosos (LIBANIO, J. B.

Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005, p. 67).

37

Desde o século XIX, na França, Bélgica e Alemanha já havia uma forte ação de retorno à Bíblia. Dali se fomentaram cada vez mais o uso e o estudo desta, reconhecendo que talvez a Bíblia tivesse sido “esquecida” pelos católicos até então e também levando em conta a traumática experiência da era pós-tridentina, que sucedeu a reforma protestante (com sua insistência na exclusividade da Bíblia) e que gerou um certo “abalo” na relação com a Bíblia. Eis alguns aspectos que fizeram parte do movimento bíblico: a) a aceitação do estudo da Bíblia com base no método histórico-crítico (1930); b) a criação da Escola Bíblica de Jerusalém (1938); c) a publicação da Encíclica Divino Afflante

(22)

documento Dei Verbum. O estudioso J. B. Libanio, entre outros que se aprofundaram nessa temática, afirma:

“por este movimento a Igreja experimentou os anseios de renovação propostos pela Modernidade. A modernidade entrou no mundo bíblico de forma que o contato com a Ciência e com novos métodos como o histórico-crítico possibilitou uma nova maneira de ‘manusear’ a Bíblia. Dessa forma ocorreu um interesse pessoal do fiel na leitura e no estudo da Escritura”.38

As características desse novo impulso dos estudos bíblicos dão sentido à influência exercida sobre a Dei Verbum. Com essa nova experiência de retomada da centralidade da Palavra de Deus, era necessário um documento que pudesse esclarecer de forma segura e sólida alguns princípios para o uso da Bíblia, e este veio a ser a Dei Verbum.39

O segundo movimento é o litúrgico, que estava em andamento com diversas iniciativas em torno da liturgia e da participação ativa dos fiéis batizados, até mesmo e especialmente os leigos.40 No mesmo espírito de renovação, ocorriam várias ações ecumênicas. Estas, por sua vez, buscavam maior proximidade entre as denominações religiosas. Mais tarde, às vésperas do Concílio, a Igreja Católica acabaria aderindo a essas ações.41

Por último, mas não menos importante, o movimento teológico ou da nova teologia. Este movimento desenvolvia-se havia décadas em torno da reflexão sobre a volta às fontes, o retorno à patrística e o contato mais próximo com a Sagrada       

38

 LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 25. 

39

A Dei Verbum não foi só um documento iluminador no tocante à Palavra de Deus, mas sobretudo suscitou outros estudos e documentos após sua promulgação. Um deles e muito importante é o documento publicado pela Pontifícia Comissão Bíblica em 1993, sobre a interpretação da Bíblia. O mais recente nessa linhagem de estudos é o “Verbum Domini: exortação apostólica sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”, de 2008.

40

Esse movimento teve sua origem nas primeiras décadas do século XX (1909), no interior de alguns mosteiros belgas. Dom Lambert, no mosteiro beneditino de Monte-César, divulgava milhares de exemplares de texto de missa de cada domingo, traduzido e comentado. Levando os católicos à devida participação na liturgia, especialmente os leigos. Tal atitude propagou-se para além da Bélgica, espalhando-se por diversos países, originando uma profunda “renovação” na liturgia (cf. COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p.101-102).

41 Id., ibid.,

(23)

Escritura. Este movimento retomava de forma revigorada o retorno à teologia dos santos padres e igualmente à centralidade da Palavra de Deus (Sagrada Escritura) na vida cristã. Grandes expoentes dessa “nova teologia” contribuíram para o surgimento de diversas publicações42 e também se destacariam no Concílio.

1.1.2. O ambiente histórico-social e eclesiástico às vésperas do Concílio

Às vésperas do Concílio, o mundo alcançara enormes mudanças, que neste trabalho não seria possível identificar. Numa esfera mundial do pós-Segunda Guerra, a guerra fria marcava as relações entre os países,43 e o surgimento de um “Terceiro Mundo” já se avistava, no qual, assim como na Europa, a Igreja teria que ser repensada.44 O êxodo rural crescia, provocando o aumento das cidades e o surgimento de grandes metrópoles como São Paulo e Cidade do México, por exemplo. A explosão, naquele período e nos anos seguintes, em larga escala da “miséria em diversos países do Terceiro Mundo principalmente era perceptível e fazia pouco tempo que o ser humano chegara à Lua; na esfera política ocorria o recrudescimento da relação capitalismo-socialismo-comunismo”;45 a popularização dos meios de comunicação crescia ano após ano desde o advento da televisão, e o mundo iniciava seu processo de globalização. Tudo isso era mais, muito mais que um mundo em mudança.

Numa dimensão menor, mas preocupante, a Igreja internamente passava por tempos difíceis, antes e depois da Segunda Grande Guerra (de 1939 a 1945). Além       

42

COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 106-108. Especificamente no âmbito da teologia católica, ocorreu também uma profunda renovação. O movimento teológico configurava-se como uma nova teologia, marcada pela renovação da volta às fontes patrísticas e bíblicas. Tal renovação vinha originalmente da Bélgica, França e Alemanha, especialmente de jesuítas e dominicanos. Podemos destacar alguns nomes presentes nesses inícios que mais tarde tiveram grande atuação no futuro Vaticano II: J. Danielou, K. Rahner, Y. Congar, M. D. Chenu, H. de Lubac. Surgiam também periódicos notáveis como o Étude e o Recherches de Science Religieuse, assim como as revistas

Angelicum, L’Année, e outras que renovaram a teologia da época.

43Id., ibid.,

p. 95.

44Id., ibid.,

p. 96.

(24)

das grandes mudanças no mundo, também houve profundas transformações dentro da Igreja. Leão XIII faz a transição do século XIX para o século do Vaticano.46 Antes do Vaticano II, a Igreja conhece a era dos papas “Pios: Pio X (1903-1914), Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958). Tempo de centralismo e firme defesa da fé católica e também irredutível na abertura ao mundo moderno que já se iniciara no século XIX”. A Igreja, mesmo diante das mudanças no mundo, encontrava-se paralisada, estagnada. O que impera é o continuísmo, o imobilismo doutrinário e o fortalecimento da hierarquia.47 Posturas que a Igreja, especialmente a hierarquia, haveria de rever no novo Concílio.

Apesar do anacronismo, há sinais de renovação na Igreja, com avanços e retrocessos. Além dos movimentos (cf. o item 1.1.1.), há a busca de respostas aos questionamentos de um mundo em mudança: no diálogo com outras religiões, por exemplo. Isso também expõe “indícios de insatisfação com as posições da Igreja, especialmente da hierarquia”.48

O papa Pio XII (1939-1958) chegava ao fim de seu pontificado. Angelo Roncali sucede-o em meio a grandes dúvidas e preocupações sobre a sucessão. Angelo então é eleito papa em outubro de 1958. Não foram poucos os que até então pensavam que o novo papa seria um “papa de transição, por sua idade avançada. Na época de sua eleição, João XXIII estava com 77 anos”.49 Na escolha de seu nome, “João, o novo papa inovava. Pois, escolhendo ser chamado de João, levava em conta sua origem familiar”.50

      

46COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit.,

p. 98.

47Id., ibid. 48Id., ibid.,

p. 100.

49

LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 59.

50Id., ibid.,

(25)

1.1.3. Do anúncio do Concílio à sua abertura

A expectativa de que o novo papa fosse apenas de transição foi rapidamente desmentida. Três meses depois de sua eleição, João XXIII anuncia importantes eventos.51 Na celebração da conversão de São Paulo, “o papa anuncia aos cardeais presentes sua vontade que imediatamente produziu grande surpresa a todos, que em breve o mundo tomaria conhecimento”.52 As reações da parte dos cardeais foram distintas: alguns a acolheram bem, mas outros receberam-na com resistências e desaprovação. Já estava posto sobre a história da Igreja este grande projeto, que o papa considerava como “obra do Espírito Santo”.53 Kloppenburg diz que o anúncio do Concílio levou “surpresa ao mundo e à esfera eclesiástica”.54 Até o próprio papa se surpreenderia em seguida com o desenvolvimento do projeto. Lembramos a finalidade do Concílio, que em sua primeira encíclica, a Ad Petri Cathedram, manifestava: “a finalidade deste Concílio é: 1) incremento da fé, 2) renovação dos costumes e 3) adaptação da disciplina eclesiástica às necessidades do tempo atual”.55

Noutro momento, João XXIII dizia: “o principal escopo do Concílio é apresentar ao mundo a Igreja de Deus em seu perene vigor de vida e de verdade”.56 Precisamos realçar os objetivos do Concílio para mostrar tudo quanto iluminou o processo de elaboração da Dei Verbum. E tais finalidades foram iluminadoras para sua redação tanto quanto para a superação das tensões quando estas surgiram.

Após o anúncio do Concílio, a sua preparação deu-se gradualmente. Alguns autores afirmam que o Concílio já estava sendo preparado desde os primeiros sinais de surgimento dos grandes movimentos de renovação: o bíblico-patrístico, o

      

51

No dia 25 de janeiro de 1959, o papa João XXIII anuncia o sínodo romano, a revisão do Código de Direito Canônico e o Concílio (LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 59).

52Id., ibid.,

p. 60-61.

53Id., ibid., p. 59. Conferir também

KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 7. Há alguns teólogos que identificam o Vaticano II como Concílio do Espírito (cf. BALTHASAR, H. U. Von. El Concilio del Espíritu Santo. In: Puntos centrales de la fe. Madri: BAC, 1985, p. 85-104).

54

KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 11. 

55Id., ibid.,

p. 15.

56Id., ibid.,

(26)

teológico e o litúrgico.57 E também com as luzes lançadas pela publicação das animadoras encíclicas de Leão XIII, entre elas, a Providentissimus Deus, e a mais próxima do Concílio, a Divino Afflante Spiritu, de Pio XII. Mais adiante (em 17/5/1959), João XXIII nomearia a comissão antepreparatória, para dar início à preparação do futuro Concílio. Esta comissão foi presidida pelo cardeal Domenico Tardini. Fica então estabelecido que esta comissão enviaria cartas às mais diversas instâncias católicas do mundo inteiro, pedindo sugestões para assuntos ou temas a serem tratados no Concílio.58 O retorno das respostas foi alentador, sendo de mais de 70%. Completada aquela fase, na solenidade de Pentecostes (5/6/1960), inicia-se a “fainicia-se preparatória”, isto é, a criação das comissões,59 mais a Comissão Central,60 presidida pelo papa. Cabe lembrar que a Comissão Teológica ficara “encarregada de examinar as questões a respeito da Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição, a fé e os costumes”. A esta comissão reservou-se a tarefa de elaborar a redação da futura Dei Verbum. A Comissão Teológica foi presidida pelo cardeal Ottaviani.61 Daí até a abertura do Concílio, o papa ainda se reúne algumas vezes com as diversas comissões, especialmente com a Comissão Central, preparando gradualmente o Concílio.

1.1.4. Abertura e andamento da Assembleia Conciliar

Em 11/10/1962, o papa João XXIII abre o vigésimo primeiro Concílio Ecumênico da história da Igreja. Recorda alguns concílios anteriores, esclarece a

      

57

KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 25-27. Outros autores, entre os quais João Batista Libanio, propõem a mesma linha de raciocínio.

58Id., ibid.,

p. 49. Cf., também, RDV, p. 18.

59

Foram dez as comissões nomeadas pelo papa João XXIII, para que preparassem o Concílio (cf. KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 54; e também RDV, p. 18).

60

Esta comissão era constituída pelos presidentes das respectivas comissões, e sua tarefa era seguir e coordenar, se necessário, os trabalhos de cada comissão (cf. KLOPPENBURG, B. Concílio

Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 56).

61Id., ibid

(27)

origem e causa do atual Concílio e ainda reafirma a finalidade deste.62 Na abertura do Concílio havia cerca de 2.650 pessoas presentes. Da abertura até seu encerramento passaram-se quatro anos. De outubro de 1962 até 18 de dezembro de 1965, ocorreram quatro grandes sessões.63 A Dei Verbum, nosso documento de estudo, foi redigida precisamente em sessões que corresponderam exatamente às quatro sessões realizadas no Concílio.

2. O CONTEXTO HISTÓRICO DA DEI VERBUM

Quanto ao contexto histórico da Dei Verbum, ele é permeado de tensões. A história de sua redação é polêmica em todo o seu percurso. Desde as primeiras consultas conciliares até sua promulgação definitiva em 1965, seis anos transcorreram, sem contar os cem anos precedentes, que gestaram os conteúdos do documento. Quatro esquemas precederam o texto definitivo.64 O contexto histórico da Dei Verbum pretende remontar seu itinerário de redação a seus respectivos esquemas, aos personagens mais significativos para sua redação, a sua estrutura e a seu tema mais importante.

      

62

DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2004, 733 p.

63

Ver as sessões do Concílio de forma resumida, em trabalho de Claude Bressolette, DCT, p. 1821-1823. A primeira sessão realizou-se de 11/10 a 08/12 de 1962; a segunda sessão, de 29/09 a 04/12 de 1963; a terceira sessão, de 14/09 a 21/11 de 1964; e a quarta e última sessão, de 14/09 a 08/12 de 1965.

64

SILVA, Valmor da. Ouvir e proclamar a Palavra – as grandes intuições da Dei Verbum. Estudos da

(28)

2.1. As grandes influências sobre a Dei Verbum

Podemos dizer que várias influências foram exercidas sobre a Dei Verbum. Destacamos três grandes influências: o espírito conciliar, os movimentos de renovação e alguns documentos do Magistério da Igreja.

a) A primeira influência

Ela vem do espírito conciliar.65 Este espírito envolveu os grandes protagonistas da redação da Dei Verbum. E por isso pôde matizar o estilo redacional desta Constituição. Este espírito conciliar promovido inicialmente por João XXIII foi sustentado e firmemente experimentado pela maioria dos padres conciliares, e de forma incisiva refletiu-se, sobretudo, na Dei Verbum. Ele traduziu-se no espírito de renovação, de caráter pastoral, ecumênico, e no diálogo com as demais religiões, tanto quanto com a sociedade e as ciências.

b) A segunda influência

A segunda influência veio dos movimentos da Igreja, formadores, certamente, dos “ventos” que soprariam sobre todos os conciliares. Entre eles, recebendo destaque especial os que protagonizaram sua elaboração. E dos quais os mais importantes foram os movimentos bíblico-litúrgicos, o movimento ecumênico e o movimento da nova teologia, acolhendo, sobretudo, os grandes avanços que a ciência bíblica até então havia alcançado. Também a experiência ecumênica de vários padres conciliares em diversos países contribuiu para influenciar essa Constituição.

      

65

(29)

c) A terceira influência

a) a Constituição Dei Filius sobre a Fé Católica,66

do Vaticano I.

A Constituição Dei Filius sobre a Fé Católica,67

do Vaticano I, foi, de todos os documentos magisteriais, o mais citado. Abaixo, elencamos em que momentos na Dei Verbum a Dei Filius é citada.68

Esta Constituição merece certo destaque, por causa das cerca de 10 citações de trechos seus que aparecem na Dei Verbum. Destacamos alguns de seus traços relevantes. A Dei Filius sobre a Fé Católica do Vaticano I é um documento gerado num Concílio que ocorre numa Igreja em “busca de certezas”.69 A Igreja é confrontada internamente para responder aos ataques, e, sobretudo, é confrontada externamente em seu fundamento: a revelação. Questionava-se a “possibilidade da revelação de Deus pessoal, criador e redentor”.70 Desde a “Revolução Francesa causava impactos à Igreja o rompimento de uma ordem patriarcal e hierárquica”71 junto à qual a Igreja de certa forma se estruturava. Na época do Concílio Vaticano I, o racionalismo já impunha à Igreja sérias questões. É neste contexto de modernidade que situamos o Concílio Vaticano I (de 8/12/1869 a 18/12/1870) e, portanto, também a Dei Filius. Nesta Constituição está presente a preocupação da Igreja em responder de modo claro e firme às questões lançadas pela modernidade, condenadas pelo papa Pio IX, especialmente na Encíclica Quanta Cura (8/12/1864),72

lançada poucos anos antes do Concílio. E antes Pio IX havia lançado outra encíclica, a Qui Pluribus (9/11/1846),73

que já mencionava em seu texto alguns temas que seriam reafirmados na Dei Filius. Nesta encíclica tocava-se em pontos como:

      

66

Denz. 3000.

67Id., ibid

.

68

No tema da revelação acolhida com fé (DV, 5); no tema das verdades reveladas é citada duas vezes (DV, 6); no tema da transmissão da revelação divina, os apóstolos e seus sucessores, arautos do Evangelho (DV, 7); no tema da Sagrada Escritura (DV, 8); na relação da Tradição e da Sagrada Escritura com toda a Igreja e com o Magistério (DV, 10); no tema da Inspiração divina e a interpretação da Sagrada Escritura, Inspiração e verdade na Sagrada Escritura (DV, 11); e na interpretação da Sagrada Escritura (DV, 12).

69

DTF, p. 1036.

70Id., ibid

.

71Id., ibid

.

72

Denz. 2890.

73Id., ibid.,

(30)

“a. que a nossa religião foi gratuitamente revelada por Deus à humanidade e recebe toda a sua força da autoridade do próprio Deus que fala; b. do dever da inteligência de inquirir sobre o fato da revelação para obter a certeza de que Deus falou; e, por último, c. de que é necessário prestar fé total a Deus que fala”.74

Algumas afirmações da Dei Filius, na Constituição sobre a Fé Católica, são inseridas mais tarde na Dei Verbum. A Dei Verbum vai retomar a declaração de que a revelação de Deus deve ser recebida com obséquio pleno da vontade e inteligência à fé (cf. DV, 5; Dei Filius, cap. 3).75 A Dei Verbum vai reafirmar, como já

fora feito na Dei Filius, que é o Espírito Santo quem move e converte a Deus os corações, abre os olhos da alma e dá a todos a suavidade e o assentimento na adesão à verdade (DV, 5; Dei Filius, cap. 3).76

A Dei Verbum de certa forma toma como referência a Dei Filius, com assuntos que já haviam sido abordados nas encíclicas de Pio IX. Em síntese, há alguns temas mais preponderantes, como as fontes da revelação, a necessidade de uma revelação sobrenatural, os motivos de credibilidade da revelação, a liberdade do assentimento e as virtudes sobrenaturais da fé e sua necessidade, mistérios da fé revelada, a relação entre ciência humana e fé divina, a imutabilidade dos dogmas. Por sua vez, a Dei Filius, sem dúvida, condicionará a seguir os tratados sobre os temas ligados à revelação, pois tem o “grande mérito de compor num documento doutrinal o conceito de revelação que é exposto”.77

Em suma, a Dei Filius enfatiza:

 Que a revelação sobrenatural é dada no Antigo e no Novo Testamento;

 Que desta revelação Deus é o autor e a causa;

 A iniciativa da revelação é de Deus;

 O objeto natural da revelação é o próprio Deus;

 Todo o gênero humano é beneficiário da revelação.78

      

74

LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 301.

75

Cf. Dei Filius. In: Denz. 3008.

76Id., ibid.,

3010.

77

DTF, p. 1038.

78

(31)

Destacamos a seguir as encíclicas papais em que estão presentes especialmente os temas da Sagrada Escritura e da missão da Igreja (cf. DV 12, 23, 24 e 25).

b) A Providentissimus Deus, de Leão XII (1893), reconhecia:

“A importância dos cursos de Escritura nos seminários; O texto não pode ser interpretado de forma contrária à Tradição, ao consenso dos Santos Padres e a Analogia da fé; Possibilidade de os católicos estudarem as Escrituras; Recomendação dos estudos das línguas orientais, da crítica textual e das ciências naturais; Sua definição de Inspiração tornou-se clássica”.79

Essa encíclica é citada algumas vezes, mas mostra sua importância especialmente quando trata das Sagradas Escrituras:

* No tema da Inspiração divina e a interpretação da Sagrada Escritura: Inspiração e verdade na Sagrada Escritura (DV, 11);

* Reconhece a importância da Sagrada Escritura para a Teologia (DV, 24).

No século seguinte, o papa Bento XV, em comemoração ao XV centenário da morte de São Jerônimo, publica a Spiritus Paraclitus (1920). Novamente tendo o foco nas Sagradas Escrituras e reforçando seus estudos:

“Sublinha o influxo do inspirador, que impede o escritor de ensinar o erro e não cria obstáculos para que ele manifeste o seu gênio e a sua cultura; Não exclui nenhuma passagem bíblica da inspiração; Descreve a dinâmica psicológica do escritor”.80

Essa encíclica está citada na Dei Verbum:

* No tema da interpretação da Sagrada Escritura (DV, 12);

* Também reconhece a importância da Sagrada Escritura para a Teologia (DV, 24); * É recomendada a leitura da Sagrada Escritura (DV, 25).

      

79Estudos CNBB,

n. 91, p. 23-24.

80Id., ibid

(32)

Próxima do Concílio veio a público a Encíclica Divino Afflante Spiritu, de Pio XII. Esta encíclica foi publicada nas comemorações dos 50 anos da Providentissimus Deus. Foi o reconhecimento de que a caminhada da Igreja nos estudos da exegese estava no rumo certo. Eis algumas características da Divino Afflante Spiritu:

“abre caminhos para a exegese católica; Deu frutos como a Bíblia de Jerusalém e o Comentário Católico de toda a Sagrada Escritura; Valoriza as traduções que partem da língua original; Fala pela primeira vez dos ‘gêneros literários’; Convida a se fazer a leitura crítica e histórica da Bíblia e a se utilizar dos muitos resultados das ciências, da arqueologia e da literatura; Busca uma harmonia entre a exegese e as ciências”.81

Na Dei Verbum, as contribuições dessa encíclica estão dispostas:

* No tema da Inspiração divina e a interpretação da Sagrada Escritura: Inspiração e verdade na Sagrada Escritura (DV, 11);

* No dever apostólico dos estudiosos (DV, 23);

* Quando recomenda a leitura da Sagrada Escritura (DV, 25).

3. O ITINERÁRIO DA REDAÇÃO DA DEI VERBUM

Anunciado o Concílio, coube à comissão antepreparatória82 (17/5/1959) contatar os bispos e instâncias católicas do mundo inteiro para se informarem sobre os assuntos pertinentes ao futuro Concílio. Após esta fase, foi nomeada pelo papa a

      

81Estudos CNBB,

n. 91, p. 24-25.

82

(33)

Comissão Central83 (5/6/1960). E nesta mesma data se nomeava a Comissão Teológica.84

Na preparação do Concílio foram criadas outras comissões. Em 27/10/1960, uma subcomissão,85 e, já nas vésperas do Concílio, criava-se a Comissão Doutrinal (6/9), que seria a sucessora da Comissão Teológica.86 Durante o Concílio outras comissões seriam criadas: a Comissão Mista e o Secretariado para a União dos Cristãos.87 Além destas comissões, foram criadas a Comissão Cardinalícia Coordenadora; a Subcomissão interna da Comissão Doutrinal e a Comissão Teológica, também da Comissão Doutrinal.88

Entregue pelo papa à Comissão Teológica o encargo de preparar o texto sobre fé, Sagrada Escritura, Sagrada Tradição e Costumes, assim começa uma longa jornada de elaboração do texto sobre a revelação divina. Posto em discussão na primeira sessão do Concílio, foi um dos primeiros documentos a serem discutidos (14/11/1962) e um dos últimos a serem aprovados (18/11/1965). Relembramos ainda as sugestões dos bispos, quando dos trabalhos da comissão antepreparatória – até sua promulgação foram longos seis anos. Consta que, em grande parte das respostas dos bispos e instituições consultadas, os pedidos eram frequentemente para que se tratasse sobre o tema da revelação. Com efeito, já pela longa duração de sua redação e o tempo transcorrido até sua promulgação, a Dei Verbum tornou-se emblemática. Assim ela foi reconhecida como um documento que “teve a história       

83

RUIZ, Gregorio. Historia de la Constitución..., op. cit., p. 40 (ComDV). Esta comissão, agora preparatória, tinha como função supervisionar e coordenar o trabalho das 10 comissões. Seu presidente era o papa João XXIII, sendo Felici o secretário.

84

Recebeu a atribuição de preparar os nove esquemas e, entre eles, o “De fontibus”. Seu presidente era Ottaviani e o secretário, Tromp.

85

Tinha a função de desenvolver o “esquema compendiosum De fontibus”. Era presidida por Garofalo.

86Id., ibid

. Essa Comissão teria a função de reelaborar esquemas de acordo com as observações dos padres conciliares. Seu presidente era Ottaviani; os vice-presidentes, Browne e Charue; os secretários, Tromp e Philipps.

87Id., ibid

. p. 41. Foram criadas em 24/11/1962. Tinham a função de preparar o segundo esquema. Seu presidente era Ottaviani, para a Comissão Doutrinária, com Browne e Liénart como vices, Tromp, como secretário, e Bea, no Secretariado para a União dos Cristãos, tendo Willenbrands como secretário.

88 Id., ibid.,

(34)

mais agitada de todos os documentos conciliares”.89 Quanto ao itinerário da redação da Dei Verbum, é importante uma síntese global das votações de seu texto. Consta de forma reduzida, nos Documentos da Igreja (2004), uma visão mais ampla das votações.90

A) O 1º esquema sobre a revelação divina

Na primeira sessão do Concílio (11/10 a 08/12 de 1962), o 1º esquema sobre a revelação divina foi apresentado aos padres conciliares pela primeira vez. E a discussão do 1º esquema foi feita na aula conciliar da décima quinta à vigésima quarta Congregação Geral, de 14 a 21 de novembro de 1962, após a discussão sobre “Liturgia. Em seguida, foi posto em discussão o texto sobre a revelação divina”.91 No ato de apresentação desta Constituição, havia cerca de 2.220 conciliares, e ao cardeal Alfredo Ottaviani, presidente da comissão teológica, coube apresentar o novo projeto sobre a revelação. Foram sete dias de debates, permeados de tensões, até 21 do mesmo mês.92 O projeto apresentado por Alfredo Ottaviani não foi aceito. Apesar de, mesmo antes do Concílio, ter sido aprovado pelo papa e depois enviado aos padres antes da aula conciliar,93 este 1º esquema foi rejeitado por grande número dos padres do Concílio.94 Este projeto foi alvo de severas críticas e, como vemos, recebeu inúmeras emendas de alterações. Este esquema inicial teve então que ser revisto em diversos pontos:

“ele não define a natureza e o objeto da revelação; não fala de Cristo, suma revelação do Pai; dá demasiada importância à parte polêmica e pouca importância à parte positiva; dá pouca importância à Tradição; além disso,

      

89

SILVA, Valmor da. Ouvir e proclamar..., op. cit., p. 26.

90

DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2004, p. 347.

91

KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., p. 161.

92Id., ibid.,

p. 162.

93

A aula conciliar era a reunião dos padres conciliares para tratar sobre os temas. Esta “aula” chamava-se Congregação, por congregar os conciliares no estudo dos demais assuntos.

94Título:

Constituição Dogmática sobre as fontes da revelação; Primeiro Capítulo: das duas fontes da revelação; Segundo Capítulo: da inspiração, inerrância e composição das Escrituras; Terceiro

Capítulo: do Antigo Testamento; Quarto Capítulo: do Novo Testamento; Quinto Capítulo: da Escritura na Igreja (RDV, 1986, p. 19). Conferir também o excelente artigo “Historia de la constitución Dei

(35)

afirmando que a revelação está contida em ‘duas fontes’, opõe a Tradição à Escritura, o que nunca foi ensinado pelo magistério da ‘Igreja’”.95

As reações foram fortes, apontando o problema criado por esse esquema quando se refere a duas fontes da revelação. Ao longo de sete dias de debate, vários participantes reagem, proferindo discursos tensos. Vale lembrar o notável discurso de Emilio De Smedt (bispo de Bruges, da Bélgica), que fala em nome do Secretariado para a União dos Cristãos. Foi graças a este discurso que os padres conciliares despertaram para a inadequação do primeiro projeto sobre a revelação divina.96

Após as reações dos apoiadores e dos críticos ao 1º esquema, encerra-se o momento inicial de trabalho sobre o texto da revelação divina, sem contudo avançar. O 1º esquema é então rejeitado e recebe uma votação interessante.97 Não havendo consenso, o papa João XXIII intervém: nomeia uma Comissão Especial, chamada também de comissão mista, que incluía o cardeal Bea.98 Nessa mesma ocasião (21/11/1962), o papa comunica em plenário a elaboração de um novo texto, recebendo então outro título, agora denominado “De Divina Revelatione”.99

A intervenção do papa era necessária para amenizar uma possível radicalização das posições contrárias.

B) O 2º esquema sobre a revelação divina

Na segunda sessão do Concílio não foi possível a discussão do texto sobre a revelação devido às dificuldades da primeira sessão. Encerrada a 1ª sessão do Concílio (8/12/1962), e não havendo grandes progressos na elaboração do texto, o

      

95

RDV, p. 19.

96

KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II,op. cit., v. II, p. 179-182. 

97

O número de votantes era de 2.209, com as seguintes proporções na votação: “Placet”, com 822 apoiadores, e “Non placet”, com 1.368. Com apenas 115 votos a mais de diferença, completar-se-iam os dois terços exigidos pelo regulamento para uma posição (cf. RDV, p. 10).

98

O cardeal Agostinho Bea, padre jesuíta, exegeta, presidira até pouco antes do Concílio a Pontifícia Comissão Bíblica. No tempo do papa Pio XII, era seu confessor e no Concílio foi designado para presidir o Secretariado para a União dos Cristãos.

99

Há uma ligeira mudança do título anterior para o de agora, Sobre a Revelação Divina. O anterior era De fontibus Revelatione (Sobre as fontes da revelação divina) (cf. KLOPPENBURG, B. Concílio

(36)

Concílio declarou o recesso dos trabalhos, e somente em março do ano seguinte (1963) o esquema recebeu algumas modificações:

“mudança do título para ‘De divina revelatione’ (sobre a divina revelação); acréscimo de um proêmio para falar da natureza e do objeto da revelação; ‘fórmula de compromisso’, não separar a Escritura da Tradição e não afirmar que a Tradição contém mais do que está na Escritura; maior desenvolvimento dado à parte referente à Tradição”.100

Surge o 2º esquema. Ainda no recesso do Concílio, o 2º esquema é enviado aos padres conciliares para avaliação. O clima tenso não fora superado, mesmo durante o recesso.101 A tensão é tamanha, que o cardeal Florit, na segunda sessão do Concílio, sugere que não se retome mais no Concílio o tema da revelação.102

C) O 3º esquema sobre a revelação divina

Como na segunda sessão do Concílio não fora discutido o texto sobre a revelação, em julho de 1964, após as sugestões dos padres conciliares e das correções das Comissões (Central e Teológica), é elaborado o 3º esquema. Antes de iniciar a terceira sessão do Concílio, em março de 1964, criou-se uma subcomissão na Comissão Teológica que ficou constituída de sete padres conciliares e 19 peritos.103 Esta subcomissão estudaria o então 2º esquema e apresentaria um novo. A subcomissão reelabora então o esquema anterior e apresenta outro.104

Em julho de 1964 o 3º esquema é enviado aos padres conciliares durante o recesso. Fito isso, a Comissão Teológica altera alguns pequenos detalhes, e o novo       

100

Cf. RDV, p. 19-20.

101

É bom salientar que durante o recesso, houve as conversações, o encaminhamento de questões espinhosas. O texto sobre as fontes da revelação não deixou de ser focado. O recesso (fora da assembleia) fora um momento de amadurecimento sobre o tema. Este recesso foi do fim da primeira sessão (dezembro de 1962) até o início da segunda sessão (setembro de 1963).

102

Cf. Id., ibid., p. 20. Ermenegildo Florit era o cardeal de Florença.

103

Nessa subcomissão estavam presentes grandes teólogos, como Rahner, Ratzinger, Congar, Moehler e outros (id., ibid.).

104

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