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4. A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM

4.1. O tema fundamental da Dei Verbum: a revelação

4.1.1. Revelação

      

126

Quanto ao termo “revelação”, há um vasto número de textos sobre o tema. Elencamos alguns, especialmente os que constam de dicionários porque são bastante elucidativos. O primeiro é bem sucinto e, sem dúvida, dos dicionários citados, é o mais completo (cf. DTF, p. 816-852; também DCT, p. 1537-1546). Há também um bom texto na linha da catequese: PEDROSA, V. M. et al. (orgs.). Dicionário de catequética. São Paulo: Paulus, 2004, p. 954-966. Os outros dicionários são conhecidos, mas talvez sejam mais simples (cf. DEB, p. 1321-1324; VTB, p. 899-908; TAMAYO, Juan José, org. Novo dicionário de teologia. São Paulo: Paulus, 2009, p. 486-492; FRIES, Heinrich, org. Dicionário de teologia. Conceitos fundamentais de teologia atual, v. V. São Paulo: Loyola, 1971, p. 88-97; EICHER, Peter, org. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. São Paulo: Paulus, 1991, p. 792-800; KONIG, Franz, org. Léxico das religiões. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 497-504; VVAA. Dicionário teológico o Deus cristão. São Paulo: Paulus, 1988, p. 798-805; VVAA. Diccionario teológico interdisciplinar, v. VI. Salamanca, Esp: Sígueme, 1987, p. 179-203).

Por último, citamos alguns artigos: cf. FLORES, Rogério Luis. As etapas evolutivas da religião até o limiar da revelação cristã, segundo a 1ª parte da obra, o problema de Deus do homem atual de Hans Urs Von Balthasar. Teocomunicação, v. 27, n. 118, dez. 1997, Porto Alegre, p. 507-528; BORMIDA, Jeronimo. Los materiales, revelación, inspiración, historia. Soleriana, v. 23, n. 10, dez. 1998, Montevidéu, p. 173-210; GOMES, Cirilo Folch. A revelação divina. Perspectivas da constituição conciliar “Dei Verbum”. REB, v. 26, fasc. 4, dez. 1966, Petrópolis (RJ), p. 816-837; BALAGUER, Vicente. La Sagrada Escritura, testimonio y expresión de la revelación. Scripta Theologica, v. 40, n. 02, mai.-ago. 2008, Navarra (Esp), p. 345-383; MENDES, Jones Talai. Revelação bíblica enquanto ação comunicativa à dimensão comunitária da inspiração. Teocomunicação, v. 38, n. 161, set.-dez. 2008, Porto Alegre, p. 379-399; GABEL, Helmut. Inspiración y verdad de la Escritura. Selecciones de Teología, v. 42, n. 167, set. 2003, Barcelona (Esp), p. 214-228; JEANRONDE, Werner G. Revelação e conceito trinitário de Deus: conceitos orientadores do pensamento teológico? Grande Sinal, v. ..., n. 289, jan. 2001, p. 126-148.

O tema da revelação perpassa todo o documento. Por isso, vamos organizar nosso estudo limitando-nos a sete blocos. Em cada bloco pode haver um ou mais aspectos na forma de abordar a revelação, como no primeiro capítulo da Dei Verbum, que trata da natureza e o objeto da revelação, ou no segundo capítulo, que estudará a transmissão da revelação. Inicialmente, o título e o Proêmio são solenes, destacando-se dos demais documentos conciliares. O título da Dei Verbum está em relevo, indicando sua máxima importância. Ademais, todo o documento é uma investigação sobre a revelação e, por ser Constituição Dogmática, acentua sua grandiosidade para a Igreja e seu valor normativo de fé, de “doutrina e de dogma”.127

O longo tempo exigido para a redação do texto da Dei Verbum demonstra a importância da revelação para a Igreja. Pois a revelação “é o que cria, constitui e mantém a Igreja”.128 Recordando os debates no início do Concílio sobre a revelação divina, constatamos que era necessário o amadurecimento dos envolvidos no processo de sua redação. Pois, este tema sendo central, iluminaria certamente os demais documentos.

No Proêmio lemos:

“Este sagrado Concílio, ouvindo religiosamente a Palavra de Deus e proclamando-a com confiança, faz suas as palavras de S. João: ‘anunciamo-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu: anunciamo-vos o que vimos e ouvimos, para que também vós vivais em comunhão conosco, e a nossa comunhão seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo’ (1 Jo. 1 2-3). Por isso, segundo os Concílios Tridentino e Vaticano I, entende propor a genuína doutrina sobre a Revelação divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação, acreditando espere, e esperando ame” (DV, 1).

Merece destaque o Proêmio da Dei Verbum, entre vários motivos, por iniciar com estas palavras: “Este Sagrado Concílio, ouvindo religiosamente a Palavra de Deus [...]” (DV, 1). Por esse Proêmio verificamos que a expressão “Palavra de Deus

      

127

RUIZ, Gregorio. Historia de la constitución..., op. cit., p. 125 (ComDV).

128Id., ibid., p. 4. Outro autor reconhece a revelação na Dei Verbum como um conteúdo de tal modo

determinante para a fé, que, para a Igreja, tudo depende desse evento central: seu crer e seu operar só têm sentido na medida em que refletem a plena adesão à Palavra de Deus revelada (cf. DTF, p. 190).

aplica-se, é claro, em primeiro lugar à revelação”.129 O tema da revelação na Dei Verbum não é elaborado do nada, nem é uma iniciativa inédita dos padres do Concílio, mas segue os concílios anteriores, a saber, os dois últimos: o de Trento (1545-1563) e o Vaticano I (1869-1870). Há, porém, diferenças na visão e na forma de abordar a revelação. De Trento ao Vaticano II houve notável evolução, levando em conta nessa constatação a referência feita na própria Constituição. Vamos perpassar esses Concílios para captar a relevância destes quanto ao tema da revelação.

O tema da revelação só foi tratado tardiamente, no século XIX. No Concílio precedente ao de Trento, o de Latrão IV (1215), falava-se da profissão de fé na Santíssima Trindade. Seu contexto conciliar estava, porém, permeado da reação contra os “albigenses e cátaros”.130 Neste Concílio não se trataria formalmente da revelação como tal:

“Esta santa Trindade, indivisível conforme a essência comum e distinta conforme as propriedades pessoais, entregou ao gênero humano a Doutrina Salutar, primeiramente por Moisés e pelos profetas e por outros servos seus conforme uma disposição bem ordenada dos tempos”.131

O Concílio seguinte, convocado em reação à “reforma protestante”,132 não se referiu ao tema da revelação. Este Concílio tratava especialmente de contrapor-se às doutrinas de Lutero do “sola fide, sola gratia, sola Scriptura”.133 O avanço aqui nesse Concílio deu-se quando se falou do Evangelho como revelação:

      

129

LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 369.

130

Seitas originadas na França (no século XI) e desenvolvidas em diversos lugares do sul desse país (século XII). Tinham como características não aceitar os sacramentos da Igreja, e sim os de cunho maniqueísta, pois acreditavam na existência de um único princípio: o do bem e do mal. No quarto Concílio de Latrão, foram terminantemente condenados (cf. KNOWLES, D.; OBOLENSKY, D. Nova história da Igreja. 2 vols. Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974, p. 393-402).

131

Cf. Denz. 800.

132

Tema já bastante conhecido de todos. No tocante à revelação, porém, é significativa sua menção no bojo dos documentos do Magistério. Esse mesmo Concílio foi, entretanto, absorvido pela celeuma da reforma de Lutero (cf. KNOWLES, D.; OBOLENSKY, D. Nova história..., op. cit., Reforma e Contra-Reforma, p. 44-96).

133

“o Sacrossanto Concílio Ecumênico geral tridentino, legitimamente reunido no Espírito Santo, coloca diante de seus olhos continuamente que a pureza mesma do Evangelho, eliminados os erros, se conserve na Igreja, o qual, prometido antes pelos profetas na Sagrada Escritura, N. S. Jesus Cristo, o Filho de Deus, promulgou então com sua própria boca, em seguida ordenou que fosse pregado a toda criatura pelos seus apóstolos, como fonte de toda verdade salutar e dos costumes de discípulos”.134

É no Vaticano I que se vai tratar pela primeira vez a revelação de modo formal.135 O contexto deste Concílio era o do “racionalismo”136 e da escola romântica alemã, que afirmavam: “revelação não é uma palavra de Deus, mas sim uma palavra de homem”.137 Essa visão trouxe dificuldades ainda maiores para uma elaboração mais clara sobre a revelação, pois a desfigurava por completo, desviando-a assim de uma formulação mais clara e apurada. Ao Vaticano I caberia reagir diante de tantas e sérias indagações. Mas é na Constituição Dei Filius, sobre a fé católica, que a abordagem do tema sobre a revelação aparece. Assim, encontramos nesta Constituição:

“A mesma Santa Madre Igreja retém e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido pela razão humana, de modo certo, a partir das coisas criadas, pela luz natural da razão humana. Por isso, aprouve à Sabedoria e Bondade de Deus revelar, por outra via, sobrenatural, a si mesmo e os decretos eternos de sua vontade ao gênero humano”.138

      

134

LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II:..., op. cit., p. 382; cf. Denz. 1501.

135

Há certa convergência na afirmação de que se reconhece o Concílio de Trento, o que primeiro tratou da revelação como conceito, mas não a desenvolvendo satisfatoriamente, devido a sua preocupação em responder às questões postas pelo movimento dito modernista. Diversas obras reconhecem isso, entre elas, LIBANIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade. São Paulo: Loyola, 1992, p. 382; LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 298-313. Alguns dicionários também reconhecem o Vaticano I como o grande Concílio que expõe a revelação como tal (cf. PEDROSA et al. Dicionário de catequética, op. cit., p. 956; DTF, p. 830; e o DCT, p. 1544; cf. também PIAZZA, Waldomiro O. A revelação cristã: na constituição dogmática “Dei Verbum”. São Paulo: Loyola, 1986, p. 16).

136

LIBANIO, J. B. Teologia da revelação a partir..., op. cit., p. 383. Trata-se do material mais acurado sobre o racionalismo relacionado a essa discussão. Há um grande número de informações e comentários fartamente publicados sobre o tema. Por ora, remetemos à mesma coleção já citada neste trabalho (cf. KNOWLES, D.; OBOLENSKY, D. Nova história..., op. cit., Sociedade Liberal e no Mundo Moderno I, p. 252).

137

RDV, p. 16.

138

Noutro lugar da mesma Constituição, encontramos de forma explícita o termo “revelação”: “verdades sobrenaturais que somente podem ser conhecidas pela revelação”.139 É somente no Concílio Vaticano II, com a Dei Verbum, que podemos dizer que o termo “revelação” é tratado formalmente como um tema. O contexto deste Concílio diferenciou-se dos demais concílios citados. Este último, o Vaticano II, já se insere num contexto eminentemente pastoral e ecumênico.

Mesmo com as dificuldades acerca de sua composição redacional, a Dei Verbum alcançou formidáveis progressos no tema da revelação. Há certo consenso140 de que a Dei Verbum trouxe avanços significativos ao conceito de revelação. Anotamos algumas características importantes da revelação assinaladas por J. B. Libanio: “Uma visão mais histórica, mais dialética e dialogal”.141 Continua este mesmo autor, em sua reflexão, dizendo que a Dei Verbum reflete a revelação “de um Deus que se revela pela ação na história por meio de gestas e palavras”.142 Os grandes avanços na concepção de revelação nesta Constituição podem ser sintetizados da seguinte forma: em primeiro lugar, com a gratuidade, a revelação é a ação gratuita de Deus, de um Deus que se revela gratuitamente a si (DV, 2); depois, com o diálogo, a iniciativa da revelação é de Deus mesmo, mas convida o ser humano a participar de sua vida divina (DV, 2); com a história, é na encarnação e na história que Deus quis comunicar-se (DV, 6); e, por fim, ela é cristológica e trinitária (DV, 2).

Num segundo horizonte, a Dei Verbum trata da natureza da revelação e de seu objeto. Por ora interessa-nos abordar cinco grandes aspectos: 1º) a natureza e o objeto da revelação; 2º) a preparação da revelação evangélica; 3º) a consumação e plenitude da revelação em Cristo; 4º) a aceitação da revelação da fé; e, por fim, 5º) a necessidade da revelação.

Quanto ao primeiro aspecto, devemos considerar que, para elaborar-se uma doutrina, é forçosa a identificação do que é e daquilo de que se trata na revelação, ou seja, sua natureza e objeto. O Concílio não quis definir essencialmente um “conceito” para a revelação, mas procurou explicar evidentemente os elementos que       

139

ComDV, p. 384;cf. Denz. 3005.

140

Os autores pesquisados, unanimemente, aceitam a tese de que a Dei Verbum alcançou grandes progressos acerca do tema da revelação. Entre eles estão, sem dúvida, Libanio, Piazza, Schökel.

141

LIBANIO, J. B. Concilio Vaticano II:..., op. cit., p. 386.

142

pudessem ser compreendidos acerca do tema. Por isso esclarece que a “revelação por natureza é de livre iniciativa de Deus”.143 “Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade” (DV, 2).

Revelação é a livre iniciativa de Deus numa expressão de sua gratuidade. Por isso, não é uma iniciativa baseada em “capricho divino nem [em] sentimento paternalista, mas [decorre] puramente de sua sabedoria e bondade”.144 Sabemos, portanto, que a revelação de si mesmo está ligada, fundamentalmente, a uma Pessoa; é o que nos diz o termo bíblico “dabar”.145 Em suma, a revelação de Deus nada mais é que a autocomunicação, livre e gratuita, de Deus.

No segundo aspecto trataremos sobre a preparação que Deus fez para

chegar à revelação evangélica. Pela criação, Deus se deixa ser conhecido pelos homens. Depois, manifesta-se nos primeiros pais da Bíblia: Abraão, Isaque e Jacó; em Moisés; e também nos profetas. Não se trata, entretanto, de várias “revelações”, mas de uma só. Apenas o “desígnio salvífico de Deus com respeito à humanidade”.146

No terceiro aspecto serão abordadas a consumação e plenitude da revelação

que é Cristo. Nesse momento, o documento vai referir-se a Cristo como plenitude da revelação. Este texto adquire sua plena densidade com o reconhecimento de que a revelação se dá num homem, Jesus Cristo. Jesus Cristo é a Palavra de Deus, definitiva, porque é o “Verbo de Deus. É o Verbo feito carne”.147

No quarto aspecto será abordada a aceitação da revelação pela fé. Sobretudo

porque o termo “revelação” aparecerá duas vezes. Diz o texto: “A Deus que revela é devida a ‘obediência da fé’”148 (DV, 5). Este texto é claro, pois a revelação deve ser recebida com confiança. A inteligência e a vontade humana devem dar seu assentimento livre à revelação. Ou seja, aderir à fé. E nisso o Espírito Santo tem um papel importante e único. Já que Ele vai possibilitar ao crente um constante       

143

RDV, p. 39.

144Id., ibid., p. 30.

145Id., ibid., p. 39. Segundo esse autor, “dabar” tem conotação ou significado de algo dinâmico, não

estático; é ação.

146Id., ibid., p. 41. 147Id., ibid., p. 42. 148

aperfeiçoamento da fé. Para que possa acolher devidamente a revelação. Assim diz o texto: “Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo” (DV, 5).

Nesse sentido se evitariam posturas inadequadas na experiência da revelação. Tanto uma visão puramente “conceitual da revelação, um ponto de vista somente intelectual ou racional, e uma visão estritamente vinculada aos sentimentos ou de puro sentimentalismo”.149 Mas o Espírito Santo ilumina o interior do crente, preparando-o para receber o mistério da revelação que se apresenta à pessoa. O Espírito Santo de Deus neste aspecto vai auxiliar o crente de forma que o possa atrair e iluminar.

No último aspecto, o documento vai abordar uma necessidade da revelação.

Para tornar conhecidos sua vontade e seus decretos, sua Pessoa, Deus revelou-se. Por ora podemos dizer que isto é a Verdade de Salvação, ou verdades reveladas. No texto lemos: “Pela revelação divina quis Deus manifestar e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos da Sua vontade a respeito da salvação dos homens” (DV, 6). Este tema das “verdades reveladas” foi foco de fortes tensões nas aulas conciliares. Afinal, ainda persistiam mentalidades contrastantes no Concílio. De um lado, os que identificavam as “verdades reveladas” com a doutrina antiga do “ditado verbal”, afirmando que as palavras da Sagrada Escritura foram “ditadas por Deus”.150 De outro, os que a limitavam, afirmando que nem tudo na “Sagrada Escritura era Palavra de Deus”.151

Portanto, a definição apresentada na Dei Verbum esclarece que, por verdades reveladas, deve-se entender: “Os mistérios que dizem a respeito de Deus (SS. Trindade, encarnação) e aos mistérios relativos à salvação do ser humano (perdão dos pecados, escatologia, etc.)”.152

Num terceiro horizonte da Dei Verbum, ela vai tratar da revelação e sua transmissão. Neste horizonte encontram-se os temas que mais geraram debates na discussão da redação da Dei Verbum, porque o tema da transmissão da revelação esbarrava na questão de temas natural e historicamente difíceis, como o da tradição        149 RDV, p. 43. 150Id., ibid., p. 44. 151Id., ibid., p. 45. 152Id., ibid.

(tão caro para a Igreja Católica), em relação com a Sagrada Escritura (esta, por sua vez, tão cara aos protestantes, desde Lutero). Do Concílio de Trento em diante parecia estar ainda aberta uma grande e dolorida ferida, especialmente na truncada relação entre católicos e protestantes.

É importante ressaltar ao menos quatro aspectos da revelação: 1º) os apóstolos e seus sucessores, transmissores do evangelho; 2º) a Sagrada Tradição; 3º) a relação entre Sagrada Tradição e Sagrada Escritura; 4º) a relação de uma e outra com a Igreja e com o Magistério eclesiástico.

Num primeiro aspecto da transmissão da revelação estão os apóstolos e seus sucessores. A vontade de Deus é que todos sejam salvos. Portanto, a revelação deve chegar a todos (cf. Mc 16). Daí o próprio Cristo constitui apóstolos para continuar sua missão e os envia (cf. Mc 16), institui assim seus sucessores. Estes sucessores são primeiramente os apóstolos:

“mandou aos Apóstolos que pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente, comunicando-lhes assim os dons divinos” (DV, 7).

Também constitui evangelistas, igualmente com missão de apóstolos. A estes foi designado fazer nos evangelhos uma “recordação histórica”153 por escrito do que Jesus fez e falou. Por último, institui os bispos como sucessores dos apóstolos. Mesmo não sendo testemunhas oculares de Jesus, mas com a mesma missão dos apóstolos. Isto é, tendo o encargo também, assim como os apóstolos, de pregar o evangelho, de transmitir vivamente o evangelho de Jesus.154

Há aqui uma perspectiva interessante sobre a relação entre Escritura e Tradição. Há o reconhecimento claro da importância de uma e de outra, sem, contudo, diminuir uma ou outra. Também se evita a tendência de supervalorizar uma em comparação com a outra. O Concílio conclui que ambas (Escritura e Tradição) têm a mesma fonte, Cristo Jesus (DV, 9), e tendem para a mesma finalidade: a       

153

RDV, p. 50.

salvação do homem (DV, 9). Tanto Escrituras como Tradição estão “acompanhadas”155 do Espírito Santo.

Num segundo aspecto, o texto foca sua atenção sobre a Sagrada Tradição. A Tradição da Igreja é muito ampla e pode ser vista de múltiplos pontos de vista. A Igreja concebe como Tradição apenas aquela formada pelo testemunho dos apóstolos. Pelo que testemunharam do que Jesus falou e viveu. Neste sentido, a Tradição tem como objeto “os ensinamentos de Jesus e as iluminações do Espírito Santo e as normas pastorais da Igreja”.156

A Tradição está continuamente progredindo, não é fixa, porque é uma mensagem viva de salvação.157 Recebe, porém, uma permanente assistência do Espírito Santo: “Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo” (DV, 8). Eis o que é diferente na Tradição da Igreja, que é sempre viva. Não está fixada em normas, como vemos na Sagrada Escritura.

Num terceiro aspecto tratar-se-á da relação entre Sagrada Tradição e Sagrada Escritura. Encontrando definição na Dei Verbum, que resolveu enfrentar a forte tensão entre Tradição e Escritura. Ambas são equiparadas. Diz o texto: “A Sagrada Tradição, portanto, e as Sagradas Escrituras estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim” (DV, 9). Mesmo sendo uma “unidade”, porém, também diferem. Pois a Sagrada Escritura “transmite a revelação em forma estratificada na linguagem e nas categorias culturais”158 e a Tradição, sendo transmitida oralmente, transmite a revelação de modo novo, com a linguagem correspondente de cada época,159 podendo assim progredir sempre. Continua Piazza, em sua obra, dizendo que a Escritura oferece um texto objetivo como ponto de referência para a pregação cristã, já a Tradição dá vida e sentido ao texto escrito, ligando a linguagem do passado com a linguagem do presente.160 Com efeito, a Escritura não é outra coisa que a Tradição tornada escrita por inspiração do Espírito Santo.

      

155

A presença do Espírito acompanha tanto a Palavra quanto a Tradição. Acompanha a Palavra no sentido de inspirá-la e acompanha a Tradição no sentido de assisti-la.

156 RDV, p. 52. 157Id., ibid. 158Id., ibid., p. 53. 159Id., ibid. 160Id., ibid., p. 54.

Num quarto e último aspecto será abordada a relação de uma e outra com a Igreja e com o Magistério eclesiástico. Na Dei Verbum está assim: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja” (DV, 10). Nesse texto, tanto a Escritura como a Tradição são confrontadas pela Igreja. É à Igreja que Jesus confiou a interpretação de ambas: Tradição e Escritura. “Porém, o múnus de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição foi confiado só ao magistério vivo da Igreja” (DV, 10). Nesta relação há aqui uma sutil tensão. Tanto dentro como fora da Igreja. Mas a Igreja reconhece no final do mesmo capítulo: “Este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas sim a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido” (DV, 10).

No quarto horizonte da Dei Verbum, será focado o tema da inspiração divina da Sagrada Escritura e sua interpretação. Este tema da inspiração e da interpretação também foi pivô de inúmeros debates no Concílio, mas chegou-se a uma boa conclusão. O termo “inerrância” entra em questão, e propõe-se que não seja mais usado, sendo substituído pelo termo “inspiração” no novo texto da Dei