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Escutar já era um modo peculiar de proceder do povo bíblico, que dava grande valor à escuta da Palavra de Deus. O povo de Israel reconhece a importância dessa escuta, que estima e preza zelosamente. Em vários textos,456

escutar é também entendido como ouvir, e a fidelidade a Deus dependia dessa atitude espiritual (a escuta de Deus). Os povos semitas, de um modo geral e desde suas origens, especialmente o povo de Israel, eram dados à escuta. Por serem nômades, pautavam suas tradições pela transmissão oral. Sua riqueza de tradição era transmitida oralmente, de geração em geração! Por ser uma cultura de tradição oral, a escuta era essencial para a cultura israelita, e também para as dos outros povos semitas, permitindo a manutenção de sua tradição, de sua experiência de fé, da perpetuação e garantia de sua memória. A revelação de Deus é essencialmente uma verdade revelada pela escuta. São Paulo atesta-nos isso, quando se comunica com a comunidade de Roma, ao dizer: “a fé nasce da audição”.457 É importante

salientar o alto grau em que a escuta é relevante para a cultura israelita, tanto quanto o ver é importante para a cultura grega. Em relação à cultura semita,       

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ALMEIDA, D. B. de. Escutar ou ouvir?..., op. cit., p. 4.

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Como são numerosos, citamos apenas alguns: 1. Escuta, povo meu, pois te admoesto, Israel, oxalá me escutaste (Sl 81,9); 2. Vou escutar o que Deus diz (Sl 85,9); 3. Agora, Israel, escuta os mandamentos e decretos que eu vos ensino a praticar (Dt 4,1); 4. Fala, pois teu servo escuta (1 Sm 3,10); O meu filho amado, escute-o (Mt 17,5); 5. A multidão se comprimia ao redor de Jesus para escutar a Palavra de Deus (Lc 5,1); 6. Esse discurso é bem duro: quem poderá escutá-lo? (Jo 6,60); 7. Jesus diz a Pilatos: quem está a favor da Verdade escuta minha voz (Jo 18,37).

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destaca-se a fé, já em relação aos gregos o destaque foi a filosofia.458 A própria

Palavra de Deus em si, antes de ser “escrita”, foi transmitida pela comunicação oral. De geração em geração foram sendo transmitidas as verdades da fé. É nessa circunstância que se insere a imensa importância da escuta, de seu alcance e magnitude como atitude fundamental para a preservação das verdades de fé.

Assim, escutar a Deus tornou-se vital para a fidelidade do povo de Israel ao longo de sua história, e até nos tempos atuais. Tanto para o povo de Deus (Israel) quanto para nós (cristãos). O ser humano é chamado a escutar a Deus e, dessa atitude, fazer uma constante: “escuta, Israel”.459 Os homens, porém, em sua liberdade, também não querem escutar a Deus.460 Disso advém toda a angústia

humana ao fechar-se em relação a Deus. Fechar seus ouvidos significa fechar o coração, fechar-se a Deus. “Ensurdecer-se aos apelos de Deus.”461 Tal atitude,

contrária à vontade de Deus, prolonga-se até os tempos de Cristo, que ousa dizer que quem não tem a capacidade de “escutar” a Deus não é de Deus. Jesus Cristo recupera a verdadeira atitude da escuta: “vós não podeis ouvir minha palavra. Quem é de Deus ouve a palavra de Deus; se vós não ouvis, é porque não sois de Deus”.462

É evidente que a escuta é também fundamental para Jesus Cristo, e por isso o é para nossa fé cristã! A referência à importância da escuta nos textos da Sagrada Escritura, no primeiro Testamento, é digna de nota. Ali no primeiro Testamento vemos um Deus que primeiro nos escuta, mesmo quando isso é referido pelo termo “ouvir”. Percebemos que quem revela primeiro a importância da escuta é Deus mesmo, quando escuta o grito de seu povo. Um Deus que ouve (escuta) o clamor de seu povo, a aflição do povo hebreu na terra da escravidão. E, desta escuta, desce para libertá-los.463 O Êxodo é por excelência o livro de um Deus que escuta seu povo

e o liberta. Porque ouve, liberta! Liberta porque ouve.

       458 VTB, p. 688. 459 Cf. Dt 6,4. 460 Cf. Dt 18,16-19. 461 Cf. Jr 6,10. 462 Cf. Jo 8,43-47. 463

“O Senhor disse: Eu vi a opressão de meu povo no Egito, ouvi o grito de aflição diante dos opressores e tomei conhecimento de seus sofrimentos” (Ex 3,7).

Mas é no Livro do Deuteronômio que encontramos o ponto mais alto quanto à escuta de Deus.464 Esse pedido de Deus para escutá-lo é, ao mesmo tempo, um

mandato, para que seu povo jamais se esqueça de seus mandamentos e preceitos.465 Tal pedido para escutá-lo supõe uma atitude dócil e obediente à sua

voz. É no Deuteronômio que encontramos a profissão de fé dos israelitas,466 ápice

da revelação. Portanto, é no “shemá, Israel” no Livro do Deuteronômio o lugar em que se alcança o ponto mais alto no que diz respeito ao valor da escuta para o povo de Israel. Cabe então focar no shemá, Israel, que ilumina nosso estudo sobre a relevância da escuta.

O “shemá, Israel” é parte do Deuteronômio e este, do Pentateuco. Sua

compreensão está ligada à compreensão deste Livro. O Livro do Deuteronômio é o quinto livro da Bíblia, parte do Pentateuco, chamado Torah. Deuteronômio é uma palavra que significa “segunda Lei”. Tal livro trata de temas essenciais para o povo de Israel, como “a iniciativa da ação libertadora de Deus e a importância da

Comunidade e da aliança”.467 Portanto, a consciência e o reconhecimento do povo à

ação de Deus dependem exclusivamente da atitude de escuta. Para não esquecerem o que Deus realizou! A ação libertadora de Deus tornou-se um paradigma, pois ressaltará a iniciativa divina em libertar o povo. O Senhor Deus está à sua frente, livrando seu povo de tudo o que o oprime. É um Deus Libertador. Este aspecto está vinculado à experiência do Êxodo (a experiência de libertação, da escravidão à liberdade). Já a importância da comunidade é outro tema que ressalta o valor e a importância da comunidade, Deus convoca um povo, uma nação. Fala aos corações das pessoas, mas em comunidade.

Deus é o Deus da aliança, que propõe um pacto com seu povo, para caminhar com ele. Revelando-lhe seu plano, seu projeto de amor, que pede resposta. Levando em conta a história do Livro do Deuteronômio, este não foi escrito de uma só vez, mas por longo tempo. Foi um longo tempo de transmissão, de geração em geração, e a compilação desses textos assim nos diz: “começa no momento da conclusão da aliança, logo após a saída do Egito (1250), até a entrada       

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“Agora, Israel, ouvi os estatutos e mandamentos” (Dt 4,1); “eu os farei ouvir as minhas palavras” (Dt 4,10); “será que vocês já ouviram a voz de Deus?” (Dt 4,33); “escuta, Israel” (Dt 6,4); “que se ouvires estes meus preceitos e praticares, o Senhor teu Deus. Guardará a aliança” (Dt 7,12).

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Cf. Dt 4,1.

466

Cf. Dt 6,4.

na Terra Prometida. E toda essa trajetória é explicitada na e pela boca de Moisés, em seus três discursos”.468

É importante dizer que o povo do reino do sul observou atentamente o que ocorrera no reino do norte (Israel), das

“grandes crises por que passara aquele povo, seus irmãos: infidelidades, alianças ilegítimas com outros povos, abandono da aliança e, enfim, a destruição do reino do norte. Esse foi o pano de fundo da literatura do Deuteronômio. Após a queda de Samaria (capital do reino do norte), abrangendo o período do século VII até 566”.469

E após as densas crises por aquela época, “alguns levitas emigraram para o sul (Reino de Judá), fixando-se em Jerusalém, e levando consigo os escritos. Sendo encontrados por ocasião das reformas estabelecidas no tempo do rei Josias”.470

Como no reino do sul temia-se que acontecesse o que ocorreu no reino do norte, houve um ambiente favorável para o acolhimento e aceitação das reformas executadas por Josias com base nesses escritos que valorizavam a renovação da aliança e da fidelidade a Deus.

O Deuteronômio é um livro, acima de tudo, para o povo, indicando o Amor de Deus ao seu povo, o valor à vida como dom de Deus, e apontando para uma contínua renovação da aliança. Estes traços, que são bem característicos do Deuteronômio, são traços que, até no tempo presente, lançam luzes e abrem horizontes para todos nós, cristãos deste século.

O “shemá Israel”, como parte do Livro do Deuteronômio, tornou-se profissão

de fé antiquíssima dos judeus, a qual, desde muito cedo, todo israelita reconhece e com a qual se identifica. A oração que o israelita justo e piedoso recita diariamente como verdadeira profissão de fé no Deus único e Verdadeiro. É a fidelidade a essa profissão de fé que abre os ouvidos do povo e de cada um de seus filhos, que repetem várias vezes ao dia: “Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor”.

      

468A FORMAÇÃO..., op. cit., p. 77. 469Id., ibid., p. 78.

A história dos “judeus”471 inicia-se com estas palavras do Senhor, para

Abraão: “Vai para a terra que eu vou te mostrar. Farei de ti uma grande nação... e

em ti serão benditas todas as famílias da terra”.472 E mais tarde, com “Seja íntegro e

caminhe diante de Deus”, são firmadas as bases do judaísmo: a promessa da posse de uma terra, a unidade do povo e o dever não apenas de pôr em prática a vontade de Deus e de ser íntegro, mas também de ser o arauto, caminhando diante dele para levar bênção a toda a humanidade. Nesta bênção está implícita a promessa da época messiânica, quando, sobre a terra, reinarão a paz e a harmonia, porque todos os homens terão aceitado a Palavra de Deus e porão em prática o amor e a justiça para com o próximo. Deus estabelece com Abraão uma Aliança, prometendo que não o abandonará, nem sua família, nem sua descendência; uma Aliança que se perpetuará de geração em geração por meio do ato da circuncisão, sinal eterno de comunhão entre os judeus e Deus, sinal do pacto entre Deus e o seu povo.

“Assim, Abraão deixa Ur, na Caldeia, para ir a uma terra desconhecida, a Terra de Canaã, habitada por outros povos, apoiado numa promessa que não prevê riquezas nem privilégios, mas que faz do povo judeu um povo escolhido por Deus para cumprir uma missão.”

Deus continua a realizar seu plano de salvação, depois de Abraão, por meio dos descendentes deste. No cativeiro no Egito, age poderosamente libertando-os. Deus, em virtude da Aliança, vela sobre seu povo e o livra da cruel escravidão e do domínio do faraó. Envia Moisés para soltar os judeus cativos e, sobre o Monte Sinai, renova com ele a Aliança estabelecida com Abraão. E todo o povo, num ímpeto de confiança, grita: “nós faremos o que Deus disse e obedeceremos”.473 Então, Deus dá

a Moisés a tábua da Lei, os mandamentos, sinal da Aliança.

A profissão de fé dos judeus (shemá, Israel) está inserida no tempo da história desse povo, Israel. Porque é Deus mesmo quem age e fala, e este é um

      

471

Termo que designou originalmente as tribos de Judá e mais tarde os habitantes do Reino de Judá. Posteriormente se referiria a todo o povo de Israel. 

472

Cf. Gn 12, 1-3.

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povo que acolhe e escuta. Portanto, o shemá está “entre as primeiras palavras que a criança aprende de seus pais”474 e as

“últimas que se murmuram antes de morrer. Muitos judeus o recitaram silenciosamente ao entrar nas câmaras de gás. Eles testemunhavam assim que somente o Deus único tinha direito às suas vidas e que, contra toda aparência, nenhum outro poderia arrancá-las”.475

Não se tem conhecimento do exato momento em que começou o costume da recitação do shemá, Israel para o povo, mas é certo que nos últimos três séculos antes de Jesus, já eram recitados diariamente.

Em hebraico, podemos transcrevê-lo para “Shem’ yisrae’ el”. Em português, shemá, Israel é traduzido por “escuta, Israel”. O termo “escuta” refere-se à atitude de quem ouve. Já o termo “Israel” refere-se exatamente a um povo, como aquele que escuta. A questão da “tradução” pode parecer irrelevante, mas por ora talvez nos ajude a compreender melhor as diferenças entre tantas traduções. A melhor tradução do shemá, Israel, porém, é mesmo como “escuta”.

Sobre essa questão, remetemos a João Carlos de Almeida,476 que aborda o

que nela está em jogo, esclarecendo tal assunto e concluindo que o shemá como ouvir, embora menos adequado, está presente em várias traduções.477 Mas devemos

ampliar nossos horizontes, no caso da tradução do shemá para o português, como nos diz João Carlos de Almeida, levando em conta o que diz o Dicionário Houaiss, segundo o qual ouvir é “perceber pelo sentido da audição”, enquanto escutar seria “estar consciente do que se está ouvindo”478. A Bíblia de Jerusalém não percebeu esta diferença e traduziu o shemá, Yisrael por “ouve, ó Israel”. Advoga João Carlos       

474

Retiro de abertura da assembleia da CNBB (abril/2008) realizada anualmente. Trecho da pregação de dom Erwin, Itaici, Indaiatuba (SP).

475

DI SANTE, Carmine. Israel em oração. As origens da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 65.

476

João Carlos de Almeida é sacerdote da Congregação do Sagrado Coração de Jesus (SCJ), e é um dos diretores da Faculdade Dehoniana, em Taubaté (SP). Cf. JESUS, Leandro Martins de. Qual a tradução do termo hebraico shemá Yisrael? In: Veritatis Splendor, Memória e Ortodoxia Cristã, 26/3/2008, Brasília. Disponível em <http://www.veritatis.com.br/article/4861>. Acessado em: 15/11/2009.

477

“Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh” (Dt 6,4; cf. A Bíblia de Jerusalém. 4ª impr. São Paulo: Paulus, 2006).

478

 HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss/Objetiva, 2001. 

que a tradução da TEB479 é mais precisa, dizendo: “escuta, ó Israel!” O mesmo acontece com o termo usado nas traduções italianas, que optam por “ascolta” (escuta), e não por sentire (ouvir). Diz ainda João Carlos que o shemá não quis significar ouvir uma voz. E por trás desse pensamento pode estar incutida uma exegese equivocada, que não segue a tradição católica.

Portanto, o shemá, Israel “abre-se com um imperativo, ‘ouça’, seguido de vocativo, ‘Israel’”.480 Em síntese, é a atitude de exortar o povo de Israel para que

escute a Deus! Escutar somente a Deus, o único Deus! Configurando assim uma autêntica confissão de fé do povo judeu. O shemá, Israel é a profissão de fé do povo judeu. No shemá, Israel, vai aparecer a “confissão fundamental da fé do povo de Israel”.481 O “shemá”, antes de tudo, era rezado pelo povo judeu antes mesmo de ser

“escrito”, e, na época de Jesus, já era costume de todo judeu recitá-la ao menos duas vezes ao dia, preferencialmente de manhã e de tarde, como era ensinado na escola do rabino Shammai. Havia, porém, quem defendesse recitá-la a seu modo, como na escola de outro rabino, Hillel.482 Tudo isso faz pensar como o shemá, Israel

pode nos ajudar em nossa fé cristã. Com base nessa profissão de fé, ele pode orientar-nos seguramente!